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As metamorfoses PDF

437 Pages·2014·10.613 MB·Portuguese
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Ovídio As Metamorfoses Florianópolis, UFSC, 2014   1 Dados para ficha catalográfica: ÍNDICE As Metamorfoses, de Ovídio Edição bilíngue De mudanças e de formas: para uma leitura de As metamorfoses de com apresentação, tradução e glossário Ovídio, Zilma Gesser Nunes, 03 As metamorfoses d’As metamorfoses, Mauri Furlan, 09 Organização: Livro I, por Cláudio Aquati, 19 Zilma Gesser Nunes Livro II, por Juvino Alves Maia Júnior, 43 Mauri Furlan Livro III, por Paulo Sérgio de Vasconcellos, 69 Livro IV, por Matheus Trevizam, 90 Título original latino: Metamorphoses Livro V, por Luiz Henrique Queriquelli, 115 Autor: Ovídio (Publius Ovidius Naso, 43a.C.–17d.C.) Livro VI, por Arlete José Mota, 135 Livro VII, por Rodrigo Gonçalves, 155 Texto latino: Livro VIII, por Mílton Marques Júnior, 182 Ovid. Metamorphoses. Hugo Magnus (ed.). Gotha (Alemanha): Livro IX, por José Ernesto de Vargas & Fernando Coelho, 210 Friedrich Andreas Perthes, 1892. Livro X, por Sandra Braga Bianchet, 233 Livro XI, por Leila Teresinha Maraschin, 254 Tradução: As Metamorfoses Livro XII, por Mauri Furlan, 278 Tradutores: Livro XIII, por Anderson Martins Esteves, 297 Anderson Martins Esteves Livro XIV, por Antônio Martinez de Rezende, 324 Antônio Martinez de Rezende Livro XV, por Brunno V. G. Vieira, 350 Arlete José Mota Um glossário para ler As metamorfoses, Thaís Fernandes, 377 Brunno Vieira Glossário, 380 Cláudio Aquati Bibliografia, 434 Fernando Coelho José Ernesto de Vargas Juvino Maia Jr. Leila T. Maraschin Luiz Henrique Queriquelli Matheus Trevizam Mauri Furlan Milton Marques Paulo Sergio de Vasconcellos Rodrigo Gonçalves Sandra Bianchet   2 DE MUDANÇAS E DE FORMAS: da literatura grega e latina teriam escrito a seus pares, e Amores é PARA UMA LEITURA DE AS METAMORFOSES DE OVÍDIO composto por elegias organizadas em capítulos subsequentes à guisa de um romance. Essas duas obras são datadas de aproximadamente 20 a 15 a.C.. Já no início da era cristã, surge uma trilogia que dá Vem conhecer, posteridade, o poeta que fui sequência à temática anteriormente abordada, mas com elementos De amores ternos, o poeta que ora lês. que revelam um verdadeiro tratado pedagógico do amor. Dessa Sulmona é minha pátria, que fecundam frescas águas E que dista da Urbe nove vezes dez milhas. trilogia, a primeira obra é a Arte de amar, um manual de sedução Lá nasci; para que saibas a época, foi quando que ensina os homens a maneira de se aproximarem das mulheres e Um mesmo fado tiveram ambos os cônsules. conquistá-las (Livro I); os meios de que o amante pode dispor para Se de algo vale, o grau de cavaleiro herdei de antigos Avós, não de recente favor da fortuna. conservar a amada (Livro II) e os recursos de que as mulheres Não fui o primeiro rebento; tenho um irmão nascido podem se valer para agradarem aos homens (Livro III). Três vezes quatro meses já antes de mim. Esse tratado de Ovídio teria desagradado o Príncipe, em sua (...) Desde a infância ilustrávamos a mente; fez-nos ir época, que se empenhava numa campanha pela regeneração dos O pátrio zelo a Roma e aos seus mestres insignes. costumes em Roma, por isso, em sua segunda obra, Os remédios do Com seu ardor de jovem, meu irmão tinha nascido Amor, Ovídio trata de ensinar os homens maneiras de evitar as Para a eloquência, as pugnas verbosas do foro. Mas a mim, criança ainda, atraíam os mistérios armadilhas do filho de Vênus. Diz “aprendei a vos curar com quem Do céu e, às escondidas, a obra das Musas. aprendestes a amar” (1994, p. 27). Meu pai dizia: “Por que tentas um estudo vão? Da terceira obra da trilogia, Produtos de beleza para o rosto O próprio Homero não deixou riqueza alguma”. Tal fala me tocou; larguei o Helicão de vez das mulheres, resta apenas um fragmento, que apresenta recursos E tentei escrever palavras sem cadência: cosméticos para eliminar manchas, rugas e manter a pele do rosto Por si mesma, vinha a cadência certa do poema; viçosa: ervas, clara de ovo, aveia, mel (tudo em forma de receitas). Saía em verso quanto eu buscasse dizer. Depois dessa obra, Ovídio fecha um ciclo temático, tomando (Ovídio, Tristia IV, 10, v. 1-10; 15-26. o rumo agora da pesquisa mitológica. Transfere para o contexto da Trad. José Paulo Paes) cultura romana os grandes nomes da mitologia grega e escreve, então, a sua considerada obra-prima: As metamorfoses. Ovídio é autor, ainda, de os Fastos (compêndio das principais festividades O Centrum Inuestigationis Latinitatis, Núcleo de Pesquisa da romanas religiosas e cívicas, apresentadas mês a mês) e depois do Universidade Federal de Santa Catarina, propõe a presente edição ano 8 d.C., no exílio, por motivos nunca esclarecidos, escreve em bilíngue de As metamorfoses de Ovídio. A obra, que representa um tom de lamento e de protesto os Cantos tristes e as Cartas pônticas. universo significativo da Antiguidade Clássica, atravessou séculos e Em Íbis, Ovídio ataca um advogado e Haliêutica constitui-se de um ainda hoje se mantém, oferecendo sempre o que dizer. tratado sobre pesca, obras menores, escritas também no exílio. Esse O autor, Publius Ouidius Naso, viveu em Roma entre os anos é o retrato final de Ovídio, desprovido das regalias do Império e do de 43 a.C. e 17? d.C.. Foi um dos mais habilidosos poetas que viveu apadrinhamento do Ministro de Augusto, Mecenas, que cuidava dos na época do Imperador Romano Otávio Augusto. Ovídio é definido interesses de uma cultura voltada à manutenção da Pax Romana. por Cardoso (1989) como talentoso e culto, original, elegante, As metamorfoses constitui-se de um longo poema em versos irreverente e irônico. As suas primeiras obras tematizam o amor de hexâmetros, subdividido em 15 Livros, nos quais encadeia 246 modo peculiar. As Heróides são cartas de amor que grandes heroínas   3 lendas etiológicas1 – que narram as origens dos mais diversos seres científico e o tratamento é irônico; não é uma epopeia, ainda que (mares, astros, fontes, plantas, animais) como produto de tenha um tom épico, com narração, diz a autora. Cardoso o metamorfoses. As histórias são dispostas cronologicamente desde o considera como poema lírico pela caracterização pessoal, a caos até a apoteose de Júlio César. Nessa obra, Ovídio retoma a expressão de sentimentalidade, com uma sucessão de quadros. A temática mitológica inspirada em poetas alexandrinos tais como plasticidade desses quadros demonstra o poder de descrição e o Nicandro de Colofão, Antígono de Caristos, Calímaco e Partênio de cuidado com a construção de detalhes. Nicéia. As histórias são assim distribuídas: formação do mundo a A obra de Ovídio ressurge na Idade Média, a partir do século partir do caos, criação do homem, regeneração do homem, do tempo XI. No Renascimento, repercute a partir da obra de Spencer, primordial ao mítico: divindades, semi-deuses, heróis, e suas paixões, Marlowe, Shakespeare. Também com Wordsworth, L.Bloom, Elliot. como nas histórias de Apolo e Dafne, Narciso e Eco, Dédalo e Ícaro; Contemporaneamente, o poeta inglês Ted Hughes (1930 – 1998) os trabalhos de Hércules; Orfeu e Eurídice; Peleu e Tetis, Aquiles; também fez renascer a obra de Ovídio ao publicar Tales from Ovid chegada à guerra de Troia, reunindo mito e história; e conclui a obra, (1997), uma reescritura de 24 mitos d’As metamorfoses, contados na época do Divino Augusto. Atente-se para o fato de que o propósi- em versos. Na bela introdução ao seu livro, Hughes ressalta a to da arte, nesse período, era mostrar “a grandeza de Roma e de Au- importância da obra ovidiana para a poesia inglesa: Ovídio foi gusto” (Rostovtzeff, 1983, p. 191), cujos feitos grandiosos já tinham roubado abertamente por Chaucer que, por volta de 1300, contou, sido profetizados por Vênus. O governo de Augusto financiava mui- pela primeira vez em inglês, o mito de Pyramus and Thisbe. Mais tos poetas como Horácio, Virgílio, Ovídio, que enalteciam direta- tarde, deixou transparecer toda a influência que o poeta romano mente o Império e o Imperador correndo o risco, em caso contrário, exerceu sobre ele em seu famoso The Canterbury tales. de serem destinados ao exílio. Mas talvez o par mais interessante de Ovídio seja o maior dos A obra de Ovídio mereceu muitos estudos ao longo dos tem- escritores ingleses: Shakespeare. É principalmente sobre essa pos. A fortuna crítica de As metamorfoses é imensa e presente em relação que Hughes vai tratar em sua introdução, como que para todas as línguas literárias modernas ocidentais. O leitor interessado traçar uma linha que viria do poeta romano, passaria pelo poeta pode buscar análises generalizantes e minuciosas, que abrangem as- nacional da Inglaterra e chegaria até ele, também um poeta inglês, pectos políticos, sociais, literários, históricos, dentre outros. Ao diri- que se apropria de toda essa tradição de mais de 2 mil anos. Para girmo-nos agora ao público que adentra pela primeira vez este fan- Hughes, o trabalho mais ovidiano de Shakespeare é a tragédia Titus tástico mundo de Ovídio, apresentamos algumas informações Andronicus, embora ele também cite o poema Venus and Adonis e a básicas e gerais sobre a obra, com o objetivo de apontar para vários peça Cymbeline como obras shakesperianas que possuem evidente aspectos que podem ser aprofundados, de indicar caminhos a serem inspiração em Ovídio. Apesar das coincidências de temas, de estilo e trilhados e a atentar, durante a leitura, para o reconhecimento desse das alusões de Shakespeare a passagens de obras de Ovídio, o que clássico, em textos de diferentes culturas. mais aproxima os dois poetas, segundo Hughes, é seu interesse pela Segundo Cardoso, esse longo poema é de difícil classificação paixão. Aos dois importa aquilo que a pessoa sente quando está quanto ao gênero literário. Com lendas etiológicas, ao gosto possuída por esse sentimento, “não apenas uma paixão comum, mas alexandrino, não é um poema didático, pois não tem caráter a paixão humana in extremis – paixão onde ela entra em combustão, 1 Cardoso (1989, p. 81) define aquilo que outros chamam de mitos, de histórias, de contos,            c  o    m      o    “    l  e  n    d    a  s     e    t  i  o    ló    g    i  c  a    s  ”    .                               4 ou se eleva, ou se transforma em uma experiência do sobrenatural.”2 as transformaram — e conduzi um canto ininterrupto desde as O percurso seguido por Ovídio n’As metamorfoses é o caminho da origens do mundo até os meus dias. (Livro I, v. 1-4)3 paixão humana, da paixão insuportável que se diviniza e mistifica Com estilo descritivo, dispõe em sua obra personagens através do ato da metamorfose. trabalhadas psicologicamente que, por motivo de dor e paixão, Se Ovídio foi o modelo de Shakespeare, o modelo de Ovídio é sofrem as mais diferentes mudanças de forma. Hesíodo, mais precisamente a Teogonia, no que poderia ser definido Segundo Italo Calvino (1993), há, na obra de Ovídio, uma como “collective poem”: uma série de histórias independentes contiguidade universal: o mundo dos deuses celestes é aproximado ligadas, pelo tema da metamorfose, pelo contraste, pelas genealogias. ao mundo romano de todos os dias (divisão em classes, hábitos Esse elo que liga as histórias foi observado também por Calvino cotidianos, amores compulsivos). Contudo, os limites são imprecisos (1993) que faz referência às Mil e uma noites quando comenta a entre esses mundos diferentes: mas o céu está sempre sobre as terras questão dos relatos encadeados que aumentam, no texto de Ovídio, a e os mares, delimitando seu lugar acima, que é o da morada dos impressão de densidade e aglomeração e de enredamento. deuses superiores. A mudança dos temas é também a do tom e do estilo: do épico Ainda para Calvino, As metamorfoses constituem um poema solene, ao elegíaco lírico, passagens dramáticas, atitudes bucólicas. da multiplicidade de vozes, multiplicidade de deuses, da rapidez do No que diz respeito às cenas dramáticas, especialmente de ritmo acelerado, das imagens que se sobrepõem. metamorfoses, É uma narrativa de histórias encaixadas, personagens que contam outras histórias: essa forma de exposição, que multiplica os Esse sofrimento excruciante, essa imagem aterradora de um ser humano sendo transmutado é associada à beleza da libertação níveis narrativos e de vozes, produz um efeito de labirinto: formando um belíssimo quadro, mais do que belo é sublime. Es- movendo-se sempre, em uma dimensão fora do tempo. Essa técnica sa união entre o belo e o feio ou grotesco, nos termos de Victor permite adequar, adaptar o tom, o estilo e a cor da história ao Hugo, é a própria manifestação do sublime, é o que provoca a personagem que narra, como e.g., o rapto de Proserpina, narrado por catarse. Assim, todo esse martírio é necessário para a purificação, o personagem, na maioria das vezes, é transformado em algo que Calíope, musa da poesia épica. As minieides que se negam a se eleva, que vai em direção a algo maior, ou aves que vão ao participar das festividades em honra a Baco e se propoem à céu, ou o rio que corre para o mar, ou ainda plantas que crescem continuidade do trabalho, ocupando-se, também, em contar histórias de baixo para cima, começando pela raiz e subindo até a copa de uma árvore ou uma flor desabrochada (Santos, 2011, p. 24). “Enquanto as outras param e celebram ritos falsos, também nós, que Palas, deusa melhor, ocupa, aliviemos o útil trabalho das Ovídio inicia sua narrativa anunciando: mãos com matizada fala: alternadamente algo, que não deixe o tempo parecer longo, narremos em comum a desocupados Transmudadas em novos corpos meu espírito leva-me a cantar as ouvidos.” Aprovam as palavras e as irmãs mandam a primeira formas. Ó deuses! Inspirai-me os planos — enfim: vós também contar. Ela pensa no que narrar dentre muitas histórias (pois as conhecia em abundância) e hesita se conta de ti, Dércetis da Babilônia, que os palestinos creem, mudando-se a forma e recobrindo escamas os membros, ter revolvido lagos; ou antes 2 “Not just ordinary passion either, but human passion in extremis – passion where it            c  o    m      b  u    s  t  s    ,   o    r    l  e    v  i  t  a    t  e  s    ,  o    r    m      u  t  a    t  e  s      in      to an experience of the supernatural.” (Hughes, 1997, p. 3 As citações do texto de As metamorfoses serão todas da presente edição e, portanto, dos IX).            t  r  a  d    u    t  o    r  e  s     d    o    s    r  e    s  p    e  c    t  i  v  o    s    L    i  v    r  o    s    c  i  t    ados.   5 como a filha dela, crescendo-lhe penas, passou os últimos anos apresenta formas e define tipos que são repetidos e reforçados pela em brancas torres; ou como com o canto e com ervas bem fortes literatura. uma Náiade mudou em tácitos peixes corpos juvenis, até passar O mito se mantém, carrega em si a noção de fluidez temporal, pelo mesmo; ou por que a árvore que dava frutos brancos agora de resgate de um passado e de um futuro inconcluso. O mito se dá negros pelo contágio do sangue. (Livro IV, v. 37-52) perpetua pelo processo de reinterpretação, em decorrência de Essas histórias, que, utilizando as palavras de Mircea Eliade, situações novas que cada contexto requer. As circunstâncias se poderíamos chamar de sagradas, revelam a cultura de uma época, modificam e os mitos se adaptam a elas, conforme dados que nos registram a maneira como certas realidades passaram a existir. fornece a história. Os mitos são matéria prima para compreensão, Segundo Eliade, hoje, de situações e conceitos que só serão lidos na sua profundidade se assimilada a noção primordial. Narciso, assim, não é um mero o mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que autocentrado, mas transfere para a noção de narcisismo toda uma pode ser abordada e interpretada em perspectivas múltiplas e carga de interpretação que passa pelo autoconhecimento. O eco que complementares... o mito conta uma história sagrada, relata um ressoa de um rochedo será melhor compreendido se a ninfa Eco for acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fa- ouvida em sua dor e sua paixão por Narciso; Romeu e Julieta terá buloso dos começos... o mito conta, graças aos feitos dos seres novas tintas, se colorido com o sangue de Píramo e Tisbe; o filho de sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, quer seja uma realidade total, o Cosmos, quer apenas um fragmento, uma ilha, Hermes e Afrodite lança nova leitura, ao se mostrar na figura de uma espécie vegetal, um comportamento humano, é sempre por- Hermafrodita; as teias das Aracnes não serão mais as mesmas após a tanto uma narração de uma criação, descreve-se como uma coisa cena do golpe de Palas; voar como Ícaro, ou dirigir a carruagem do foi produzida, como começou a existir. (1963, p. 12-13) Sol como Faetonte, dupla desobediência, pura aventura juvenil desde sempre; pobre Orfeu; pobre Jacinto; pobre Mirra; afortunado De acordo com o mesmo autor, Pigmaleão, cada uma dessas figuras gerando uma linguagem, uma realidade que será retomada em diferentes épocas e contextos, mas o mito é considerado como uma história sagrada, e portanto uma suas bases passam pela compreensão da história original. história verdadeira, porque se refere sempre a realidades. O mito cosmogônico é verdadeiro porque a existência do mundo está aí Ovídio conclui sua obra com a narrativa sobre “O Divino para o provar, o mito da origem da morte é também verdadeiro Júlio”, caracterizando seu tempo. No Epílogo, registra porque a mortalidade do homem prova-o... e pelo fato de o mito relatar as gestas dos seres sobrenaturais e manifestações dos seus Eis que erigi uma obra à qual nem cólera de Júpiter, nem ferro e poderes sagrados, ele torna-se o modelo exemplar de todas as fogo algum, nem velhice voraz abolirá. Quando quiser, pode atividades humanas significativas. (1963, p. 13) extinguir meu tempo incerto aquele dia que tem do meu corpo, nada mais que do meu corpo, a posse: alcançarei, porém, O mito, nessa perspectiva, pode ser lido como uma narrativa eternizado pela melhor parte de mim, os astros do alto, e com caráter explicativo ou simbólico relacionada a uma determinada imperecível nosso nome há de tornar-se, e, onde quer que o romano poderio terras anexe, ecoarei no povo pelos lábios e, se cultura. O mito não é fixo, modifica-se com o homem que é um ser há verdade em profecias de poetas, famoso séculos afora viverei. histórico, conforme as circunstâncias, é memória coletiva fixada (Livro XV, v. 871-879) pela oralidade, é revelação do mundo, é o modo como um povo ou civilização entende e interpreta a existência. Assim sendo, o mito Dos bons poetas, valem os presságios. Ovídio tornou-se um clássico naquilo que diz Calvino “Os clássicos são livros que, quanto   6 mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato Portuguesa em 2012 pelas professoras Thaís Fernandes e Zilma mais se revelam novos, inesperados, inéditos.” (1993, p. 09) Gesser Nunes. A disciplina apresentou como proposta a leitura de As A edição bilíngue que ora apresentamos baseou-se para a metamorfoses e a organização de um glossário e de um índice, a tradução na edição de Hugo Magnus (1914). Os quinze Livros que partir daquilo que os próprios alunos consideraram importante compõem As metamorfoses trazem duzentas e quarenta e seis lendas figurar nessas relações. A proposta da disciplina foi ler a obra de e foram aqui traduzidos por dezesseis diferentes tradutores Ovídio com olhar atento e anotar nomes de pessoas, de deuses, brasileiros, caracterizando um jeito multiforme de reapresentar o epítetos, lugares, ventos, seres mitológicos e algum vocabulário que texto de Ovídio. Os tradutores são: precisasse de esclarecimento, a partir da visão do aluno. O trabalho elaborado por eles foi posteriormente assimilado na organização Livro I: Cláudio Aquati (UNESP) geral do glossário por Thaís Fernandes, Lygia Barbachan de Livro II: Juvino Maia Jr. (UFPB) Albuquerque Schmitz e Juliana da Rosa. Após o texto traduzido, o Livro III: Paulo Sergio de Vasconcellos (UNICAMP) leitor desta edição contará com uma lista de mais de mil verbetes Livro IV: Matheus Trevizam (UFMG) que explicam e ampliam a obra d’As metamorfoses. O processo de Livro V: Luiz Henrique Queriquelli (UFSC/UNISUL) elaboração do glossário e sua estrutura estão explicitados no texto, Livro VI: Arlete José Mota (UFRJ) que o precede, Um glossário para ler As metamorfoses. Livro VII: Rodrigo Gonçalves (UFPR) Por fim, gostaríamos de fazer um agradecimento especial aos Livro VIII: Milton Marques (UFPB) alunos Aline Oliveira Souza, Ana Luiza Leite Bado, Daniela Livro IX: José Ernesto de Vargas e Fernando Coelho (UFSC) Cristina da Silva, Gilmarina Signorini Subutzki, Giuseppe Freitas da Livro X: Sandra Bianchet (UFMG) Cunha Varaschin, Jacqueline Tonera Soares, Jair Stedile, Juliane Livro XI: Leila Maraschin (UFSM) Motta, Karine Schmidt, Lúcia Telexa, Luiza Andrade Wiggers, Livro XII: Mauri Furlan (UFSC) Márlio Aguiar, Matheus Rodrigues Lima Affonso Garcia, Meiry Livro XIII: Anderson Martins Esteves (UFRJ) Peruchi Mezari, Mirela Bráz, Morgana Ferreira, Paula Regina Scoz Livro XIV: Antônio Martinez de Rezende (UFMG) Domingos Damázio, Rafael Reginato Moura, Richard Costa, Livro XV: Brunno Vieira (UNESP) Samanta Rosa Maia, Silvio Somer, Suzy Zaparoli, Tainá Fabrin de Castro, Vanessa Inácio, Viviane Lima Ferreira e Xênia Conrat. A elaboração do glossário para ler As metamorfoses, do índice remissivo e a pesquisa bibliográfica, bem como a coordenação do projeto ficaram a cargo da equipe de professores do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas (DLLV), com a Elisana De Carli parceria da profa. Thaís Fernandes (DLLV) e de alunas da [email protected] graduação do Curso de Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Thaís Fernandes Língua Portuguesa da UFSC na organização final do glossário: [email protected] Lygia Barbachan de Albuquerque Schmitz e Juliana da Rosa. Zilma Gesser Nunes Além disso, tivemos a colaboração dos alunos que [email protected] frequentaram a disciplina “Literatura Latina: tradução”, ministrada ao Curso de Letras - Língua Portuguesa e Literaturas de Língua   7 Referências bibliográficas CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989. CONTE, Gian B. Latin Literature: a history. Tradução de J.Solodow. London: The John Hopkins University Press, 1994. ELIADE, Mircea. Aspectos do mito, Lisboa: Edições 70, 1963. HUGHES, Ted. Tales from Ovid. New York: Farrar Straus Giroux, 1997. OVID. Metamorphoses. Hugo Magnus, ed. Gotha: Friedrich Andreas Perthes, 1892. OVÍDIO. Poemas da carne e do exílio. Seleção, tradução, introdução e notas de José Paulo Paes, São Paulo, Cia das Letras, 1997. ______ . Os remédios do Amor. Tradução de Antônio da Silveira Mendonça. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. ROSTOVTZEFF, M. História de Roma. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1983. SANTOS, Renata. A tecitura do sublime n’As metamorfoses de Ovídio. TCC apresentado como requisito ao Bacharelado do Curso de Letras-Português da UFSC. Orientação: Profa. Dra. Zilma Gesser Nunes, 2011.   8 AS METAMORFOSES D’AS METAMORFOSES inscreve naquilo que lê e escreve. Essa co-autoria do tradutor se plasma em cada escolha que faz, em cada modo de significar que (re)produz – o que ultrapassa o simples sentido comunicante, e cria Tradução é metamorfose. texto, discurso. Essa não é uma definição clássica nos Estudos da Tradução sobre a tarefa do tradutor – sequer é uma definição já precisada –, Há comumente na concepção de tradução uma confusão entre o que seja da ordem da língua e o que seja da ordem do discurso. mas, sem dúvida, presta-se enquanto um conceito capaz de abranger Traduzir não é passar o que é dito numa língua a outra, mas é distintas correntes e concepções da tradução, porque abarca a noção produzir um discurso. Passar de uma língua a outra é cuidar geral de que uma tradução, por sua natureza, nunca é o texto fonte, apenas do sentido, da mensagem. O discurso é a atividade de um nunca é o mesmo dizer, nunca é a mesma coisa: a tradução se faz sujeito falante, é uma escritura, ou seja, a subjetivação que para ser ‘outro’, ela só comporta ‘o mesmo’ ao realizar-se como transforma a língua em texto. (Furlan, 2013, p. 289) outro, ao re-criar-se, trans-formar-se, meta-morfosear-se. Um tal E, assim, cada tradutor recria seu autor primeiro; assim, conceito de tradução como metamorfose não implica defesa podemos encontrar tão variadas faces de um mesmo escritor e de um prioritária do traduzir como adaptação, imitação, ou mera referência mesmo escrito. livre a outro texto, nem advoga por tantas teorias que privilegiam o Desde a Idade Média vimos traduzindo e retraduzindo os sentido, e tampouco se opõe à concepção de tradução como forma clássicos, algo que se deve, em grande parte, à necessidade de (Walter Benjamin), como letra (Antoine Berman), como texto reabrirmos repetidamente o acesso às obras que constituem nosso (Henri Meschonnic). solo religioso, filosófico, literário e poético; às obras que dominaram Tradução é metamorfose. E nessa metamorfose se encontra a durante muito tempo nossa criação literária e que, por isso, sua maior possibilidade de os grandes textos literários, os clássicos, retradução moderna é chamada por Berman de memória repatriante serem lidos universalmente. A tradução é um prolongamento (1985[2012, p. 159]). inevitável da literatura, e deve prestar contas a ela. A possibilidade Para o tradutor – observa o teórico francês –, retraduzir é de a tradução tornar-se texto, obra literária, surge quando o texto deparar-se com ao menos dois textos: o original e uma tradução. fonte se trans-porta e é trans-portado – por detrás dessa metáfora, Considerando, além disso, que as línguas ocidentais, no estado atual que significa que a tradução não pode ser somente passiva se quiser em que se encontram, já atingiram um elevado grau de maturidade, é que o texto primeiro continue vivo, há uma concepção de tradução nesse espaço que se move a possibilidade de a retradução tornar-se que extrapola aquela noção tradicional que dá primazia ao sentido uma verdadeira obra literária, porque pode ousar trazer o estrangeiro em detrimento da forma, e o faz mediante uma concepção histórico- para a própria língua materna, abrir-se ao Outro e rejuvenescer a materialista da linguagem que põe fim ao reinado do sentido objetivo, imanente, imutável, ahistórico4, historicizando a escrita e o própria língua (Berman, 2012, p. 138). Retraduzimos, pois, para podermos ler traduções como obras, como clássicos. escritor, a leitura e o leitor, a tradução e o tradutor. E ao lermos uma tradução, como avaliá-la? Já insistia Em sendo toda escritura uma prática de um sujeito Meschonnic que, uma vez concebida a tradução como reenunciação (Meschonnic, 1973), o tradutor é co-autor da obra na língua da específica de um sujeito histórico (1973, p. 308), recoloca-se a tradução, e, assim como o autor primeiro, é histórico, e se lê- questão “é uma tradução correta?” nos termos “para quem?”. Quem 4 Cf. FURLAN, M., “Retraduzir é preciso”, in Scientia Traductionis n.13 (2013).                                                                                                                   9 traduz o quê e para quem é um princípio norteador para uma análise, As leituras do original, por sua vez, também deixam de lado uma crítica e uma prática de tradução. a tradução, mas não esquecem aquelas zonas textuais problemáticas Na mesma linha de Meschonnic, em Pour une critique des e aquelas felizes, que atuarão na confrontação futura. A leitura do traductions: John Donne (1995), Berman propõe um método de original rastreia os traços estilísticos que configuram a escritura e a análise de traduções, que em nada tem a ver com ainda muitas língua do original e a tornam uma fonte de correlações sistemáticas. críticas hodiernas presas ao preconceito caduco do traduttore A leitura do original também deve recorrer a múltiplas leituras traditore, “fidelidade” ao original, “invisibilidade” do tradutor, etc. colaterais, de outras obras do autor, de obras diversas sobre este A Crítica abordada por Berman implica análise rigorosa de uma autor, sua época, etc. Traduzir exige leituras vastas e diversificadas. tradução, de seus traços fundamentais, do projeto que lhe deu “Traduz-se com livros.” (1995, p. 68). A futura confrontação origem, do horizonte no qual ela surgiu, da posição do tradutor, da rigorosa do original com a tradução vai se apoiar em exemplos, e a “apreensão da verdade de uma tradução” (1995, p. 13-14). seleção destes requer muito cuidado. A partir de uma interpretação Sucintamente, podemos apresentar o método bermaniano de da obra, são recortadas algumas passagens que são os lugares onde análise de traduções como o que começa com leituras e releituras da a obra se condensa, se representa, se significa ou se simboliza: são tradução, e depois, separadas dessas, aquelas do original. As leituras as zonas significantes (1995, p. 70). da tradução levam à busca do autor do texto traduzido, não apenas Depois de penetrar o texto traduzido, reconhecer suas zonas quem é o tradutor, mas sobretudo sua posição tradutiva, seu projeto fracas e fortes, analisar e interpretar o original, e antes de se dirigir à de tradução e seu horizonte tradutivo. Somente então, procede-se à confrontação final, é necessário compreender a lógica do texto análise comparativa da tradução e do original. traduzido. Porque cada tradutor tem sua sistematicidade, sua Ler e reler a tradução, deixando completamente de lado o coerência própria, sua maneira de separar e espaçar, investiga-se o original e suspendendo qualquer julgamento precipitado, é a trabalho tradutivo e o tradutor. primeira etapa deste método analítico. Somente a leitura da tradução Diferentemente da questão sobre o autor, que busca os permite pressentir o texto traduzido como mantenedor de qualidade elementos biográficos, psicológicos, existenciais, etc, para iluminar de escrito na língua receptora, e verdadeiro texto (sistematicidade e sua obra, a questão de “quem é o tradutor” tem outra finalidade. correlatividade, organicidade de todos seus constituintes). A Importa saber se ele é nativo ou estrangeiro, se é ‘apenas’ tradutor releitura da tradução revela as zonas textuais problemáticas, onde se ou se exerce uma outra profissão significativa – como a de professor encontra sua defectividade, como quando o texto traduzido parece se –, se também é autor e produziu obras, de qual(is) língua(s) traduz, enfraquecer, se contradizer, perder o ritmo; ou demasiado fácil, qual sua relação com ela(s), se é bilíngue, que tipos de obras traduz demasiado corrente; ou mostra brutalmente palavras, expressões, comumente e que outras obras traduziu, se é politradutor ou frases que chocam; ou remetem à língua do original e configuram monotradutor, quais são seus domínios linguísticos e literários, se uma espécie de contaminação linguística. Por outro lado, ela revela escreveu artigos, estudos, teses, trabalhos sobre as obras que também zonas textuais felizes, que apresentam não apenas passagens traduziu, e, enfim, se escreveu sobre sua prática de tradutor, sobre os acabadas, mas de uma escritura-de-tradução que nenhum autor princípios que a guiam, sobre suas traduções e a tradução em geral. nativo teria podido escrever, uma escritura estrangeira harmoniosa Isso é bastante, mas pode não passar de pura “informação”. É passada à língua receptora, escritura-estrangeira produzida pelo preciso ir ainda além, e conhecer sua posição tradutiva, seu projeto tradutor em sua língua nativa que cria uma língua nova (1995, p. 65- de tradução e seu horizonte tradutivo (1995, p. 74). 66).   10

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