Frank McCourt As cinzas de Angela «Quando o Pai traz para casa o dinheiro da primeira semana de trabalho numa sexta-feira à noite, sabemos que o fim-de-semana vai ser maravilhoso. (...) Nas noites assim, podemos deixar-nos embalar no sono, pois sabemos que ao pequeno-almoço vamos comer ovos, tomates fritos e pão frito e beber chá com montes de açúcar e leite e, mais tarde, vamos ter um grande jantar com puré de batata, ervilhas e presunto e um bolo que a Mãe faz com camadas de fruta e um creme delicioso, e depois embebido em xerez.» Nas outras noites, nas noites trágicas, geladas, visitadas pelo espectro da fome e arquejantes, sacudidas pela violência da tuberculose, Frank conhece, na intimidade, a impiedade da miséria. Cresce nos bairros pobres, apinhados, de Limerick, na Irlanda dos anos 40, desesperada, exangue pela guerra civil, carente de sustento material e intelectual; cresce à mercê da crueldade, da insensatez, do adormecimento negligente que transforma cada dia de um quotidiano dramático numa cruzada contra a morte. Evidenciando uma coragem notável, Frank McCourt revisita a criança que foi com uma vitalidade contagiante, e a sua voz lírica, plena de uma energia rara, de musicalidade, de humor, profere as suas memórias numa prosa impetuosa, pictórica, sagaz, com a graça narrativa dos grandes romances. Uma obra que comove e deslumbra pela sua beleza viva e sombria, pela sensibilidade que supera o sofrimento e o rancor e os transmuta em matéria- prima de uma narrativa sobre o amor e o crescimento. As Cinzas de Angela recebeu o prémio Pulitzer de 1997, o National Book Award e o Los Angeles Times Award. EDITORIAL PRESENCA Ficha Técnica: Título original: Angela's Ashes Autor: Frank McCourt Copyright 1996, Frank McCourt Tradução: Editorial Presença, Lisboa, 1997 Fotografia da capa: Culver Pictures, Inc.,New York Capa: Arranjo gráfico de Fernando Felgueiras Fotocomposição: Multitipo Artes Gráficas, Lda. Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas, Lda. 1.a edição, Lisboa, Novembro, 1997 2.a edição, Lisboa, Junho,1998 3.a edição, Lisboa, Dezembro, 1999 Depósito legal n.o 145.473/99 Sumário Capa As Cinzas de Angela Agradecimentos 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 Autor Este livro é dedicado aos meus irmãos, Malachy, Michael, Alphonsus. Aprendo convosco, admiro-vos e amo-vos. Agradecimentos Estas palavras são um hino de exaltação às mulheres. Lisa Schwarzbaum leu as primeiras páginas e encorajou-me. Mary Breasted Smyth, ela própria uma romancista de fino recorte, leu o primeiro terço do livro e passou-o a Molly Friedrich, que se tornou minha agente e achou que Nan Graham, chefe de edição da Scribner era a pessoa ideal para pôr o livro a andar. E tinha razão. A minha filha Maggie mostrou-me como a vida pode ser uma aventura extraordinária, assim como os momentos únicos que passei com a minha neta, Chiara, me ajudaram a relembrar a maravilha que é uma criança ainda pequena. A minha mulher, Ellen, ouviu-me enquanto eu lia em voz alta e deu-me alento da primeira à última página. Sou bendito entre os homens. Frank McCourt ( primeira fila, direita) no pátio da escola em Limerick, Irlanda, 1938. I O meu pai e a minha mãe deviam ter ficado em Nova Iorque, onde se conheceram e casaram, e onde eu nasci. Mas, em vez disso, voltaram para a Irlanda quando eu tinha quatro anos, o meu irmão Malachy três, os gémeos Oliver e Eugene ainda não tinham um e a minha irmã Margaret já tinha morrido. Quando penso na minha infância, pergunto a mim próprio como consegui sobreviver. É claro que foi uma infância infeliz: se tivesse sido feliz, dificilmente teria valido a pena. Pior do que qualquer vulgar infância infeliz é a infância infeliz de uma criança irlandesa, e, pior ainda, de uma criança irlandesa e católica. Em toda a parte, há pessoas a vangloriarem-se ou a lastimarem as atribulações dos primeiros anos das suas vidas, mas não há nada que possa comparar-se à versão irlandesa: a pobreza; o pai alcoólico, indolente e loquaz; a mãe, piedosa e vencida, a lamuriar-se junto à chaminé; padres cheios de pompa; professores ferozes; os ingleses e as coisas terríveis que nos fizeram durante oitocentos longos anos. E, para cúmulo, a chuva. Ao longe, sobre o oceano Atlântico, acumulavam-se grandes nuvens, que deslizavam lentamente, subindo o rio Shannon, imobilizando-se para sempre sobre Limerick. A chuva impregnava a cidade desde a Festa da Circuncisão até à Véspera de Ano Novo. Provocava uma cacofonia de tosses secas, pieiras nos brônquios, arquejos asmáticos, e roncos da tuberculose. Transformava os narizes em fontes e os pulmões em esponjas de bactérias. Dava origem a um sem-fim de mezinhas. Para aliviar o catarro, coziam-se cebolas em leite com muita pimenta; para as vias congestionadas, fazia-se uma pasta com farinha cozida e urtigas, embrulhava-se com um trapo e atirava-se sobre o peito, onde ficava a fritar. De Outubro a Abril, as paredes de Limerick reluziam com a humidade. A roupa nunca secava: os casacos de fazenda e de lã eram habitados por seres vivos; às vezes irrompiam deles vegetações misteriosas. Nos bares, os corpos e as roupas húmidas exalavam vapor que era inalado juntamente com o fumo dos cigarros e dos cachimbos, por entre os gases bafientos da cerveja e do uísque entornados, e adulterado pelo cheiro a mijo que entrava em baforadas, vindo dos urinóis no exterior, onde muitos homens vomitavam o salário da semana. A chuva empurrava-nos para a igreja – era o nosso refúgio, a nossa força e o único lugar seco. Amontoávamo-nos na missa, na Bênção, nas novenas, em grandes magotes encharcados, a dormitar ao som monocórdico do padre, com o vapor de novo a sair das nossas roupas e a misturar-se com a doçura do incenso, das flores e das velas. Limerick ganhou fama pela sua religiosidade, mas nós bem sabíamos que era tudo por causa da chuva. ~~ O meu pai, Malachy McCourt, nasceu numa quinta em Toome, no Condado de Antrim. Tal como o seu pai, levou uma vida violenta, sempre em conflito com os Ingleses, ou com os Irlandeses, ou com ambos. Lutou ao lado do Antigo IRA e, por um acto de desespero qualquer, acabou como fugitivo e com a cabeça a prémio. Quando eu era criança, costumava olhar para o meu pai, para o seu cabelo fraco, a sua falta de dentes e perguntava a mim próprio porque havia alguém de pagar um prémio por uma cabeça daquelas. Quando tinha treze anos, a minha mãe contou-me um segredo: quando o teu pai ainda era pequenino, deixaram-no cair de cabeça. Foi um acidente, mas ele nunca mais voltou a ser o mesmo. Nunca te esqueças que as pessoas que caem de cabeça podem ficar um bocado estranhas. Por causa do prémio que ofereciam pela sua cabeça – com que tinha batido no chão – teve de sair da Irlanda, num navio de carga que apanhou em Galway. Chegado a Nova Iorque, em pleno auge da Lei Seca, pensou que tinha morrido e que estava no inferno a pagar os seus pecados. Depois descobriu as tabernas clandestinas e rejubilou. Depois de muito vaguear e muito beber na América e na Inglaterra, ansiava por viver em paz os anos que lhe restavam. Voltou a Belfast, que explodia à sua volta. Dizia, Vão para o diabo que vos carregue, e entretinha-se a conversar com as senhoras de Andersonstown. Elas tentavam-no com acepipes, mas ele corria com elas e bebia o seu chá. Já não fumava nem bebia, de que servia estar ali? Estava na altura de partir, e morreu no Royal Victoria Hospital. A minha mãe, cujo nome de solteira era Angela Sheehan, cresceu num bairro
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