a i l - U = CeD l - U REVfSTADE DIVULGAçAO CIENTIFICA DASBPC VOlo 36 ABRil 2005 R$8,90 As razões da EOUCAC;lo reforma universitária - Ao analisar o que diz o Ministério da Educaçio acerca das duas pri- cenciamento para o exercício de profissões regu meiras razões (fortalecer a universidade pú lamentadas por lei ou para preservar o público de blica e impedir a mercantilização do ensi situações extremas de má-fé. Segundo, não há in no superior), constata-se que não há nada compatibilidade entre desempenhar uma ativida sobre fortalecimento e muito sobre expan de de interesse público e cobrar por ela. Prestar são do setor público. O governo se queixa serviços e cobrar em educação não é diferente de de que 70% do ensino superior prestar serviços e cobrar por atendimentos médi hoje sejam privados, em conse cos, legais ou psicológicos. Não fosse assim, os qüência da "liberalização" no go professores das universidades públicas deveriam verno Fernando Henrique Car trabalhar de graça! Cobrar melhores salários do doso (FHC) , e acena com 400 governo e fazer greves por aumento não é etica mil novas vagas em universi mente superior a cobrar anuidades dos estudantes dades públicas nos próximos e de suas famílias. Terceiro, como os ganhos pri quatro anos e com mais re vados da educação superior são altos para os alu cursos para a pesquisa e a ex nos, é natural e saudável que o mercado se encar tensão. No parágrafo seguin regue de atender ao menos em parte à demanda te, ao aftrmar que a educa existente e que o setor público reserve seus re ção privada é uma "função cursos para outros fins, como a educação funda pública delegada", anuncia mental, em que não exista alternativa para os in mais controle sobre o ensi vestimentos públicos. no privado, para impedir a Não é possível. no entanto, pensar em um ensino "proliferação de institui superior totalmente privado. Os investimentos pú ções caça-níqueis". blicos são necessários para a pesquisa, que não pode Será que de fato o en se limitar às demandas de curto prazo de investidores sino superior público é privados, embora devesse estar mais próxima do tão benéfico para a so setor produtivo do que tem sido no Brasil. Existem ciedade assim, e o ensino privado. que visa ao lu áreas prioritárias, como a de formação de profes cro, tão maléfico? É preciso pensar nessas questões sores para a educação básica, que requerem forle sem preconceitos. Em princípio, se as instituições apoio e estímulo para atrair talentos, e outras que de ensino superior fazem o que a sociedade neces demandam instalações complexas e caras, que não sita - formar pessoas competentes, desenvolver e atrairiam investidores privados. Há regiões onde o transmitir conhecimento etc. -, não impor- ensino superior dillcilmente consegue se implantar + ta que elas sejam públicas ou privadas. sem o apoio público. Finalmente, o setar público Na prática. no Brasil a maior parte precisa intervir para dar oportunidade, na forma de das instituições de melhor qualida- subsídios ou créditos educativos. a pessoas compe de (e que fazem pesquisa) são pú tentes que não podem pagar os cursos da educação blicas. Mas existem também boas instituições pri superior privada. vadas e muita coisa ruim tanto no setor público É difícil calcular a combinação 6tima dos tama quanto no privado. nhos relativos do setor público e privado na edu Há fortes argumentos a favor do ensino superior cação superior. Países que, no passado, mantive privado. Primeiro, ao contrário do que ram o ensino superior sob monopólio do setor diz o Ministério, a educação privada público, quando havia menos estudantes, se abrem não é uma atividade "delegada", mas agora para conter gastos e criar mais diversidade um direito em cujo exercício o e liberdade de opções. Palses que não investiram setor público só pode se introme suficientemente na qualidade de suas melhores ter quando estiver em jogo o li- universidades hoje se preocupam com a questão, • ebrll de 200~ • CllIIclA HOIE ••• EDUCAçlo definindo prioridades e orientando investimentos problema, optou por implantar uma política de para instituições de alta qualidade voltadas para cotas no setor público e de compra de vagas no áreas prioritárias. Fortalecer o ensino público, no ensino privado por meio de renúncia fiscal, embo sentido de melhorar a pertinência, eficiência e ra considere esse setor 'mercantilizado'. A simples qualidade das instituições públicas, é um objetivo introdução de critérios sociais ou raciais na sele importante. Mas considerar que 'fortalecer' signi ção de estudantes, sem levar em conta as grandes fica apenas aumentar o tamanho do setor público diferenças de formação prévia e as características é certamente um equívoco. dos cursos a serem seguidos, pode produzir resul tados negativos, que vão do rebaixamento do nível dos cursos já existentes à eliminação dos novos DEMOCRATIZAR O ACESSO alunos nos primeiros anos de estudo, frustrando assim suas expectativas. Esta é a terceira razão apontada. Ao apresentá-la, o Ministério mistura duas questões diferentes: expansão e acesso. Como só 10% da população GARANTIR A QUALIDADE brasileira na faixa de 18 a 24 anos entram no ensino superior, em contraste com 30% ou mais Esse é, sem dúvida, um objetivo importante e de em países como Argentina. Canadá ou Estados grande interesse social. Como fazer para que a Unidos, o governo pretende simultaneamente ex qualidade da universidade pública corresponda a pandir o sistema e ocupá-lo com estudantes que seus custos? Como fazer com que o setor privado não passariam nos vestibulares nem conseguiriam seja estimulado a competir por qualidade, em vez pagar seus estudos na rede privada. seja porque de competir por lucros e vender facilidades? A vieram de escolas públicas de má qualidade ou tradição brasileira de controlar a qualidade por porque pertencem a grupos sociais presumivel meio de insp8ÇÕes e de sistemas burocráticos de mente discriminados. como os de origem negra. preenchimento de formalidades nunca deu certo e Expansão e eqUidade de acesso são coisas inter não há indicação de que será diferente no futuro. ligadas, mas distintas. Países como Canadá e Esta Não é fácil defmir 'qualidade'. Um bom curso de dos Unidos, que conseguiram expandir a educação formação de professores de matemática para o superior para 50% ou mais, o fizeram graças a um ensino médio pode ser péssimo como curso de forte processo de diversificação, criando oportuni formação de pesquisadores e vice-versa. dades de estudo que vão desde os cursos de dois Apesar das dificuldades, sabemos o que fazer anos dos colleges aos cursos nas carreiras tradi para melhorar a qualidade: colocar os cursos e ins cionais e de pós-graduação. Os países que mais tituições sob avaliação externa, associar recursos a conseguiram expandir a educação superior nos úl resultados e disseminar informação para a socieda timos anos são os que optaram por abrir espaço de. Na proposta do governo, qualidade parece ser para o setor privado e para o ensino a distância. entendida como "garantia do papel social e político A Argentina não é um bom exemplo. No passa da educação". A preocupação parece mais voltada do o país adotou uma política de acesso direto e para limitar a abertura de novos cursos, presumi sem vestibular às universidades públicas. que teve velmente no setor privado, e. menos para avaliar os como resultado índices altíssimos de abandono cursos já existentes, inclusive no setor público. escolar, graves problemas de qualidade e cursos No governo passado, houve avanços importantes que são feitos 80 longo de muitos anos, sem que se no desenvolvimento de indicadores de qualidade, saiba exatamente o custo de tudo isso para a so por intermédio do Exame Nacional de Cursos e da ciedade. divulgação sistemática de seus resultados para a Quando bem-feita, a diversificação dá acesso a sociedade. Esse exame sobreviveu às propostas de estudantes com diferentes níveis de formação. O eliminá-lo, como estava previsto no programa de Ministério da Educação, em vez de enfrentar lDUCAÇlo campanha eleitoral do presidente Lula, mas foi O princípio da autonomia universitária, que profundamente modificado, e não se sabe exata aparece com destaque na proposta do governo, deve mente como funcionará o novo sistema de avalia consistir em dar às autoridades educacionais condi ção implantado nem como seus resultados serão ções para que as instituições cumpram os objetivos divulgados para a sociedade. que lhes são atribuídos pela sociedade e não para Em relação ao setor privado, o governo inicial que elas atendam demandas e interesses de seus mente congelou a criação de novos cursos, mas eleitores. Na prática, isso significa introduzir for acabou baixando uma norma que condiciona no mas de gestão modernas, baseadas na identificação vas autorizações ao conceito de "demanda social", clara de objetivos e metas, na forma de contratos de definida não se sabe exatamente como. Compre gestão. O bom dirigente saberá envolver professores ende-se que o governo, ao gastar seus recursos, e estudantes na identificação dos objetivos e na estabeleça prioridades, baseadas em algum con busca de bons resultados, afastando ou remanejando, ceito de necessidade social. O setor público pode se necessário. os que não se adaptarem aos objetivos inclusive desenvolver políticas de incentivo para e programas de trabalho da instituição ou não res estimular o setor privado a investir em determi ponderem a eles de forma adequada. nadas carreiras ou regiões. Mas não lhe cabe O mesmo princípio vale para o setor privado, impedir que pessoas ou instituições privadas in inclusive para as instituições que objetivam clara vistam em certos cursos sem subsídio público, mente o lucro. As instituições privadas atuam em assumindo os riscos que possa haver. É como se um mercado competitivo, e o governo tem o im o governo resolvesse decidir quem pode ou não portante papel de criar estímulos para que elas abrir um restaurante em função do número de valorizem a qualidade e o desempenho. buscando estabelecimentos do gênero existentes em uma recursos humanos qualificados e utilizando-os da mesma rua ou em um bairro. forma mais plena possível. Não parece que se possa alcançar essa meta retirando o poder dos dirigen tes das instituições privadas e transferindo-o a assembléias e colegiados internos de professores, GESTÃO DEMOCRÁTICA funcionários e alunos. A última razão apresentada é a construção da ges tão democrática nos setores público e privado. Para o Ministério, isso significa escolher reitores por meio ENQUANTO ISSO ... de eleição direta e decidir todas as questões em colegiados, com a participação de professores, fun No resto do mundo discute-se como fazer para que cionários e alunos. A inovação importante é que o as universidades participem de forma mais efetiva governo pretende impor essa forma de gestão, que dos processos de inovação tecnológica e da melhoria já predomina no setor público, também ao setor da qualificação técnica e profissional da popula privado. A proposta pode ter apelo para os que ção, no contexto de uma economia globalizada e trabalham ou estudam nas universidades e querem baseada no uso de tecnologias complexas. Como participar das decisões que afetem seus interesses, transformar as universidades de tipo antigo, orga mas não garante que elas funcionem melhor, usem nizadas segundo as profissões tradicionais e as melhor seus recursos, produzam pesquisa de me antigas disciplinas acadêmicas, em instituições lhor qualidade, formem pessoas mais competentes dinâmicas, capazes de formar e inovar em um e desempenhem um papel social mais significativo. mundo no qual o conhecimento está em constante Há aqui grande confusão entre o princípio salu transformação? tar da participação e a noção equivocada de que as A 'indústria do conhecimento', caracterizada por instituições de ensino são repúblicas que devem ser grandes investimentos privados na pesquisa e em administradas segundo a preferência de seus parti instituições privadas de ensino e pesquisa, estA cipantes. As universidades não podem ser governa cada vez maior e mais globalizada. Os governos das de forma autoritária, sem a participação de seus investem cada vez mais em pesquisas ligadas às professores, funcionários e estudantes. Devem, sim, áreas de meio ambiente, saúde pública, gereneia ser governadas com a autoridade que vem da com mento de grandes cidades, energia e transporte. petência e do mandato de seus dirigentes, que têm Que devem fazer as universidades para não se o dever de representar, nas universidades públicas, tomar instituições obsoletas ante essa competição os interesses da sociedade e, nas instituições priva crescente? Que alterações são necessárias na orga das, os objetivos de seus mantenedores. nização dos cursos, no conteúdo dos programas de estudo, nos instrumentos de seleção e formação dos estudantes? Que tipos de parceria podem ser ~ abril d, 2005 • CIENCIA HOJE • a, fDUCAÇlo estabelecidas entre instituições públicas e privadas nacionais e internacionais e como fazer para que o setor privado conbibua mais para o financiamento da pesquisa e da educação? Há grande preocupação com a necessidade de par ticipar de forma mais efetiva dos fluxos internacionais de pesquisa. inovação e educação. recebendo e envian do estudantes para outros países, estabelecendo convê nios internacionais, contratando professores em outras partes e trabalhando na compatibilização de cursos e diplomas. As universidades tratam cada vez mais de incorporar as téCIÚcas mais modernas de gerência de recursos humanos e financeiros. buscando para tanto a competência disponfvel no setor privado. A tendência li. expansão crescente do ensino superior é também objeto de preocupação. Nenhum governo tem condições de financiar, sozinho, sistemas de educação superior de massa, e em toda parte novas formas de financiamento público são instituídas. Os estudantes e suas famílias são chamados a contribuir com sua par cela, o crédito educativo se expande e se consolida, as instituições públicas são estimuladas a buscar recursos próprios. e os governos tratam as instituições privadas como parceiras e colaboradoras, não como inimigas a serem vigiadas e controladas. As novas tecnologias de educação têm um papel cada vez maior. rompendo com as antigas delimitações territoriais das universidades e abrindo novas possibilidades para a educação de massa e para a educação continuada. Praticamente nada disso aparece na proposta de reforma que o Ministério da Educação elaborou. Nela, a proteção dos interesses das associações de professo SUGESTOES res e funcionários do setor público predomina sobre os PARA LEITURA interesses da sociedade, a iniciativa privada é vista co mo inimiga, e propÕ8-se proibir a presença de estran KUTZNETS. S. geiros na direção de instituições de ensino, como for 'Economlc IfOWIh anel Income ma de fechar as portas li. globalização. A qualidade é lnequallty' • vista como um problema, mas é entendida sobretudo ln Amerlcan em termos da atuação das universidades no nível local Economk Revlew. V."5W. e não como fator decisivo de formação de recursos hu 1955· manos e desenvolvimento da capacidade de inovação. SEROADAMOTTA,R. (ed.). EnvIronmenta Os problemas de eqüidade de acesso, que deveriam Economlcs anel ser enfrentados fundamentalmente visando li. melhoria Po/lcyMa/cJnl da educação básica, adquirem prioridade total, obscu ln Deve/oplnl CountMs, recendo outros temas. Não se fala sobre novas formas de EdwardElpr financiamento, a não ser para garantir que as universi Publlshins. Cheltenhln. dades públicas tenham seus recursos mantidos e ex :lOOI- pandidos. O privilégio de estudar gratuitamente em SEROADAMOTTA,R. universidades públicas continua intocado, e o tema do Padrlo de Consumo. crédito educativo parece ter desaparecido. Pouco se diz Dlstrlbuiçlo sobre novos currículos, novas tecnologias, novas formas de Renda eo Melo Ambiente organizacionais e sistemas efetivos de avaliação exter no Bmil. na. Nada se diz sobre diferenciação de conteúdos, e o Textopa,. Dlscusslo 856. mantra da "indissociabilidade entre ensino, pesquisa e Ipea-RIo. extensão" continua a ser repetido religiosamente, como 2002. um eco cada vez mais distante da realidade. _ ••• CIEICIA HOJE. vol. ]6 • nl 21"