2 I As formas do romance As formas do romance: estudos sobre a historicidade da literatura Primeira reimpressão, abril de 2017 Felipe Charbel Henrique Buarque de Gusmão Luiza Larangeira da Silva Mello (organizadores) COPYRIGHT © 2016 FELIPE CHARBEL HENRIQUE BUARQUE DE GUSMÃO LUIZA LARANGEIRA DA SILVA MELLO COORDENAÇÃO EDITORIAL ALBERTO SCHPREJER PRODUÇÃO EDITORIAL PAULO CESAR VEIGA CAPA LUCAS BEVILÁQUA JOÃO GABRIEL DA SILVA ASCENSO REVISÃO ANTONIO CUSTÓDIO ZEMBRA “Medicago sativa root system”, de autoria do usuário Ninjatacoshell da Wiki media Commons Este livro segue a grafia atualizada pelo novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor no Brasil desde 2009. Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) F82 As formas do romance : estudos sobre a historicidade da literatura / organização Felipe Charbel , Henrique Buarque de Gusmão , Luiza Larangeira da Silva Mello. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Ponteio, 2016. 290 p. ; 23 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-64116-47-4 1. Literatura - História e crítica, história, historicidade da literatura, história e gêneros literários. 2. I. Charbel, Felipe. II. Gusmão, Henrique Buarque de. III. Mello, Luiza Larangeira da Silva. IV. Título. 16-32141 CDD: 809 CDU: 82.09 PONTEIO É UMA MARCA EDITORIAL DA DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA. TODOS OS DIREITOS DESTA EDIÇÃO RESERVADOS À DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA Rua Nova Jerusalém, 345 CEP 21042–235 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21)2249-6418 [email protected] www.ponteioedicoes.com.br Os direitos desta edição estão protegidos pela Lei 9.610, de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora. 4 I As formas do romance Sumário A historicidade do romance — Felipe Charbel, Henrique Buarque de Gusmão e Luiza Larangeira da Silva Mello 7 Parte 1. O romance contemporâneo 1. Formas do romance no século XXI. Um comentário sobre Minha luta, de Karl Ove Knausgård — Luciene Azevedo 17 2. Narração polifônica em Hans Magnus Enzensberger e Roberto Bolaño — Kelvin Falcão Klein 35 3. A ficção histórica e as transformações do romance contemporâneo — Felipe Charbel 55 4. A dupla vida do romance autobiográfico — Antonio Marcos Pereira 69 Parte 2. A cultura histórica no romance 5. A História como farsa: sobre O Talentoso Ripley de Patricia Highsmith — Gustavo Naves Franco 87 6. “Sempre há tempo para chegar tarde. É o mais folgado que temos”: velocidade e fragmentação no Museu de Macedonio Fernández — Imara Bemfica Mineiro 107 7. Estrangeiros em qualquer lugar do mundo: o ponto de vista cosmopolita no romance da virada do século XX — Luiza Larangeira da Silva Mello 123 Parte 3. Circulação de modelos romanescos 8. Um romance sobre o tempo na época das séries — Bernardo Barros 147 9. O espelho deformante: um estudo sobre É isto um homem?, de Primo Levi — Pedro Spinola Pereira Caldas 177 10. O ator stanislavskiano como coautor da dramaturgia tchekhoviana — Henrique Buarque de Gusmão 199 Parte 4. Gêneros romanescos nos séculos XVIII e XIX 11. A racionalidade da imaginação no romance gótico — Lainister de Oliveira Esteves 219 12. Henry Fielding e a “história verdadeira” — João de Azevedo e Dias Duarte 239 13. Romance e epos: a reescrita do épico em Machado de Assis — Raquel Campos 267 Sobre os autores 287 6 I As formas do romance A historicidade do romance Felipe Charbel Henrique Buarque de Gusmão Luiza Larangeira da Silva Mello Os ensaios reunidos neste livro se ocupam do problema da histori- cidade da literatura. Mais especificamente, esta discussão é realizada a partir de um recorte que privilegia a história do gênero literário que, desde a sua consolidação no século XVIII, nunca deixou de ser pensado, por críticos e historiadores, como possuindo um vínculo estreito não só com a produção historiográfica, em função do seu caráter de narrativa longa, como também com a história-em-si, com as forças da vida so- cial que parecem se sedimentar, de forma privilegiada, nesta variedade de discurso ficcional: o romance. Mikhail Bakhtin se recusou a tratá-lo como “apenas um outro gênero literário”. Se, já na década de 1920, como argumentam Clark e Holquist (2008, p. 294), Bakhtin havia afirmado a singularidade da poética dialógica de Dostoievski, nas décadas seguin- tes, ele passa “a ver o romance dostoievskiano não tanto como um acon- tecimento absolutamente sem precedente na história do gênero, quanto como a mais pura expressão do que sempre estivera implícito neste”, ou seja, o princípio do dialogismo. Isso porque o romance, para o filósofo russo, teria uma capacidade peculiar de absorver o pluralismo linguísti- co inerente à vida social, e de fixar, literariamente, as formas mais diver- sas, e mais complexas, de experiências do espaço e do tempo — o que ele chamou de cronótopo moderno. Ao contrário da epopeia, da tragédia ou da comédia — gêneros com- pletamente formados, fechados e sujeitos a regras fixas de execução —, o romance é, segundo Bakhtin, um gênero plástico, flexível, em formação A historicidade do romance I 7 (cf. Bakhtin, 1998). Por isso, ele é capaz de incorporar características dos demais gêneros e romper com a norma clássica da separação dos estilos. Seu caráter essencialmente inacabado faz do romance um gênero histó- rico por excelência; ou melhor, um gênero aberto à história. O problema da historicidade do romance é abordado, aqui, em um amplo recorte temporal, que vai da consolidação do gênero como um dos fundamentos da cultura literária moderna ao exame das formas hí- bridas do século XXI, passando pelo debate sobre a circulação dos mo- delos romanescos em relação ao teatro, à literatura de testemunho e, mais recentemente, às séries televisivas. Escritos por pesquisadores de áreas diversas, como a História, os Estudos Literários e a Filosofia, os en- saios foram agrupados em quatro partes, cada uma delas abordando, por um ângulo distinto, o problema da historicidade das formas romanescas. A primeira parte, intitulada O romance contemporâneo, abre com um ensaio de Luciene Azevedo sobre certa marca de estranheza que carac- teriza, formalmente, o romance do século XXI. Comentando o ciclo Mi- nha luta, do norueguês Karl Ove Knausgård, Azevedo propõe um desvio dos caminhos hermenêuticos mais usuais que enxergam tanto no hi- bridismo como na inespecificidade elementos capazes de dar conta das peculiaridades do romance atual. Um dos seus argumentos é o de que “a identificação da forma do romance como romance” sempre foi um dos problemas fundamentais do gênero: “seja em seu momento inaugural, quando a novidade da forma novel impunha uma luta pela legitimidade do ficcional, seja mais tarde, em pleno século XIX, quando o gênero encontrava certa estabilidade, é a imensa variedade de possibilidades formais o que identifica o romance”. O ensaio de Kelvin Falcão Klein também se dedica aos aspectos formais do romance contemporâneo. Mas o foco, aqui, está na encenação da narrativa polifônica em O curto verão da anarquia, de Hans Magnus Enzensberger, e em Os detetives sel- vagens, de Roberto Bolaño. Aproximando Hayden White e Jacques Der- rida, Julia Kristeva e Mikhail Bakhtin, Aby Warburg e Walter Benjamin, Klein realiza um percurso teórico em torno da polifonia, com o intuito 8 I As formas do romance de compreender a “força da forma” e o potencial de estranhamento que ela produz na interpretação — seja a recepção de um texto literário, seu estudo crítico ou a abordagem histórica da literatura. No terceiro ensaio, Felipe Charbel examina as formas do romance pelo ângulo da ficção histórica contemporânea. Discutindo como as no- vas variedades de experiência do tempo, características das sociedades ocidentais das últimas décadas, constituem desafios para a abordagem ficcional da história, Charbel analisa os formatos, alguns deles inusuais, adquiridos nas últimas décadas pelo romance histórico. Já Antonio Mar- cos Pereira discute as variações autobiográficas da prosa romanesca, em um ensaio que trata dos escritores Mario Levrero e J. M. Coetzee. Se- guindo a indicação de J. P. Hunter de que as “intromissões de um gênero no outro”, o romanesco e o autobiográfico, “não são implicações apenas formais, mas que envolvem também o ‘escopo’ e a ‘epistemologia’ do romance”, Pereira se indaga sobre a ambivalência entre a “leveza do jogo e o peso da ontologia, entre o que se refere ao gênero híbrido e aquilo a que o gênero híbrido se refere”. É precisamente esta ambivalência que, para ele, confere um interesse renovado ao tão antigo investimento au- tobiográfico na ficção. Na segunda parte do livro, A cultura histórica no romance, o gênero é interrogado a partir da relação entre literatura e historicidade. Isso não quer dizer que os ensaios se proponham simplesmente a tratar dos modos pelos quais aspectos do mundo histórico são figurados literaria- mente, senão que consideram a historicidade dos textos literários como uma dimensão fundamental de seus aspectos formais, do efeito estéti- co que produzem e da manipulação retórica de seus conteúdos. Imara Bemfica Mineiro busca compreender o lugar de Macedonio Fernández nas vanguardas modernistas da primeira metade do século XX, anali- sando os caminhos narrativos que o escritor argentino percorre para subverter os pressupostos estéticos do gênero romanesco — em espe- cial do romance realista oitocentista — em seu Museu do Romance da Eterna. A obra fragmentada, composta por um conjunto de prólogos A historicidade do romance I 9 que precedem e sucedem seus treze capítulos, subverte o gênero em seu ataque à estrutura temporal lógica do romance tradicional, uma vez que tematiza narrativamente a aceleração que, segundo Reinhart Koselleck, marca a moderna experiência temporal e histórica. Se os modernistas das primeiras décadas do século XX tomaram ciên- cia da opacidade da linguagem literária e puderam assim manipular os princípios formais da narrativa romanesca tradicional, os romancistas da segunda metade do século sentiram-se livres para utilizar, de forma consciente e deliberada, a taxonomia tradicional de gêneros e modos ficcionais. É esse tipo de manipulação que interessa a Gustavo Naves Franco. Em seu ensaio, os romances da série Ripley são interpretados à luz da “Teoria dos Modos” de Northrop Frye. Nos livros de Highsmith, vinculados ao subgênero do romance policial, o modo ficcional predo- minante é o farsesco — a farsa está presente não apenas no caráter do protagonista, cujo sucesso depende de sua habilidade para representar os mais diversos papéis e adaptar-se flexivelmente a distintas situações, como também se coloca no estilo leve e flexível, no caráter adaptável e fluente que a escritora imprime à narrativa. Já Luiza Larangeira trata, em seu texto, da figuração literária do ponto de vista cosmopolita. Ainda que os escritores da virada do século XIX para o XX, como Machado de Assis, Henry James, Joseph Conrad e E. M. Forster, não estejam de todo comprometidos com a fragmentação da estrutura lógica e temporal da narrativa nem com a deliberada manipulação de gêneros e modos fic- cionais, poderíamos dizer, com Paul Armstrong (1987, p. 16), que eles “escrevem metarromances que tornam explícita a dinâmica implícita da criação de um mundo ficcional”. A figuração do ponto de vista cosmopo- lita em romances da virada do século foi um dispositivo retórico através do qual se tornou explícita não apenas essa dinâmica como também os limites de dois princípios caros tanto à história quanto à ficção realista do século XIX: a objetividade epistêmica e a imparcialidade ética. Na terceira parte do livro, Circulação de modelos romanescos, os tex- tos de Henrique Buarque de Gusmão, Bernardo Barros e Pedro Spínola 10 I As formas do romance