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As leis sociais - Um esboço de sociologia PDF

56 Pages·2011·1.95 MB·Portuguese
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COLEÇÃO RIZOMAS - VOL. 1 Gabriel Tarde As Leis Sociais Um campo social dirigido pela técnica, pelo consumo e pelas exigências do mercado não é apenas danoso ao meio ambiente: ele é também nocivo à subjetividade de seus membros. Parece um esboço de sociologia mesmo haver uma relação direta: quanto mais cresce o prodigioso corpo das sociedades modernas - mais máquinas, Tradução e notas de Frantisco Traverso Fuchs mais dispositivos, mais imagens, mais circulação de mercadorias - mais as subjetividades são diminuídas e amesquinhadas. Como disse Bergson, seria preciso inventar uma alma à altura desse corpo: novas maneiras de sentir e de pensar, novas possibilidades de vida. Cada cérebro é nele mesmo um rizoma que se ramifica em tantos outros rizomas; e se plantar árvores é muito bom, melhor ainda é cultivar rizomas e fazer com que proliferem uns nos outros. A coleção rizo m as, voltada para a tradução de grandes pensadores contemporâneos, foi concebida como um estímulo a esse esforço, que é de todos e de cada um. IS8N ôsasacbfe'i-i Universidade "uff" Federal Editora da UFF Fluminense editora da UFF © 2012 by Francisco T. Fuchs (Tradução brasileira) Sumário Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - Niterói - CEP. 24220- 900 — RJ — Brasil — Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: 2629-5288 - www.eduff.uff.br E-mai 1: [email protected] Nota do tradutor, 7 É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Prefácio, 17 Normalização: Uilza Cláudia Rufmo Damasceno Concepção de capa: F. T. Fuchs Capa e projeto gráfico: Marcos Antonio de Jesus Introdução, 19 Desenho da capa: M.C. Escher’s “Symmetry Drawing E21” © 2010 The M.C. Escher Company-Holland. Ali rights reserved. Primeiro Capítulo ________ Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Repetição dos fenômenos, 23 T181 Tarde, Gabriel 1843-1904 As leis sociais: um esboço de Sociologia/Gabriel Tarde; tradução e notas: Francisco Traverso Fuchs - Niterói: Editora da UFF, 2011. Segundo Capítulo 114 p. ; 21cm. Oposição dos fenômenos, 49 ISBN: 978-85-228-0669-0 Tradução de Les lois sociales. Esquisse d’une sociologie. Terceiro Capítulo 1. Sociologia I. Título Adaptação dos fenômenos, 83 _______ CDD 301 Universidade Federal Fluminense Conclusão, 109 Reitor: Roberto de Souza Salles Vice-Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello Pró-Reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação: Antonio Claudio Lucas da Diretor da EdUFF: Mauro Romero Leal Passos Seção de Editoração e Produção: Ricardo Borges Seção de Distribuição: Luciene P. de Moraes Seção de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos Comissão Editorial Presidente: Mauro Romero Leal Passos Ana Maria Martensen Roland Kaleff Eurídice Figueiredo Gizlene Neder Heraldo Silva da Costa Mattos Humberto Fernandes Machado Luiz Sérgio de Oliveira Marco Antonio Sloboda Cortez Maria Lais Pereira da Silva Renato de Souza Bravo Editora filiada a Rita Leal Paixão Simoni Lahud Guedes Associação Brasileira Tania de Vasconcellos das Editoras Universitárias Nota do tradutor Jean-Gabriel de Tarde nasceu em Sarlat (hoje Sarlat-la- -Canéda) no ano de 1843. Passou metade da vida servindo como juiz na região de Dordogne, mas em 1894 foi nomeado diretor do serviço de estatística judiciária do Ministério da Justiça, saindo da província para viver em Paris. Dois anos depois, começou a le­ cionar na École Libre des Sciences Politiques, e posteriormente no Collège Libre des Sciences Sociales, onde proferiu as conferências reunidas neste livro. No início de 1900 obteve a cadeira de Filosofia Moderna no Collège de France,1 que ocupou até 1904, ano de sua morte. Celebrado em sua época como o grande nome da sociologia francesa, Tarde polemizou com Lombroso e Durkheim e escreveu obras que ajudaram a fundar a sociologia e a criminologia moder­ nas. Já nos primeiros anos do século XX, no entanto, a situação se inverteu a favor de Durkheim, que tornou-se o principal representante da sociologia como disciplina científica, ao passo que Tarde havia sido evacua­ do para a prestigiosa (porém irrelevante) posição de mero “precursor” - e um precursor não muito bom, já que havia sido marcado para sempre pelos pecados do “psicologismo” e do “espiritualismo”.2 Muitos anos se passariam até que o panorama mudasse novamente, desta vez em favor de Tarde. Pode-se dizer que essa virada começou a acontecer em 1968, quando Gilles Deleuze o apresentou como o inventor de uma nova dialética da diferença e 1 Bergson, que também havia concorrido a essa vaga, obteve três meses depois a cadeira de Filosofia Grega e Latina, assumindo após a morte deTarde a cadeira de Filosofia Moderna. Bergson, Henri. Mélanges, Paris, PUF, 1972, p. 415,417 e 637. 2 Latour, Bruno. Gabriel Tarde and the End ofthe Social, www.bruno-latour.fr/sites/default/ files/82-TARDE-JOYCE-SOCIAL-GB.pdf (acessado em 11 de agosto de 2010). 8 As Leis Sociais Gabriel Tarde 9 da repetição.3 Com efeito, graças a Deleuze, Latour e outros, temos deiras repetições, oposições e adaptações, e que a sociologia só hoje uma ideia muito mais adequada a respeito do pensamento de ganhará status de ciência a partir do momento em que fizer o mes­ Tarde e de sua importância. mo. Ora, para alcançar esse objetivo, a sociologia precisa descer As Leis Sociais, publicado originalmente em 1898 a partir de até os “fatos elementares”, infinitesimais, que são também os fatos uma série de conferências realizadas no ano anterior, oferece uma “verdadeiramente explicativos”. Assim como a biologia descobriu breve síntese do pensamento tardeano e é uma excelente introdu­ na célula e na atividade celular o fato biológico elementar, é preciso ção à obra de Gabriel Tarde. 0 autor não apenas apresenta neste que a sociologia descubra o fato social elementar. Isso equivale a livro seus três conceitos fundamentais, abordados separadamente dizer que, para ultrapassar as analogias vãs e as entidades imagi­ em livros anteriores, mas também mostra as relações existentes nárias que ainda encontravam eco na sociologia de sua época (por entre eles, estabelecendo toda uma hierarquia complexa entre a exemplo, as analogias entre as sociedades e os organismos vivos, repetição, a oposição e a adaptação ou invenção. Trabalhando simul­ a crença no suposto “gênio” de um povo ou de uma raça, a socie­ taneamente no plano da epistemologia e da ciência, Tarde procura dade como uma espécie de “pessoa divina” exterior e superior aos mostrar que os fenómenos físicos, biológicos e sociais se produzem indivíduos, moldando-os sem jamais ser por eles moldada), Tarde a partir de inumeráveis repetições, oposições e adaptações, e que precisava descer até o plano molecular da sociedade, lá onde ela é o conhecimento é primeiramente construído a partir da percepção efetivamente produzida por movimentos reais: ou seja, por atos de de repetições, oposições e adaptações “grandiosas” - vagas, impre­ indivíduos sobre indivíduos. No entanto, assim como o átomo não cisas ou mesmo francamente errôneas - e vai ganhando contornos é o limite absoluto da matéria, o indivíduo não constitui o termo mais precisos à medida que repetições, oposições e adaptações último de um campo social. Aquém do indivíduo existe algo que é menos grosseiras vão sendo percebidas: pré-individual, e embora o indivíduo seja o único agente social, ele mesmo só pode ser compreendido a partir dos elementos infinite­ É justamente porque tudo no mundo dos fatos caminha do simais que o constituem. Esses elementos são os desejos e crenças pequeno ao grande que, no mundo das ideias, espelho inver­ que atravessam os indivíduos e que se propagam, se opõem e se tido do primeiro, tudo caminha do grande para o pequeno adaptam em seu percurso. Não é que Tarde transforme os homens e, pelo progresso da análise, só atinge os fatos elementares em impessoais “portadores” de desejos e crenças; é antes como verdadeiramente explicativos em último lugar.4 se o indivíduo produzisse sua diferença justamente no jogo aberto entre os desejos e crenças que o atravessam e que ele incorpora, A tese central defendida por Tarde neste seu esboço de opõe ou modifica, dando origem (nesse último caso) a um novo sociologia é a de que todas as ciências atingiram a maturidade ao desejo ou crença. Se a Ciência tem por objeto aquilo que se repete, descobrir e compreender, em seus respectivos objetos, as verda­ apenas a Arte poderá dar conta dessas singularidades que são os indivíduos; mas se os indivíduos são sui generis, é porque cada 3 Deleuze, Gilles. DifférenceetRépétition, Paris, PUF, 1981 (1968), p. 38,104."0 conjunto da um deles é um lance de dados único, lançado e relançado a cada filosofia de Tarde se apresenta deste modo: uma dialética da diferença e da repetição, momento a partir das singularidades pré-individuais (desejos e que funda sobre toda uma cosmologia a possibilidade de uma microssociologia.” 4 Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, Paris, Félix Alcan, 1898, p. 88. crenças) que o atravessam e constituem. E se porventura uma 10 As Leis Sociais Gabriel Tarde 11 sociedade qualquer também apresenta esse aspecto sui generis, é Para concluir esta breve apresentação, gostaria de chamar a simplesmente porque ela é a integral de todos esses lances de da­ atenção para um ponto que me parece essencial. Nenhum homem, dos, a integração dinâmica de múltiplos processos de diferenciação. ainda que seja um visionário, consegue escapar inteiramente à sua Atento à revolução introduzida pelo cálculo diferencial e integral, época, e o leitor atento há de verificar, ao ler as entrelinhas (ou as Tarde esboçará (curiosamente, numa nota de pé de página) todo linhas mesmas) desta ou daquela passagem, que Tarde é um autor um método sociológico baseado em registros monográficos das do século XIX. Nada há de surpreendente nisso; em compensação, variações pontuais de desejos e crenças.5 Por fim, à guisa de con­ o que é verdadeiramente espantoso é que esse pensador intempes­ clusão, Tarde retorna a um tema esboçado na primeira conferência tivo, que não se alinhou a nenhuma escola ou corrente ideológica, e apresenta (ainda que à margem, como ele mesmo diz) algumas pudesse estar tão à frente de seu tempo. Segundo Bergson, o especulações cosmológicas sobre a natureza da própria matéria pensamento de Tarde (o infinitesimal no sentido absoluto), que, segundo ele, não é uma “poeira infinita” de elementos homogêneos, mas uma “multidão de nos conduz, por mil caminhos diferentes, a ver nas iniciati­ virtualidades elementares”. vas individuais e em sua irradiação a verdadeira causa do que se faz numa sociedade, e mesmo do que acontece no mundo. Seduzidos pelos admiráveis sucessos das ciências físicas, nós nos inclinamos excessivamente a construir as Eu diria que Tarde é um autor infinitamente mais fácil de ler ciências sociais sobre o mesmo modelo, a colocar como prin- do que de traduzir. Suas longas frases repletas de interpolações não chegam a dificultar a leitura, mas sem dúvida põem qualquer tradu­ Lois de L'Imitation, embora tenha usado a locução courant imitatif (corrente imitativa). Assim, meu primeiro impulso foi o de usar a palavra "corrente". Entretanto, ao traduzir- tor à prova. Tentei interferir o mínimo possível no estilo tardeano, -se rayon por corrente quebra-se o vínculo etimológico (e acima de tudo o vínculo ainda que algumas vezes tenha me sentido forçado, para efeito de iógico) entre o rayon (do qual todos os imitadores participam) e o rayonnement, que remete à fonte de uma novidade, ao seu inventor ou agenciador. Ficaria enfraquecida clareza, a alterar a pontuação e o ritmo das frases. Também tentei a importante analogia que o autor estabelece entre as"correntes imitativas"e as ondas não multiplicar desnecessariamente o número de notas, servindo- físicas: o leitor tenderia a pensar a "corrente" mais como uma "continuidade de ligação entre elos" do que como um fluxo que possui uma origem definida e qúe pode inter­ -me desse recurso ora para fornecer uma rápida referência, ora para ferir em outro fluxo, ou seja, como algo semelhante a uma onda eletromagnética. Por apontar uma curiosidade de estilo do texto original. Com relação fim, essa escolha tornaria mais difícil, para o leitor de língua portuguesa, a distinção entre as ocorrências de rayon e de courant no texto original. Minha segunda opção foi ao aspecto técnico ou conceituai da tradução, houve apenas uma o uso do termo onda para traduzir rayon. Nesse caso, somente o vínculo etimológico seria perdido; e nas passagens em que Tarde realmente utiliza o termo onde (onda), dificuldade realmente digna de nota.6 ele sempre se refere explicitamente a ondas físicas, o que tornaria mais fácil distinguir os dois usos. No entanto, embora tenha achado essa solução (onda imitativa), que foi 5 "Para compreender os estados sociais, é preciso surpreender ao vivo e em pormenores as aliás utilizada por Bergson, a mais elegante de todas, acabei optando pela tradução mudanças sociais; mas o inverso nâo é verdadeiro. Pode-se muito bem acumular cons­ literal da palavra rayon e de todas as locuções de que ela participa; raio, raio imitativo, tatações de estados sociais em todos os países do mundo, mas isso não fará aparecer a raios de exemplos. Se os próprios franceses experimentam um estranhamento diante lei de sua formação, que antes desaparecerá sob os fardos de documentos empilhados." da escolha original de Tarde, não há razão para suprimir essa estranheza na tradução. Tarde, Gabriel. Les Lois Sociales, op. cit., p. 154. Obviamente, essa escolha resolve, em definitivo, todas as dificuldades mencionadas 6 Tarde usa como noções correlatas as locuções rayon imitatif e rayonnement imitatif acima. Por fim, a palavra "irradiação" me pareceu, em todos os casos, bem melhor do (literalmente, "raio imitativo" e "irradiação imitativa"). Como notou Bruno Latour (op. que "influência", que é um dos significados de rayonnement e que seria uma tradução cit.), a locução raio imitativo é um tanto extravagante, e o próprio Tarde não a usou em aceitável em determinados contextos. 12 As Leis Sociais Gabriel Tarde 13 cípio que a evolução das sociedades deve obedecer a leis progressiva transformação do homem num homo economicus, sim­ inelutáveis, anos representar os acontecimentos históricos ples apêndice descartável de um sistema globalizado de produção como resultados necessários de forças cegas, impessoais, de bens e serviços.8 que se comporiam entre si mecanicamente. Contra essa Diante desse quadro sombrio, a microssociologia de Tarde tendência, que se tornou natural ao nosso espírito, toda é uma rajada de ar fresco. Ela vem nos mostrar que tudo, absolu­ a filosofia de Tarde protesta. As sociedades humanas são, tamente tudo, vem precisamente do infinitesimal, e que a solução sem dúvida, atravessadas por correntes; mas na origem de dos nossos problemas talvez não venha de um único e grandioso cada corrente há uma impulsão, e es sa impulsão vem de um projeto de sociedade, mas de pequenas ações e pensamentos ino­ homem. Assim como a história de cada um de nós se explica vadores capazes de infiltrar-se como a água e espalhar-se como pelas iniciativas tomadas e pelos hábitos contraídos, a vida o fogo. Assim como as moléculas são o infinitesimal da vida e as das sociedades é feita de invenções que surgiram aqui e ali partículas são o infinitesimal da matéria, nós somos - com nossos e das modificações duráveis a que essas invenções condu­ desejos e crenças - o infinitesimal da sociedade. E em todos os ziram ao serem adotadas.7 níveis, a potência inventiva está no infinitesimal. Evidentemente, nossos hábitos de pensamento tendem a O que essas palavras - e, portanto, o pensamento de Tarde rejeitar essa maneira de perceber a realidade social. Confron­ - têm a ver com nossa existência concreta, aqui e agora, para além tados com ela, nossa primeira reação será a de dizer que seria (ou aquém) de todas as querelas acadêmicas? Vivemos uma época muita pretensão pensar que podemos fazer alguma diferença na difícil, marcada pelo fim das utopias, pela consolidação de uma imensa ordem das coisas. Mas não seria exatamente o contrário? ordem mundial nada auspiciosa (que valoriza somente nossa força Não estaríamos sendo pretensiosos ao afirmar a existência de de trabalho e nossa capacidade de consumo) e por uma crescente limites a respeito dos quais nada sabemos? Pois a verdade é que dissolução do campo social. E nós vivemos o fim das utopias mais não sabemos, e jamais poderíamos saber de antemão, qual será o ou menos do mesmo modo que Nietzsche descreveu a derrocada alcance da menor das nossas ações e do mais casual dos nossos dos valores superiores: como se a ausência desses projetos de pensamentos. Hoje, quem nos sugere essa maneira de ver é a pró­ futuro decretasse a desvalorização generalizada da vida, a perda pria ciência contemporânea (tão diferente da ciência na época de do sentido, a total impossibilidade de ação, a vigência do cinismo. Tarde), uma vez que o chamado efeito borboleta aplica-se também Nós nos sentimos - e esse me parece ser o ponto crucial - peque­ às realidades sociais. Mas será que podemos atribuir essa maneira nos demais diante das enormes mudanças que teriam de ocorrer de ver a Gabriel Tarde sem com isso projetar retrospectivamente e das potências que supostamente teríamos de enfrentar. Em uma uma teoria científica relativamente recente no pensamento de um palavra, nós nos sentimos infinitesimais diante de um onipresente autor do século XIX? Sim, nós podemos e mesmo devemos fazê-lo, “sistema” ao qual nada escapa e que não saberíamos ou poderíamos como sugere este texto admirável que Bergson escreveu a respeito modificar. Afinal, já não temos um projeto que pudéssemos opor à de seu colega no Collège de France; Obviamente, não estou levando em consideração projetos de sociedade de caráter 7 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mélangés, op.cit., p. 799-800. explicitamente totalitário ou teocrático, ou seja, antidemocráticos por excelência. 14 As Leis Sociais Gabriel Tarde 15 responderam que isso era psicologia ou inter-psicologia, e Mostrando-nos como a menor de nossas iniciativas pode acar­ não sociologia. Mas isso não é verdade a não ser na aparên­ retar consequências incalculáveis, como um simples gesto cia, ou numa primeira aproximação: uma micro-imitação individual, caindo no meio social como uma pedra na água parece ir, com efeito, de um indivíduo a outro. Ao mesmo de uma bacia, o abala por inteiro por meio de ondas imita- tempo, e mais profundamente, ela remete a um fluxo ou a tivas que vão sempre se alargando, ela [a obra de Tarde] uma onda, e não ao indivíduo... A imitação, a oposição e a nos dá um sentimento agudo de nossa responsabilidade. invenção infinitesimais são como quanta de fluxos, que mar­ Revelando-nos tudo o que devemos a outrem, inventores em cam uma propagação, uma binarização ou uma conjugação certos momentos, mas imitadores durante a vida inteira, ela esclarece e fortifica em nós o sentimento de solidariedade. de crenças e desejos.10 Remetendo ao costume muitas coisas que normalmente con­ O que pode acontecer quando estudantes fazem uma reivin­ sideramos como pertencentes à natureza; fazendo remontar apensamentos individuais, a vontades individuais, aorigem dicação? Ou então: qual é a potência de uma ideia nova, ou talvez nem tão nova assim, porém formulada de uma nova maneira? Qual de transformações profundas da sociedade e da humanida­ de, ela nos desabitua a crer em fatalidades históricas; ela é a potência da mais inocente das crenças, do mais inocente dos desejos? Não se sabe, não se pode sabê-lo de antemão. Eu diria que nos convida a agir, a ganhar confiança em nós mesmos, a jamais desesperar com o presente, a encarar tranquilamente Tarde é um autor revolucionário: a revolução é que nao era o que pensávamos. “Tarde preocupou-se muito menos com a natureza o porvir. Para além da inteligência à qual se dirige, é a von­ tade que ela atinge, estimula e torna mais firme.9 íntima dos elementos, seu estado original e seu estado final, do que com sua ação recíproca”.11 O segredo de um devir revolucionário, que por sinal nada tem a ver com as “metas” de uma revolução, não Talvez estejamos demasiadamente acostumados a pensar depende necessariamente de barricadas, mas certamente envolve em termos de grandes projetos e de grandiosas finalidades para que possamos compreender de imediato o alcance dessas pala­ essa ação recíproca entre os homens — para além do otimismo e do pessimismo, das utopias e distopias, para além do desespero vras. Longe de constituírem uma exaltação das prerrogativas da consciência, o que seria um total contrassenso na medida em que e da própria esperança. remeteria ainda ao plano dos projetos e finalidades, elas se referem a forças que atravessam os indivíduos e, consequentemente, um campo social dado. Pois esse gesto ou iniciativa “individual” de que fala Bergson envolve precisamente algo que é de outra natureza: um puro fluxo de desejo ou crença. Os partidários de Durkheim 9 Bergson, Henri. Discours sur Gabriel Tarde (1909), IN Mélanges, op.cit., p. 800-801. Grifo 10 Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. Mille Plateaux, Paris, De minuit, 1980, p. 267. meu. " Bergson, Henri. Préface aux "Pages Choisies"de G. Tarde (1909), IN Mélanges, op.cit., p. 812. Prefácio Neste pequeno volume, que contém a substância de várias conferên­ cias realizadas no Collège libre des sciences sociales em outubro de 1897, tentei oferecer não somente nem precisamente o resumo ou a quintessência de minhas três obras principais de sociologia geral - as Leis da Imitação, a Oposição Social e a Lógica Social - mas ainda, e acima de tudo, o laço íntimo que as une. Essa conexão, que pode muito bem ter escapado ao leitor desses livros, é aqui iluminada por considerações de ordem mais geral. Elas permitem, ao que me parece, abarcar num mesmo ponto de vista esses três pedaços, pu­ blicados separadamente, de um mesmo pensamento, esses membra disjecta12 de um mesmo corpo de ideias. Talvez me digam que desde o início eu poderia ter apresentado num todo sistemático o que dividi em três publicações. Mas as obras em vários volumes afugentam, e com alguma razão, o leitor contemporâneo; além disso, para que fatigar-nos com essas grandes construções unitárias, com esses edifícios completos? Se aqueles que nos acompanham terão tanta pressa em demolir essas edificações para servir-se de seus materiais ou apropriar-se de um pavilhão destacado, mais vale poupar-lhes o trabalho da demolição e entregar-lhes o pensamento em fragmen­ tos. Todavia, para uso dos espíritos singulares que se comprazem em reconstruir aquilo que se lhes oferece em estado fragmentado, tal como outros em quebrar aquilo que se lhes apresenta acabado, talvez não seja inútil juntar às partes esparsas da obra um desenho, um esboço que indique o plano de conjunto que teríamos executado com gosto se para tanto tivéssemos sentido a força e a audácia. Essa é toda a razão de ser desta pequena brochura. G.T. Abril de 1898. 12 Tradução livre: partes dispersas, separadas. (N. do T.) Introdução Ao percorrer o museu da história e a sucessão de seus quadros multicoloridos e heteróclitos, ao viajar através dos povos, todos eles diversos e cambiantes, a primeira impressão do observador superficial é a de que os ienômenos da vida social escapam a qualquer fórmula geral, a qualquer lei cien­ tífica, e que a pretensão de fundar uma sociologia é uma quimera. Mas os primeiros pastores que observaram o céu estrelado e os primeiros agricultores que tentaram adivinhar os segredos da vida das plantas devem ter ficado igualmente impressionados pela resplandecente desordem do firmamento, pela multiformidade de seus meteoros, pela exuberante diversidade das formas vegetais e animais; e a ideia de explicar o céu e a floresta por um pequeno número de noções logicamente encadeadas sob o nome de astro­ nomia e de biologia, essa ideia, se ela pudesse ocorrer-lhes, teria sido a seus olhos o cúmulo da extravagância. Com efeito, não existe menos complicação, irregularidade real e aparente capricho no mundo dos meteoros ou no interior de uma floresta virgem do que na balbúrdia da história humana. Como, então, a despeito da sinuosa diversidade dos estados celestes ou dos estados silvestres, das coisas físicas ou das coisas viventes, chegou-se a gerar e fazer crescer, pouco a pouco, um embrião de mecânica ou de biologia? Isso se deve a três condi­ ções que importa distinguir claramente para formular uma noção precisa e completa de como convém entender esse substantivo e esse adjetivo tão utilizados, ciência e científico. Em primeiro lugar, começou-se a perceber algumas similitudes no meio dessas diferenças, algumas repetições entre essas variações: os retornos periódicos dos mesmos estados do céu, das mesmas estações, o curso regularmente repetido das idades - juventude, maturidade, velhice - no seres vivos, e os traços comuns aos indivíduos de uma 20 /As Leis Sociais Gabriel Tarde 21 mesma espécie. Não existe ciência do individual considerado nele Assim, a ciência consiste em considerar uma realidade qual­ mesmo; só existe ciência do geral, ou seja, do indivíduo conside­ quer sob três aspectos: as repetições, as oposições e as adaptações rado como repetido ou suscetível de ser repetido indefinidamente. que ela encerra, e que tantas variações, tantas dissimetrias, tantas A ciência é uma ordenação de fenômenos encarados pelo viés desarmonias impedem de ver. A relação entre causa e efeito não de suas repetições. Isso não quer dizer que diferenciar não seja um constitui, por ela mesma, o elemento próprio do conhecimento dos procedimentos essenciais do espírito científico. Diferenciar, científico. Se assim fosse, a história pragmática, que é sempre um tanto quanto assimilar, é fazer ciência; mas somente na medida encadeamento de causas e efeitos, e que sempre nos ensina que em que a coisa que se discerne é um tipo extraído, na natureza, tal batalha ou tal insurreição teve tais consequências, seria o mais de um certo número de exemplares, e mesmo suscetível de ser perfeito exemplar da ciência. Sabemos, no entanto, que a história reeditado indefinidamente. Pode-se descobrir um tipo específico só se torna uma ciência na medida em que as relações de causa­ e caracterizá-lo claramente, mas se ele for julgado como sendo o lidade que ela assinala aparecem como estabelecidas entre uma privilégio de um indivíduo único, incapaz de ser transmitido à sua causa geral, suscetível de repetição ou repetindo-se de fato, e um posteridade, não terá interesse para o cientista senão a título de efeito geral, não menos repetido ou suscetível de sê-lo. Por outro curiosidade teratológica. lado, a matemática jamais nos mostra a causalidade em obra; e Repetição significa repetição conservadora, causação sim­ quando ela a postula sob o nome de função, é dissimulando-a sob ples e elementar sem nenhuma criação, pois - como mostram a uma equação. No entanto, a matemática é^uma ciência e mesmo o transmissão de movimento de um corpo a outro ou a comunicação protótipo da ciência. Por quê? Porque em parte alguma é realizada da vida de um ser vivo ao rebento que dele nasceu - o efeito re­ uma eliminação tão completa do lado dessemelhante e individual produz a causa de maneira elementar. Mas também a destruição das coisas, em lugar algum elas se apresentam sob o aspecto de dos fenômenos, e não apenas sua reprodução, é importante para a uma repetição tão precisa e tão definida, e de uma oposição tão ciência. Assim, seja qual for a região da realidade à qual se aplique, a simétrica. A grande lacuna da matemática é a de não enxergar, ciência deve buscar, em segundo lugar, as oposições que ali existem ou enxergar mal, as adaptações dos fenômenos. Daí advém sua e que lhe são próprias: ela estará atenta, portanto, ao equilíbrio de insuficiência, tão vivamente sentida pelos filósofos, mesmo e forças e à simetria das formas, às lutas entre os organismos vivos, especialmente por geômetras como Descartes, Comte, Cournot. aos combates de todos os seres. Repetição, oposição, adaptação: essas são, repito, as três di­ Mas isso não é tudo, e nem mesmo é o essencial. É preciso, ferentes chaves que a ciência usa para abrir os arcanos do universo. antes de mais nada, estar atento às adaptações dos fenômenos, às Ela busca, antes de qualquer coisa, não exatamente as causas, mas suas relações de coprodução verdadeiramente criadora. É para as leis de repetição, as leis de oposição, as leis de adaptação dos fe­ captar, depurar e explicar essas harmonias que o cientista trabalha; nômenos. São três tipos de leis (e é importante não confundi-las) tão e descobrindo-as, ele chega a constituir essa adaptação superior: a solidárias quanto distintas: em biologia, por exemplo, a tendência harmonia entre seu sistema de noções e fórmulas e a coordenação das espécies a se multiplicar segundo uma progressão geométrica interna das realidades. (lei de repetição) é o fundamento da concorrência vital e da seleção (lei de oposição); e a produção de variações individuais, de aptidões

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