Ficha Técnica Título: As Origens da Ordem Política Título original: The Origins of Political Order Capa: Joana Tordo Revisão: Rita Almeida Simões ISBN: 9789722049306 Publicações Dom Quixote uma editora do grupo Leya Rua Cidade de Córdova, n.º 2 2610-038 Alfragide – Portugal Tel. (+351) 21 427 22 00 Fax. (+351) 21 427 22 01 © 2011, Francis Fukuyama e Publicações Dom Quixote Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor www.dquixote.leya.com www.leya.pt PREFÁCIO Este livro tem duas origens. A primeira surgiu quando o meu mentor, Samuel Huntington, da Universidade de Harvard, me pediu que escrevesse um prefácio para a reedição do seu clássico de 1968, Political Order in Changing Societies1 [A Ordem Política nas Sociedades em Transformação]. O trabalho de Huntington representou uma das últimas tentativas de escrever um amplo estudo do desenvolvimento político e debrucei-me frequentemente sobre ele na minha atividade docente. Veio estabelecer várias ideias-chave em política comparada, incluindo uma teoria do declínio político, o conceito de «modernização autoritária» e a noção de que o desenvolvimento político é um fenómeno separado de outras dimensões da modernização. À medida que avançava com o prefácio, porém, pareceu-me que, apesar de iluminador, o livro precisava de uma atualização séria. Foi escrito apenas uma década após a grande vaga descolonizadora que varreu o mundo do pós-guerra e muitas das suas conclusões refletem a enorme instabilidade daquele período, com todos os seus golpes de Estado e guerras civis. Ocorreram várias transformações significativas nos anos que se seguiram à sua publicação, tal como a emergência económica do Extremo Oriente, o colapso do comunismo global, a aceleração da globalização e aquilo que o próprio Huntington classificou como a «terceira vaga» de democratização, iniciada na década de 1970. A ordem política estava ainda por concretizar em diversos locais, mas emergira com sucesso em muitas partes do mundo em vias de desenvolvimento. Parecia apropriado regressar aos temas daquele livro e procurar aplicá-los ao mundo tal como ele existia agora. Ao pensar na melhor forma de rever as ideias de Huntington, ocorreu-me que havia um trabalho ainda mais fundamental a fazer no que diz respeito à interpretação das origens do desenvolvimento e do declínio políticos. Political Order in Changing Societies tomava por garantido o mundo político de uma fase relativamente tardia da história humana, na qual existe todo o tipo de instituições, como o Estado, os partidos políticos, o Direito, as organizações militares e outras do mesmo género. Confrontava-se com o problema dos países em desenvolvimento que procuravam modernizar os seus sistemas políticos, sem dar conta, porém, da origem desses sistemas em sociedades nas quais já estavam estabelecidos há muito tempo. Os países não estão aprisionados no seu passado. Mas, em muitos casos, coisas que aconteceram há centenas ou até milhares de anos continuam a exercer uma enorme influência na natureza das práticas políticas. Se procuramos compreender o funcionamento de instituições contemporâneas, torna-se necessário olhar para as suas origens e para as forças, frequentemente acidentais e contingentes, que as criaram. A importância atribuída à origem das instituições entroncava com uma segunda preocupação, relacionada com os problemas mais práticos dos Estados fracos ou fracassados. Desde grande parte do período posterior ao 11 de setembro de 2001, tenho trabalhado com os problemas relacionados com a construção de Estados e nações em países com governos instáveis ou em colapso; um primeiro esforço para refletir acerca deste problema resultou num livro que publiquei em 2004, intitulado A Construção de Estados: Governação e Ordem Mundial no Século XXI2. Os Estados Unidos, tal como a comunidade internacional de doadores num plano mais amplo, investiram bastante em projetos de construção de nações pelo mundo fora, incluindo o Afeganistão, o Iraque, a Somália, o Haiti, Timor-Leste, a Serra Leoa e a Libéria. Eu próprio trabalhei como consultor para o Banco Mundial e para a agência australiana de auxílio AusAid, na análise dos problemas de construção de Estados na Melanésia, incluindo Timor-Leste, a Papuásia-Nova Guiné, a Papua Indonésia e as Ilhas Salomão, países que encontraram, todos eles, sérias dificuldades na sua tentativa de construir Estados modernos. Consideremos, por exemplo, o problema da implantação de instituições modernas em sociedades melanésias como a Papuásia-Nova Guiné e as Ilhas Salomão. A sociedade melanésia está organizada de modo tribal, naquilo a que os antropólogos chamam linhagens segmentárias, grupos de pessoas que se consideram descendentes de um antepassado comum. Podendo contabilizar desde algumas dúzias até alguns milhares de parentes, essas tribos são conhecidas localmente como wantoks, uma corruptela da expressão inglesa «one talk» («um idioma»), ou seja, pessoas que falam a mesma língua. A fragmentação social existente na Melanésia é extraordinária. A Papuásia-Nova Guiné abriga mais de 900 idiomas incompreensíveis entre si, quase um sexto da totalidade das línguas existentes no mundo inteiro. As Ilhas Salomão, com uma população de apenas 500 000 habitantes, têm contudo mais de 70 línguas. A maioria dos residentes das terras altas da Papuásia-Nova Guiné nunca saiu do pequeno vale onde nasceu; as suas vidas são vividas dentro do wantok e em competição com os wantoks vizinhos. Os wantoks são liderados por um Homem Grande. Ninguém nasce Homem Grande e o título também não pode ser deixado aos filhos. Em vez disso, a posição tem de ser conquistada em cada geração. Não é necessariamente atribuída aos que são fisicamente dominantes, mas antes aos que se revelarem capazes de conquistar a confiança da comunidade, geralmente na base da sua capacidade de distribuir porcos, conchas (usadas como moeda) e outros recursos pelos membros da tribo. Na sociedade melanésia tradicional, o Homem Grande tem de permanecer constantemente vigilante, uma vez que pode estar sempre prestes a surgir um competidor pela autoridade. Se não tiver recursos para distribuir, perderá o seu estatuto de líder3. Melanésia Quando, nos anos 1970, a Austrália concedeu a independência à Papuásia- Nova Guiné e a Grã-Bretanha fez o mesmo às Ilhas Salomão, ambas as ex- colónias estabeleceram formas de governo modernas inspiradas no «modelo Westminter», nos quais os cidadãos escolhem os membros do Parlamento em eleições multipartidárias regulares. Na Austrália e na Grã-Bretanha, as escolhas políticas giram em torno do Partido Trabalhista de centro-esquerda e de um partido conservador (o Partido Liberal na Austrália, os Tories na Grã- Bretanha). Os eleitores tomam as suas decisões, acima de tudo, com base na ideologia e nas propostas políticas (consoante desejem, por exemplo, maior proteção governamental ou políticas mais orientadas para o mercado). Quando este sistema político foi transposto para a Melanésia, porém, o resultado foi o caos. A principal razão foi o facto de a maioria dos eleitores na Melanésia não votar em programas políticos; eles apoiam, pelo contrário, o seu Homem Grande e o respetivo wantok. Se o Homem Grande (e ocasionalmente, a Mulher Grande) conseguir ser eleito para o Parlamento, o novo deputado utilizará a sua influência para direcionar os recursos do governo para o seu wantok, de maneira a ajudar os seus apoiantes em coisas como as propinas escolares, as despesas funerárias ou projetos de construção. Apesar da existência de um governo nacional, com todos os adereços da soberania – como uma bandeira e um exército –, poucos residentes da Melanésia possuem um sentido de pertença a uma nação mais ampla, ou sequer um mundo social que ultrapasse a escala do seu wantok. Os parlamentos da Papuásia-Nova Guiné e das Ilhas Salomão não têm partidos políticos coerentes; estão repletos de líderes individuais, cada um dos quais procura obter tantos porcos quanto for possível para a sua exígua base de apoio4. O sistema social tribal da Melanésia limita o desenvolvimento económico porque impede a emergência de direitos de propriedade modernos. Tanto na Papuásia-Nova Guiné como nas Ilhas Salomão, mais de 95% da superfície pertencem ao que se costuma designar propriedade consuetudinária da terra. Segundo regras consagradas pela tradição, a propriedade é privada mas detida informalmente (ou seja, sem qualquer documentação legal) por grupos familiares, que possuem direitos simultaneamente coletivos e individuais sobre diferentes parcelas de terreno. A propriedade tem um significado não só económico mas também espiritual, uma vez que os parentes mortos são enterrados em certos locais nos terrenos do wantok. Ninguém no wantok, incluindo o Homem Grande, tem o direito exclusivo de alienar a propriedade da terra a pessoas de fora5. Uma companhia mineira ou de extração de óleo de palma que procure obter uma concessão vê-se forçada a negociar com centenas, e por vezes milhares, de proprietários, sem que exista um estatuto que delimite os direitos sobre as terras ao abrigo das regras tradicionais6. Do ponto de vista de muitos estrangeiros, o comportamento dos políticos melanésios parece uma forma de corrupção política. Mas, do ponto de vista do sistema social tradicional da ilha, o Homem Grande está simplesmente a fazer aquilo que os Homens Grandes sempre fizeram, que é redistribuir os recursos pelos seus parentes. Com a exceção de que, hoje, têm acesso, não apenas a porcos e conchas, mas também a recursos das concessões mineiras e madeireiras. O voo de Port Moresby, capital da Papuásia-Nova Guiné, até Cairns ou Brisbane, na Austrália, demora apenas duas horas, mas ao longo da viagem fica-se com a sensação de estar a atravessar vários milhares de anos de desenvolvimento político. Ao refletir acerca dos desafios ao desenvolvimento político na Melanésia, comecei a interrogar-me acerca da forma que assumiu a transição de uma sociedade tribal para outra dotada de Estado, de como os direitos de propriedade modernos evoluíram a partir de direitos consuetudinários e de como sistemas legais formais, dependentes da concretização por uma espécie de terceira parte que não existe na Melanésia tradicional, fizeram a sua primeira aparição. Refletindo um pouco mais, porém, pareceu-me que talvez fosse um preconceito pensar que as sociedades modernas terão evoluído assim tanto relativamente à Melanésia, uma vez que os Homens Grandes – ou seja, políticos que distribuem recursos pelos seus parentes e apoiantes – são omnipresentes no mundo contemporâneo, incluindo no Congresso dos Estados Unidos da América. Se o desenvolvimento político implicasse o movimento para além das relações patrimoniais e da política personalizada, seria necessário explicar a razão pela qual estas práticas sobreviveram em vários sítios e porque é que sistemas aparentemente modernos reincidiram tão frequentemente nelas. As respostas a muitas destas questões não podiam ser encontradas em Political Order in Changing Societies; na revisitação do tópico de Huntington, esta pré-história exigiria uma considerável clarificação. Daí resultou este livro, que se debruça sobre as origens históricas das instituições políticas, bem como sobre o processo de declínio político. Este é o primeiro de dois volumes e lida com o desenvolvimento político desde os tempos pré-históricos até aproximadamente à véspera das revoluções francesa e americana. Este volume diz respeito ao passado – não começa efetivamente com a história humana registada, mas com os antecessores primatas da humanidade. As primeiras quatro partes lidam com a pré-história humana, as origens do Estado, o primado do Direito e, finalmente, a responsabilização governamental. O segundo volume transportará a história até ao presente, dedicando especial atenção ao impacto que as instituições ocidentais tiveram sobre as instituições de sociedades não-ocidentais à medida que estas procuraram modernizar-se. Irá então descrever de que forma o desenvolvimento político ocorre no mundo contemporâneo. É extremamente importante ler este volume para antecipar o que virá no segundo. Como procuro esclarecer no último capítulo deste livro, o desenvolvimento político no mundo moderno ocorre em condições substancialmente diferentes das que caracterizaram o período anterior ao século XVIII. A partir do momento em que se deu a Revolução Industrial e as sociedades humanas saíram das condições malthusianas em que haviam vivido até então, uma nova dinâmica foi acrescentada ao processo de transformação social, que viria a assumir enormes consequências políticas. Os leitores deste volume poderão ficar com a impressão de que algumas das longas continuidades históricas aqui descritas implicam que as sociedades estão aprisionadas na sua própria história, mas na verdade vivemos hoje em condições muito diferentes e mais dinâmicas. Este livro cobre um vasto número de sociedades e períodos históricos; também utilizo material de outras disciplinas que não a minha, incluindo a antropologia, a economia e a biologia. Evidentemente que, num trabalho deste âmbito, tive de me apoiar quase exclusivamente em fontes secundárias para a minha pesquisa. Procurei passar este material pela maior quantidade possível de filtros especializados, mas é em todo o caso provável que tenha cometido erros ao longo do caminho, tanto factuais como interpretativos. Apesar de muitos dos capítulos isolados poderem ficar aquém das exigências de pessoas cujo trabalho seja o estudo aprofundado de sociedades e períodos históricos específicos, parece-me existir uma virtude em olhar através do espaço e do tempo numa perspetiva comparada. Alguns dos padrões mais amplos do desenvolvimento político pura e simplesmente não são visíveis para aqueles que se focam de forma demasiado estreita em assuntos específicos. 1 Samuel P. Huntington, Political Order in Changing Societies (New Haven: Yale University Press, 2006). 2 Francis Fukuyama, State-Building: Governance and World Order in the 21st Century (Ithaca: Cornell University Press, 2004). 3 Acerca dos sistemas redistributivos em geral, ver Karl Polanyi, «The Economy as an Instituted Process», em Planyi e C.W. Arensberg, eds., Trade and Markets in the Early Empires (Nova Iorque: Free Press, 1957). 4 R. J. May, Disorderly Democracy: Political Turbulence and Institutional Reform in Papua New Guinea (Camberra: Australian National University State Society and Governance in Melanesia discussion paper 2003/03, 2003); Hank Nelson, Papua New Guinea: when the Extravagant Exception is No Longer the Exception (Camberra: Australian National University, 2003); Benjamin Reilly, «Political Engineering and Party Politics in Papua New Guinea», Party Politics 8, n.º 6 (2002): 701-18. 5 Para uma discussão acerca dos prós e contras da posse tradicional de terras, ver Tim Curtin, Harmut Holzknecht e Peter Lamour, Land Registration in Papua New Guinea: Competing Perspectives (Camberra: State Society and Governance in Melanesia discussion paper 2003/01, 2003). 6 Para uma análise detalhada das dificuldades em negociar direitos de propriedade na Papuásia-Nova Guiné, ver Kathy Whimp, «Indigenous Land Owners and Representation in PNG and Australia», trabalho não publicado, 5 de março de 1998.
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