Outros títulos desta série O inimigo imediato — Ross Macdonald Um tom cinzento de culpa — John D. Macdonald Fletch venceu — Gregory Macdonald A tragédia Blackwell — Ross Macdonald Continental Op — Dashiell Hammett A noiva estava de preto — Cornell Woolrich Dinheiro sujo — Ross Macdonald Clientes demais — Rex Stout É sempre noite — Léo Malet Sexta-feira o rabino acordou tarde — Harry Kemelman Cozinheiros demais — Rex Stout Sábado o rabino passou fome — Harry Kemelman Aranhas de ouro — Rex Stout O labirinto grego — Manuel Vásquez Montalbán Também se morre assim — Ross Macdonald Mulheres demais — Rex Stout Neutralidade suspeita — Jean-Pierre Gattégno Edições perigosas — John Dunning O diabo vestia azul — Walter Mosley A noite do professor — Jean-Pierre Gattégno Domingo o rabino ficou em casa — Harry Kemelman Pecado original — P. D. James Ser canalha — Rex Stout Impressões e provas — John Dunning Uma longa fila de homens mortos — Lawrence Block Casei-me com um morto — Cornell Woolrich O silêncio da chuva — Luiz Alfredo Garcia-Roza Jogo de sombras — Frances Fyfield Nó de ratos — Michael Dibdin Bilhete para o cemitério — Lawrence Block Para Malu e Dashiell Hammett Não só gemas e ouro descobres, Essências de licores nobres Em treva envolvem-se e em pavor; Quem anda e à luz do sol pesquisa, Em meras ninharias pisa. Mistérios vivem no negror. Mefistófeles, em Fausto, de Goethe I O ROMANCE SECRETO 1 Abri o jornal: “Adolescente assassinada no banheiro da escola com um tiro na...” “O que tanto te atrai nos crimes?”, perguntou Antônio, interrompendo- me a leitura. “A atmosfera”, respondi, sem desgrudar os olhos da notícia, enquanto ele me servia o sanduíche de salame com queijo provolone. “...testa. Sílvia Maldini, de dezessete anos...” “Atmosfera? A morte dessa menina é uma tragédia.” “Se você me deixar ler até o fim, podemos conversar a respeito mais tarde.” “Você se tornou um insensível, Bellini.” “Me traz o chope”, eu disse. “... foi encontrada morta num dos banheiros femininos do colégio Barão do Rio Negro, no bairro de Higienópolis, onde...” “Ninguém ouviu o disparo da arma”, insistiu, afastando-se em direção ao balcão do Luar de Agosto, “a menina foi assassinada enquanto as aulas aconteciam normalmente.” “...cursava o segundo ano colegial. A polícia, sem pistas, trabalha com duas hipóteses: na primeira, a menor teria sido vítima de uma bala perdida, disparada de fora da escola; na segunda, o assassino seria alguém da própria escola, funcionário, aluno ou professor, já que ninguém notou a presença de estranhos...” “O que você não daria pra pegar esse caso”, concluiu Antônio, colocando o copo de chope gelado sobre a mesa, lançando-me um olhar misto de ironia e curiosidade. “Eu não estava pensando nisso”, disse eu, desviando os olhos para uma foto em preto e branco que mostrava Síl-via sorrindo ao lado de outros jovens igualmente sorridentes. “No que você pensava?” “A menina estava urinando quando foi assassinada.” “E daí?”, perguntou. Fechei o jornal. “Uma menina de dezessete anos, sentada numa privada, com a calcinha nos calcanhares e um buraco na testa. É nisso que eu pensava.” Depois do café, paguei a conta e caminhei pela Peixoto Gomide até a avenida Paulista. Peguei um táxi. É provável que a garoa tenha intensificado minha melancolia. Talvez a fotografia de Sílvia Maldini ainda viva, sorrindo. Ou simplesmente o trânsito. No edifício Itália. Subi pelo elevador ao décimo quarto andar, onde, à porta de um dos inúmeros escritórios, uma discreta plaqueta anunciava em letras mínimas: “Agência Lobo de investigações particulares. Sigilo absoluto.” As letrinhas pareciam estar diminuindo com o passar dos anos. Chegaria o dia em que Dora as substituiria por braile. Entrei sem bater. Rita concentrava-se em palavras cruzadas e respondeu ao meu “tudo bem?” com um grunhido indecifrável. Em seguida, lembrando-se de alguma coisa, abriu rapidamente a gaveta. Retirou dali o mesmo jornal que eu havia lido no Luar de Agosto. “Já viu?”, perguntou, tocando com a unha vermelha de esmalte a manchete que anunciava o assassinato de Sílvia. Foi a minha vez de responder-lhe com um outro grunhido, igualmente indecifrável. Passei à sala de Dora Lobo, que me aguardava com uma pergunta no Passei à sala de Dora Lobo, que me aguardava com uma pergunta no gatilho: “Como está seu inglês?”, disparou. Ali estava a mulher para quem eu trabalhava. Dora para os íntimos, Lobo para os não íntimos ou para os muito íntimos. Eu gostava dela. A velha senhora era bastante orgulhosa, um pouco rabugenta, razoavelmente previsível, mas dona de uma inesgotável capacidade de se entusiasmar. Antes que eu respondesse a sua pergunta, e minha resposta não seria nada além de uma gracinha tipo “melhor que meu finlandês”, ela sorriu e disse, soprando a fumaça da inevitável cigarrilha norte-americana Tiparillo, mentolada: “Amanhã às sete você vai ao aeroporto internacional esperar por...”, ajeitou os óculos de leitura e conferiu uma folha de papel à sua frente: “Dwight Irwin”. “É um astronauta?” “Um detetive americano que está nos contratando.” “Pra quê?” “Pra encontrar um livro”, olhou-me como se esperasse algum comentário. Como eu não disse nada, completou: “Não é estranho?”. Contratar um detetive para encontrar um livro não era estranho, era inédito. “Que livro é esse?” “Não sei ainda. Ele não quis falar por telefone.” “E desde quando você aceita um caso sem saber do que se trata?” “Desde que me paguem muito, mas muito bem mesmo. E em dólares.” Antes de sair, perguntei: “Você leu sobre a menina assassinada no banheiro da escola?” “Li.” “O que você acha?” “Nada.” “Quanta loquacidade. Qual é o problema? Os dólares te fizeram perder o interesse por homicídios?” “Não. Acho que estou perdendo a morbidez com o passar dos anos, só isso.” Ela pressionou a Tiparillo contra o cinzeiro e reparei por trás da fumaça que seus olhos brilhavam como bolinhas de gude. * No dia seguinte, às seis e meia da manhã. “When my first woman left me...”, cantava John Lee Hooker no walkman, enquanto as portas de vidro do aeroporto de Cumbica abriam-se magicamente à minha frente. A voz cavernosa de John Lee não combinava com a brisa matinal. Caminhei até o balcão de informações, onde uma ruivinha sonolenta confirmou que o vôo 412 da American Airlines, proveniente de Los Angeles, estava no horário, com aterrissagem prevista para sete horas. Tomei um café expresso no segundo andar e agora quem sussurrava aos meus ouvidos não era mais a voz rouca de John Lee, mas a guitarra insinuante de Elmore James. “The sky is crying”, ele cantava, e era verdade: através das janelas notei que aviões taxiavam sob uma chuva fina, quase invisível. Entre eles, se esgueirando como águia metálica e sonolenta, o Boeing que carregava nosso cliente. Há situações em que qualquer um se sente patético, ainda mais um detetive. Qualquer passageiro desembarcado do vôo 412 teria a oportunidade de ver Remo Bellini em pé, à saída da alfândega, segurando uma plaquinha ridícula onde se lia: “Mister Dwight Irwin”. Perscrutei, constrangido, todas aquelas caras amassadas e nenhum dos robustos americanos reconheceu seu nome na plaquinha, apesar de todos terem cara de Dwight Irwin. Será que Dwight Irwin não tem cara de Dwight Irwin?, pensei, mas alguém me cutucava os ombros por trás: “I am Dwight Irwin”, disse o americano franzino, pálido, de traços rudes. Vestia um terno azul-marinho, com gravata de listas finas, vermelhas e azuis. Devia ter uns quarenta e dois anos e o pouco cabelo que lhe restava era preto. Trazia uma pequena sacola pendurada no ombro e segurava com a mão esquerda uma pastinha preta que guardava um computador portátil. Ele não tinha cara de Dwight Irwin. No táxi, a caminho do hotel, ele não falou mais do que o necessário. Antes não tivesse falado nada: “Que tipo de detetive é você... senhor...?”, perguntou em inglês, já que não falava português. “Bellini. Remo Bellini. Assistente de Dora Lobo.” “Da próxima vez não seja assim tão... carnavalesco.” “Como você gostaria que eu o esperasse?”, perguntei. “Sem placas, sem nomes, sem espalhafato. Um bom detetive reconhece outro sem necessidade de artifícios.”
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