181: ✺ AS VIVÊNCIAS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS NO ESPAÇO DOS TERREIROS DE CULTOS AFRO- BRASILEIROS E DE MATRIZ AFRICANA TAIANE FLÔRES DO NASCIMENTO1 BENHUR PINÓS DA COSTA2 Resumo: Gênero, sexualidade e religião são temáticas pouco discutidas dentro da geografia, e que estão essencialmente ligadas aos estudos marginais da ciência. Entretanto, com a atual expansão e manifestações de diferentes expressões de gêneros, quanto manifestações de cunho religioso no espaço, a ciência geográfica, aliada as ciências sociais, acompanha a trajetória da sociedade nesta temporalidade, se tornando uma ciência interdisciplinar e plural. Neste sentido, este artigo tem como objetivo geral, relacionar o espaço do terreiro de cultos afro-brasileiros e de matriz africana, como lugar de possibilidade de vivência e expressões travestis e transexuais. Salienta-se que a religiosidade afro em todas as suas formas de manifestação, é periférica. A concepção de que o espaço sagrado do terreiro constitui relações de expressões de gênero diferenciadas, aparece para a sociedade como uma forma de romper a linha contínua de padrões heteronormativos. Palavras-chaves: Gênero; Religião; Geografia Introdução ________________________ sexualidade ainda são incipientes, considerando o espaço-tempo em que os Dentre os diferentes espaços e estudos se solidificam, e demandam muitas contextos de sua introdução, em âmbito compreensões sobre a sua meta narrativa, geográfico, os estudos sobre gênero e pois “durante muito tempo, as existências ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 38, P.XX-XX, JUL./DEZ. DE 2015 http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/ 182: espaciais desses grupos ou de suas ações sexualidade baseada no paralelismo entre concretas não foram consideradas sexo biológico, gênero e sexualidade. “adequadas” como objetos de estudos do Nesta forma paralela, a norma campo da geografia” (SILVA, 2009). Neste construtora dos padrões normativos de sentido, este artigo tem como objetivo sexualidade é a evidencia da natureza do geral, relacionar o espaço do terreiro de sexo biológico (macho com pênis e fêmea cultos afro-brasileiros e de matriz africana, com a vagina) e a construção dos papéis como lugar de possibilidade de vivência e do homem e da mulher (do masculino e do expressões travestis e transexuais. feminino socialmente falando), assim como A priori, gênero, sexualidade e a manutenção da heterossexualidade, que religião são temáticas pouco discutidas fixa as relações sexuais baseadas neste dentro da geografia, e que estão binarismo. No entanto, no esforço teórico essencialmente ligadas aos estudos de Butler (2003), as plurais dissidências marginais da ciência. Entretanto, com a sociais e situacionais das vivências do atual expansão e manifestações de sexo, do gênero e da sexualidade diferentes expressões de gêneros, quanto desvalidam esta norma binária, tornando- às manifestações de cunho religioso no a somente um conjunto de signos sociais espaço, a ciência geográfica, aliada as dogmáticos comumente transgredidos. ciências sociais, acompanha a trajetória da No entanto, sujeitos que constroem sociedade nesta temporalidade, se seus desejos, suas afetividades e seus tornando uma ciência interdisciplinar e corpos de forma “transgressora” à norma plural. binária dos sexos e dos gêneros e contra a As travestis e transexuais são forma unitária da hegemonia da sujeitos que apresentam performatividades heterossexualidade (que também se (BUTLER, 2003) de gênero feminino apresenta de forma binária pelo desvio da dissidentes do modelo normativo da homossexualidade), são comumente mulher binária – o gênero feminino interditados de espaços institucionalizados relacionado, tradicionalmente, de forma pelos padrões normativos de gênero e nata, ao sexo biológico da “femea”. De sexualidades. acordo com Butler (2003), há uma Os espaços interditos (SILVA, 2009) são construção social historicamente inúmeros e tais espaços marginalizam as produzida pelas relações de poder que travestis e transexuais dos processos de elegeram uma normativa de controle da convivência, trabalho e lazer sociais. ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 38, P.181-204, JUL./DEZ. DE 2015 http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/ 183: Muitas religiões não aceitam em seus dogmas e cultos a expressão de corpos A fenomenologia de modo geral, dissidentes dos modelos hegemônicos de busca evidenciar as essências repondo-as gênero e sexualidade. Por outro lado, em na existência, na medida em que o outras, as travestis e transexuais são concreto sempre existiu “ali”, numa forma plenamente aceitas e se tormam “espaços anterior ao pensamento. A abstração possíveis” de expressão de suas intelectual espaço-temporal do mundo feminilidades. Este é o caso dos terreiros “vivido” materializou-se no exercício de religiões afro-brasileiras, nas quais as descritivo da experiência da maneira como travestis e transexuais estudadas neste ela ocorre, uma vez que o real deve ser trabalho se inserem tranquilamente e são registrado e não construído ou constituído aceitas na plenitude da construção de seus (MERLEAU-PONTY, 1999). Neste gêneros e de suas sexualidades. Neste sentido, a experiência que constrói o artigo, iremos discutir as trajetórias mundo vivido e ela aparece como é teóricas e metodologias da pesquisa observada pelo próprio sujeito. estabelecidas com estes sujeitos, assim Nas considerações de Alfred como os resultados obtidos. Schutz, em geral, sobre a intencionalidade fenomenológica, destaca-se a A fenomenologia como método fenomenologia do mundo social. Segundo filosófico e a análise de discurso como Schutz (1979), Husserl aponta a vida método operacional de pesquisa sobre cotidiana como um espaço da vida natural, as relações entre gênero e religião na ou seja, um espaço onde as pessoas se Geografia _________________________ relacionam com os objetos as quais a intencionalidade está alcançando-as. Como proposta de método de Schutz ressalta ainda, que a importância abordagem da pesquisa, utilizou-se a do significado é dada pela experiência fenomenologia atrelada ao dispositivo de passada que a pessoa possui sobre um fato. análise denominado Análise do Discurso Quando o autor fala em fenomenologia do (AD), que consistiu basicamente na mundo social, instrumenta para as ciências estrutura abaixo: sociais o método husserliano com o objetivo de compreender os mecanismos e Método de Dispositivo de abordagem análise de identificar as práticas e os significados sociais e subjetivos que os indivíduos Fenomenologia Análise de ESPAÇO E CULTDUisRcuAs,o U ERJ, RJ, N. 38, P.181-204, JUL./DEZ. DE 2015 http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/ 184: manifestam nas interações cotidianas. As conteúdo do pensamento. Expressam noções de contexto, de ação, de para nós como o mundo e as coisas nele aprecem ser para alguém que está convivência e de interação passam a ser naquele corpo. Se a outra pessoa importantes à investigação dos rituais, emitir certos sons ou fizer certas indetermina e das racionalidades caretas, podemos dizer que “lá vêm subjacentes à vida cotidiana dos problemas” ou “não nos abandone indivíduos. agora”. As pontuações de Schutz são importantes para a ciência geográfica, Considera-se na fala do autor, que quando associa experiência, interações os elementos importantes na construção sociais com o mundo vivido. Neste do sujeito são visualizados dentro das contexto, faz-se um salto na evolução do expressões que o indivíduo apresenta em conceito fenomenológico, atraindo para a determinado espaço ou interação com ligação com o espaço, que é uma das outro indivíduo. Percebe-se desta forma, categorias de análise da Geografia. A que a fenomenologia em primeiro realidade social é produto de interações, momento está atrelada aos estudos da adição de objetos e fatos da vida culturais dentro da geografia. A cultura cultural e social que o senso comum como forma de identificação social, pode experienciada nas interações. São esses ser restringida apenas aos valores que grupos sociais que produzem espaços, os cada grupo ou etnia tem e é por essas quais são importantes para as análises questões que estudos envolvendo novos geográficas. grupos sociais vêm se desenvolvendo As análises da fenomenologia na dentro da geografia, com ênfase nas geografia humana têm diferentes interações humanas. abordagens no que se refere ao espaço Um grupo de fiéis de uma vivido do indivíduo. Nesta perspectiva, determinada religião, por exemplo, Sokolowski (2004, p. 165) ao introduzir a evangélica, que vem se destacando pelo fenomenologia, diz que crescente número de seguidores, pode ser considerado um grupo social que produz, A língua falada, os gestos intencionais organiza ou reorganiza o espaço. São e a linguagem corporal imponderável indivíduos que possuem sua própria são todos mais do que apenas linguagem, modo de vestir, crenças e movimentos corporais; sinalizam atos intencionais, e também expressam ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 38, P.181-204, JUL./DEZ. DE 2015 http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/ 185: valores que os diferenciam de outro grupo religioso. [...] é o estudo das essências: a As travestis e as transexuais essência da percepção, essência da consciência, por exemplo. Mas a também são um exemplo concreto de um fenomenologia é também uma filosofia grupo social construtor de espaços. Sabe- que repõe as essências na existência, e se que as travestis e transexuais (no não pensa que se possa compreender o feminino, pois é assim que elas gostam de homem e o mundo de outra maneira serem enunciadas), possivelmente seja um se não a partir de sua “facticidade”. grupo social recluso de determinados [...] É a ambição de uma filosofia que espaços. Elas se destacam no modo de se seja uma “ciência exata”, mas é vestir, no modo de como se comunicam e também um relato do espaço, do principalmente no modo em que vivem. tempo, do mundo vivido. É a tentativa Estas expressões de gênero e sexualidade de uma descrição direta de nossa se dão pelos movimentos corporais, em experiência, tal como ela é e sem nenhuma referência à sua gênese determinados momentos com algo grau de psicológica e as suas explicações afetividade, estes simbólicos, que as causais [...] que dela possam fornecer. diferenciam enquanto ser social. A ideia em se trabalhar com novos Esta linha de pensamento parte do métodos de abordagem dá maior pressuposto de que a consciência só pode visibilidade à ciência a se propor em ser entendida a partir de sua referência a realizar pesquisas que podem ir muito um objeto, logo, sujeito-objeto difuso na além do conhecimento do pesquisador. realidade, e é passível de serem analisados Quando ressaltamos esse “além”, distintamente através de uma queremos referir ao sujeito interesse de intencionalidade. No caso desta pesquisa, estudo deste trabalho. Esta no sujeito as nossos sujeitos são as travestis e respostas em que o pesquisador procura, transexuais frequentadoras dos espaços de dando ênfase a sua inteligibilidade como religiões de matriz africanas conhecidas a fonte aos estudos. Neste sentido, o partir de um árduo processo de positivismo nega a existência dessa fonte, aproximação da pesquisadora. Estes reforçando apenas os fatos encontrados sujeitos de pesquisa, ao mesmo tempo em materializados. A fenomenologia dá esse que transitam por diferentes espaços, suporte quando Merleau-Ponty (1999, também, por sua condição marginal frente p.01), a conceitua, enfatizando que a uma sociedade e espaço social ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 38, P.181-204, JUL./DEZ. DE 2015 http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/ 186: heteronormativo, são interditadas da Considera-se a Análise do Discurso vivência de muitos outros. As interdições (AD) como uma possibilidade de captar o são, sobretudo, relacionadas aos espaços sentido não explícito no discurso. Neste das religiosidades cristãs, como igrejas sentido, a interpretação da linguagem católicas e evangélicas, mas, ao contrário, propriamente dita vem como uma forma suas vivências são possibilitadas à de aproximação sujeito-pesquisador, pois é religiosidades de matriz africana, em nesse espaço da linguagem que se podem terreiros e umbanda e candomblé. Assim, explicar diferentes fenômenos e conceitos, esta pesquisa procura entender as relações sendo a palavra uma condição de ponte intrínsecas entre as formas de expressão difundida entre um ou mais locutores e um de gênero e sexualidade dissidentes das ou mais interlocutores. travestis e transexuais e a fé e a inserção Pode-se considerar que a palavra é aos cultos e atividades místicas das o modo mais autêntico e também legítimo religiosidades afro-brasileiras. As das relações sociais, configurando-se como intencionalidades a serem estudadas se um fenômeno ideológico por excelência. referem a dos corpos travestis e Neste sentido, destaca-se Orlandi (2013, p. transexuais e seus envolvimentos em 15) quando diz que terreiros de cultos daquelas religiosidades. Nosso esforço é entender a consciências A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica, não trata da destes sujeitos em relação ao objeto língua, não trata da gramática, espacial do terreiro, que repercute em suas embora todas essas coisas lhe condições existenciais singulares e suas interessem. Ela trata do discurso. E a identidades como sujeitos transgêneros palavra discurso, etimologicamente, em uma sociedade construída tem em si, a ideia de curso, de hegemonicamente pela centralidade da percurso, de correr por, de heterossexualidade e definição de corpos e movimento. O discurso é assim papéis binários de gênero atrelados ao palavra em movimento, prática de sexo biológico. Para isto, utilizamos a linguagem: com o estudo do discurso “análise de discurso” a fim de adentrar aos observa-se o homem falando. significados destes sujeitos aos espaços de Quando Orlandi defende a ideia de relações e cultos das religiosidades afro- que o discurso está sempre em construção, brasileiras. ela se remete aos pressupostos fenomenológicos, pois o discurso se torna ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 38, P.181-204, JUL./DEZ. DE 2015 http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/ 187: um fenômeno ideológico, que está em fenomênico) e a ideologia na análise do constante movimento. A autora ao discurso. Quando a autora fala em mencionar em suas palavras o “homem”, materialidade do corpo, ela faz uma ela se refere ao homem em geral, o homem relação entre como espécie humana, desconsiderando o sujeito/corpo/linguagem/sociedade, gênero, ou seja, ela sugere que a AD visando compreender o discurso, conceba a linguagem como mediação pensando na sua historicidade, dando necessária entre o homem e a realidade significado em um ou outro espaço de natural e social (ORLANDI, 2013). existência, considerando o espaço de Para se trabalhar com esta técnica vivência. Neste sentido, Orandi (2013, p. de análise é importante considerar a 21) destaca linguagem exteriorizada do sujeito, uma Para a Análise de Discurso, não se vez que ela pode refletir as ideologias trata apenas de transmissão de informação, nem há essa linearidade levando em conta o sentido, enquanto na disposição dos elementos da simbologias constituídas do próprio comunicação, como se a mensagem indivíduo e sua história. Para tanto, resultasse de um processo assim destaca-se as observações de Orlandi serializado: alguém fala, refere-se (2012, p. 83) sobre a questão da alguma coisa, baseando-se em um materialização do corpo, ou ainda, sobre o código, e o receptor capta a processo de significação do mesmo mensagem, decodificando-a. Considerando a materialidade do sujeito, o corpo significa. Em outras palavras, a Trazendo essa “fórmula” que a significação do corpo não pode ser autora destaca para a realidade da pensada sem a materialidade do sujeito. E pesquisa, tem-se: vice-versa, ou seja, não podemos pensar a materialidade do sujeito sem pensar em relação com o corpo. Por isso nos - Alguém fala = travestis e transexuais interrogamos: como juntar corpo, sujeito, sentido, pensado a questão da - Refere-se alguma coisa baseando-se em materialidade discursiva? um código = questões relacionadas as suas vivências ou não nos terreiros de cultos afro-brasileiros e de origem Na perspectiva da autora, é africana possível perceber que há, mesmo - Receptor capta a mensagem, intimamente, um interesse em relacionar a decodificando-a = pesquisador grava o subjetividade do sujeito (o que se torna curso, compreende a fala e os gestos e o interpreta ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 38, P.181-204, JUL./DEZ. DE 2015 http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/ 188: Breve contextualização sobre a relação O quadro pode ser entendido como Gênero, Sexualidade e Religião ______ uma forma resumida da proposta da Judith Butler é um dos grandes pesquisa, porém a AD discutida por nomes dos estudos de gênero, sexualidade Orlandi (2013) possibilita que esses e também queer3 no cenário acadêmico segmentos não precisam estar nesta mundial. Ela traz para a ordem propriamente dita, pois não há contemporaneidade, os estudos separação do emissor e receptor. Neste envolvendo outra noção de gênero como sentido, esses três elementos, podem estar os gays, lésbicas, transexuais e novas relacionados criando um efeito de sentidos identidades homossexuais, que foram entre os locutores, ou seja, criando uma invisibilizadas ao longo do tempo pelos regularidade que só funciona se não estudos feministas. Para ela, essas outras ocultar deste mecanismo, o social e o identidades sexuais desestabilizam as histórico, o sistema em que tal sujeitos outras, sejam homo ou heterossexuais. estão inseridos. Para tanto, considera-se Neste sentido, destacam-se as palavras de que a AD seja a chave de interpretação de Butler (1990, p.7) diferentes produções de sentidos da fala, da linguagem, gestos e tudo que o O gênero pode também ser designado pesquisador conseguir interpretar diante como o verdadeiro aparato de de um discurso. produção através do qual os sexos são estabelecidos. Assim, o gênero não A estrutura metodológica está para a cultura como o sexo para a representativa remete a fenomenologia natureza; o gênero é também o pois considera-se que é uma situação em significado discursivo/cultural pelo que sujeitos estão se envolvendo com algo: qual a „natureza sexuada‟ ou o „sexo uma vivência, uma experiência e suas natural‟ é produzido e estabelecido subjetividades estão em relação. A AD como uma forma „pré-discursiva‟ como busca das ideologias e anterior à cultura, uma superfície representações que se repetem é um politicamente neutra sobre a qual a engessamento teórico-metodológico à cultura age. pesquisa, pois pode-se utilizá-la para entender as subjetividades dos sujeitos. Argumentando posteriormente que o gênero Butler (2008, p. 58) ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 38, P.181-204, JUL./DEZ. DE 2015 http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/ 189: [...] é a estilização repetida do corpo, movimento à estrutura, tornando possível um conjunto de atos repetidos no a possibilidade de pluralidades. interior de uma estrutura reguladora A divisão de gênero funciona como altamente rígida, a qual se cristaliza uma espécie de pilar fundamental da no tempo para produzir a aparência de política feminista e parte da ideia de que o uma substância, de uma classe natural sexo é natural e o gênero é socialmente de ser. construído. Butler vai problematizar essa premissa, onde discutir essa dualidade é o Neste sentido, seguindo o ponto de partida para que a autora pensamento de Butler, o gênero não é um debatesse o conceito de mulheres como conjunto de significados culturais sujeito do feminismo. Uma das maiores impressos num corpo nem a interpretação preocupações de Butler seria o cultural de um corpo sexuado, e também fortalecimento das teorias queer4, dos ser do sexo masculino ou ser do sexo movimentos de gays, lésbicas e feminino não constituem uma essência transgêneros e de certo abandono do interior do indivíduo, mas sim, um feminismo como um campo ultrapassado. conjunto de normas fundamentadas sobre Pelas considerações de Judith Butler o corpo que geram essa aparência de (2003, p. 39-40) substância e torna o indivíduo livre. A autora, traz em seu livro A heterossexualização do desejo “Problemas de Gênero: feminismo e requer e institui a produção e subversão da identidade” de 2003, a oposições discriminadas e assimétricas desconstrução do gênero. Pensa as ficções entre “feminino” e “masculino”, em sociais que produzem desigualdades nos que estes são compreendidos como processos de produção de diferenças atributos expressivos de “macho” e identitárias. Butler desconstrói essa meta “fêmea”. A matriz cultural por narrativa sobre a perspectiva do corpo, intermédio da qual a identidade de ressaltando que a representação de gênero gênero se torna inteligível exige que certos tipos de “identidade” não é fragmentada, onde a diferença está no possam “existir” [...] próprio corpo. Um exemplo são as travestis, que não executam a A autora destaca que a identidade é masculinidade. Ele subverte o padrão de uma categoria importante na construção gênero, onde desestabiliza esta norma e dá de um pensamento baseado na temática ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 38, P.181-204, JUL./DEZ. DE 2015 http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/ 190: em questão, por apresentar diferentes questionam a linearidade do mecanismo de formas de entendimento e compreensão. gênero, pois é considerável que o gênero é Ela evidencia o mecanismo de gênero em constituído a partir das práticas sociais, ou sua primeira parte da obra e destaca que o seja, os corpos das travestis e transexuais feminismo pressupõe a existência de uma contrariam as normas de linearidade entre identidade feminina, ou seja, o sexo/gênero/desejo. Neste sentido, o estabelecimento de uma linguagem gênero é um fenômeno constante e pressupõe a busca da visibilidade feminina. contextual, ou seja, resultado da relação A crítica feminista tem de explorar as de espaço/tempo/relações sociais, ou afirmações totalizantes da economia ainda, o espaço é permeado por relações de significante masculina, mas também deve gênero e estas se ressignificam nas permanecer autocrítica em relação aos relações socioespaciais cotidianas. gestos totalizantes do feminismo Compreender os grupos (BUTLER, 2003). marginalizados da sociedade Os debates feministas heterossexual normativa, nas relações de contemporâneos sobre o essencialismo gênero, vivenciadas no contexto da ressaltam de outro modo a questão da religiosidade principalmente de origem universalidade da identidade feminina e da africana e afro-brasileiras, é um desafio à opressão masculina. Esta abordagem ciência geográfica. Por se tratar de universalista é baseada em um ponto de temáticas também marginalizadas e pouco vista epistemológico comum ou discutidas em âmbito acadêmico, o compartilhada, como estruturas desenvolvimento de uma meta narrativa compartilhadas de opressão. Neste que possa construir conceitos, fica a deriva sentido, Butler (2006, p. 59) destaca que em estudos geográficos. A busca do fenômeno espacial, em O gênero é o mecanismo pelo quais as que as travestis e transexuais se destacam noções de masculino e feminino são atualmente, seja ele relacionado a produzidas e naturalizadas, mas ele territórios de poder ou espaços religiosos, poderia ser muito bem o dispositivo ressalta a ideia da subjetividade do sujeito, pelo qual estes termos são na vivência de espaços possíveis ou não a desconstruídos e desnaturalizados. diferentes expressões de gênero. Na formação cultural da sociedade brasileira, As travestis e transexuais como a influência da religiosidade é um fator exemplo de desconstrução do gênero, ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 38, P.181-204, JUL./DEZ. DE 2015 http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
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