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As fontes do paraiso PDF

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Arthur C. Clark http://br.groups.yahoo.com/group/digital_source/ À memória ainda intensa de Leslie Ekanayake (13/VII/1946 - 4/VII/1977), único amigo perfeito de uma vida, em quem se combinavam singularmente Lealdade, Inteligência e Compaixão. Quando seu espírito radiante e amigo desapareceu deste mundo, apagou- se a luz em muitas vidas. Nirvana Prapto Bhuyat "A política e a religião se tornaram obsoletas; é chegado o tempo da ciência e da espiritualidade." Sri Jawaharlal Nehru, a Associação Cingalesa para o Progresso da Ciência. Colombo, 15 de outubro de 1962. Prólogo "Do Paraíso à Taprobana medeiam quarenta léguas; dali pode-se ouvir o som das Fontes do Paraíso." Da tradição, segundo o relato de frei Marignolli (1335 D.C.). O país a que denominei Taprobana a rigor não existe, mas coincide em cerca de noventa por cento com a ilha do Ceilão (atualmente chamada Sri Lanka). Muito embora a "Conclusão" deixe claro que lugares, acontecimentos e pessoas se baseiam em dados reais, o leitor não errará muito supondo que, quanto mais implausível a história, mais perto estará da realidade. I. O palácio 1. Kalidasa A coroa se fazia mais pesada a cada ano. Da primeira vez em que o venerável Bodhidharma Mahanayake Thero a colocara na cabeça dele - com que relutância! -, o príncipe Kalidasa se surpreendera com sua leveza. Agora, vinte anos depois, o rei Kalidasa prazerosamente deixava de lado a faixa de ouro incrustada de pedras preciosas, sempre que a etiqueta da corte o permitia. E havia pouca etiqueta ali, no topo ventoso da fortaleza escavada na rocha; eram raros os enviados ou os suplicantes que procuravam uma audiência em suas alturas proibitivas. Muitos dos que empreendiam a jornada a Yakkagala retrocediam durante a ascensão final, em que passariam por entre as mandíbulas do leão agachado que sempre parecia prestes a saltar da face do rochedo. Um velho rei jamais poderia sentar-se naquele trono, que parecia aspirar ao céu. Um dia, possivelmente Kalidasa estaria débil demais para alcançar seu próprio palácio. Contudo, duvidava de que tal dia chegasse; seus muitos inimigos o poupariam das humilhações da senilidade. Esses inimigos já se reuniam. Kalidasa lançava os olhos na direção norte, como se já pudesse ver os exércitos de seu meio irmão, que regressava para reivindicar o trono ensangüentado da Taprobana. Mas a ameaça ainda era remota, ele ainda se encontrava para além de mares batidos por monções. Ainda que Kalidasa confiasse mais em seus espiões do que nos astrólogos, era reconfortante saber que eles concordavam com isso. Malgara havia esperado quase vinte anos, planejando e conquistando o apoio de reis estrangeiros. Mas um inimigo mais paciente e sutil estava muito mais próximo, sempre vigilante, no céu do sul. O cone perfeito de Sri Kanda, a Montanha Sagrada, parecia perto demais naquele dia, elevando-se como uma torre sobre a planície central. Desde os primórdios da história, engendrava medo no coração de todos os que a contemplavam. Em momento algum Kalidasa se esquecia daquela presença sinistra e do poder que simbolizava. No entanto, o Mahanayake Thero não dispunha de exércitos, não possuía elefantes de guerra, urrantes, que brandissem presas brônzeas ao investir em batalha. O sumo sacerdote não passava de um ancião que vestia um manto alaranjado, e cujas únicas posses eram uma tigela de esmoler e uma folha de palmeira para proteger-se do sol. Enquanto os monges de menor hierarquia e os acólitos entoavam as escrituras a seu redor, ele permanecia sentado em silêncio, de pernas cruzadas... e, de algum modo, brincava com os destinos dos reis. Era muito estranho... O ar estava tão claro naquele dia que Kalidasa podia enxergar o templo, que a distância transformava numa diminuta ponta branca de flecha no topo de Sri Kanda. Não se assemelhava a nenhuma obra de mão humana, e lembrava ao rei as montanhas ainda mais altaneiras que havia visto de relance na mocidade, quando vivera, em parte como hóspede, em parte como refém, na corte de Mahinda, o Grande. Todos os gigantes que guardavam o império de Mahinda exibiam tais cristas, constituídas de uma substância ofuscante e cristalina para a qual não havia palavra na língua da Taprobana. Os hindus acreditavam tratar-se de uma espécie de água, transformada à força de magia, mas Kalidasa ria dessas superstições. Aquele brilho de marfim estava a apenas três dias de caminhada - um dia para percorrer a estrada real, atravessando florestas e arrozais alagados, e mais dois para subir a escadaria tortuosa que ele nunca poderia galgar novamente, pois ao fim dela se encontrava o único inimigo que temia e que não era capaz de subjugar. Às vezes, invejava os peregrinos, ao ver suas tochas traçando uma tênue linha de fogo na face da montanha. O mais humilde mendigo podia saudar aquela alvorada sagrada e receber as bênçãos dos deuses; mas o senhor de todas aquelas terras, não. Kalidasa tinha seus consolos, ainda que por pouco tempo. Ali, guardados por fossos e baluartes, viam-se tanques e fontes, e também os Jardins das Delícias, nos quais prodigalizara a riqueza do reino. E, quando se cansava, havia as damas do rochedo - as de carne e osso, que chamava menos e menos -, e as duzentas imortais imutáveis com quem tantas vezes compartilhava seus pensamentos, nelas confiando como em ninguém. O trovão estrondeou no céu, a oeste. Kalidasa afastou os olhos da ameaça soturna da montanha, voltando-os para a promessa distante de chuva. A monção estava atrasada naquela estação; os lagos artificiais que alimentavam o complexo sistema de irrigação da ilha achavam-se quase vazios. Àquela altura do ano, já devia reluzir a água no lago mais avantajado de todos — o qual, como bem sabia, os súditos ainda ousavam chamar pelo nome de seu pai: Paravana Samudra, o Mar de Paravana. O lago tinha sido completado havia só trinta anos, após gerações de labuta. Em dias mais felizes, o príncipe Kalidasa se colocara orgulhosamente ao lado do pai, quando as grandes comportas foram abertas e as águas dadivosas se despejaram pela terra sedenta. Em todo o reino, não havia visão mais bela do que o espelho delicado daquele imenso lago, obra do homem, que refletia as cúpulas e agulhas de Ranapura, a Cidade de Ouro - a antiga capital que ele havia abandonado em troca de seu sonho. Mais uma vez ribombou o trovão, mas Kalidasa sabia ser falsa sua promessa. Mesmo ali, no cimo do Rochedo do Demônio, o ar pairava imóvel e sem vida; não se davam aquelas rajadas súbitas e fortuitas que anunciavam a chegada da monção. Antes que as chuvas finalmente chegassem, talvez a fome se acrescentasse a seus problemas. - Majestade, os enviados estão prestes a partir - disse a voz paciente do cortesão Adigar. - Desejam render-lhe suas homenagens. Ah, sim, aqueles dois embaixadores pálidos vindos do outro lado do oceano ocidental! Sentiria a partida deles, pois haviam trazido notícias, em seu abominável taprobani, de muitas maravilhas - ainda que nenhuma, admitiam, se equiparasse àquela fortaleza-palácio no céu. Kalidasa voltou as costas para a montanha coroada de neve e para a paisagem esturricada e tremeluzente, começando a descer os degraus de granito que levavam à sala de audiências. Logo atrás dele, seguiam o camarista e seus ajudantes, trazendo presentes de marfim e gemas para homens altos e orgulhosos, que esperavam para dizer adeus. Em breve, levariam os tesouros da Taprobana ao outro lado do mar, para uma cidade surgida séculos depois de Ranapura; e talvez, por algum tempo, eles conseguissem distrair os pensamentos taciturnos do imperador Adriano. Com seus mantos que adejavam com um clarão alaranjado contra o gesso branco do templo, o Mahanayake Thero caminhou vagarosamente até a amurada norte. Lá embaixo, de horizonte a horizonte, estendiam-se, como um tabuleiro de xadrez, os arrozais, as linhas escuras dos canais de irrigação, o reflexo azul do Paravana Samudra - e, além daquele mar mediterrâneo, as cúpulas santas de Ranapura, que flutuavam como bolhas fantasmagóricas, inacreditavelmente imensas, quando se levava em conta a distância real a que se encontravam. Havia trinta anos ele contemplava aquele panorama, em constante modificação, mas sabia que jamais seria capaz de apreender todos os detalhes de sua complexidade fugaz. Cores e fronteiras alteravam-se a cada estação... na verdade, a cada nuvem que passava. No dia em que ele também passasse, pensou Bodhidharma, ele ainda veria algo novo. Apenas uma coisa não se harmonizava com aquela paisagem delicada. Por menor que parecesse daquela altitude, o vulto cinzento do Rochedo do Demônio parecia uma intromissão descabida. Na verdade, segundo a lenda, Yakkagala era um fragmento do pico himalaio, coberto de ervas, que o deus-macaco Hanuman havia deixado cair quando apressadamente levava o remédio juntamente com a montanha a seus camaradas feridos, terminadas as batalhas do Ramayana. Daquela distância, naturalmente, era impossível divisar quaisquer detalhes do refúgio suntuoso de Kalidasa, exceção feita a uma tênue linha que parecia o baluarte externo dos Jardins das Delícias. No entanto, uma vez experimentado, o impacto do Rochedo do Demônio era tal que esquecê-lo era inviável. O Mahanayake Thero podia ver na imaginação, tão claramente como se estivesse entre elas, as imensas patas de leão que se projetavam da face lisa do penhasco — enquanto mais acima avultavam os muros ameados por trás dos quais, era fácil acreditar, o rei amaldiçoado ainda caminhava. .. O trovão precipitou-se do céu, elevando-se rapidamente a tamanho rugido que parecia sacudir a própria montanha. Numa convulsão contínua, percorreu o céu, indo morrer a leste. Longamente, os ecos rolaram pela orla do horizonte. Ninguém seria capaz de tomar aquilo como um prenuncio das chuvas que estavam por vir; só estavam previstas para dali a três semanas, e o Controle das Monções jamais errava em mais de vinte e quatro horas. Depois que as reverberações morreram, o Mahanayake voltou-se para seu companheiro. - Um pouco demais para corredores de reentrada regulares - disse ele, com uma irritação ligeiramente maior que a que se devia permitir um expoente do Dharma. - Foi feita uma mensuração? O monge mais jovem falou rapidamente em seu microfone de pulso, e esperou a resposta. - Foi... o máximo chegou a cento e vinte. Cinco decibéis a mais que o recorde anterior. - Mande o protesto habitual ao Controle Kennedy ou Gagárin, seja qual for. Aliás, pensando bem, queixe-se a ambos. Não que faça qualquer diferença, é claro. Enquanto seus olhos acompanhavam a trilha de vapor que lentamente se dissolvia no céu, o Bodhidharma Mahanayake Thero - o octagésimo quinto do mesmo nome - teve uma fantasia repentina e pouco própria de um monge. Kalidasa teria dado um tratamento apropriado para operadores de linhas espaciais que só pensavam em dólares por quilo em órbita... um tratamento que provavelmente envolveria empalamento, elefantes com patas de metal ou azeite fervente. Mas a vida, é claro, havia sido muito mais simples dois mil anos antes.

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