As ciências humanas em uma era biológica The Human Science in a Biological Age Las Ciencias Humanas en una Era Biologica Nikolas Rose King’s College London, Londres, Reino Unido Theory, Culture & Society 30(1) 3–34 © The Author(s) 2013 DOI: 10.1177/0263276412456569 Sage Publications Resumo Vivemos, de acordo com alguns, no século da biologia, onde agora entendemos a nós mesmos em formas radicalmente novas, visto que os conhecimentos da ciência genômica e neurociência tornaram acessíveis os funcionamentos de nossos corpos e nossas mentes para novos tipos de conhecimento e intervenção. Uma nova figura do humano e do social está tomando forma no século XXI? Com quais consequências atualmente para as políticas da vida? E com quais implicações, se existem, para as ciências sociais, culturais e humanas? Essas são as questões discutidas neste artigo, o qual argumenta que uma nova relação com as ciências da vida é requerida, para além do comentário e da crítica, se as ciências sociais e humanas estão a se revitalizar para o século XXI. Palavras-chave: Biologia; Corpo; Cérebro; Ética; Humano; Social. Abstract We live, according to some, in the century of biology, where we now understand ourselves in radically new ways as the insights of genomics and neuroscience have opened up the workings of our bodies and our minds to new kinds of knowledge and intervention. Is a new figure of the human, and of the social, taking shape in the 21st century? With what consequences for the politics of life today? And with what implications, if any, for the social, cultural and human sciences? These are the issues that are discussed in this article, which argues that a new relation is required with the life sciences, beyond commentary and critique, if the social and human sciences are to revitalize themselves for the 21st century. Keywords: Biology; Body; Brain; Ethics; Human; Social. Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 3-43 |3 Rose, N. ___________________________________________________________________________ Resumen Vivimos, según algunos, en el siglo de la biología, donde ahora entendemos a nosotros mismos en formas radicalmente nuevas como las ideas de la genómica y la neurociencia han abierto el funcionamiento de nuestros cuerpos y nuestras mentes a nuevos tipos de conocimiento e intervención. ¿Es una nueva figura del ser humano, y de lo social, tomando forma en el siglo 21? ¿Con qué consecuencias para la política de la vida hoy? ¿Y con qué consecuencias, si lo hay, por las ciencias sociales, culturales y humanas? Estos son los temas que se tratan en este artículo, que sostiene que una nueva relación é necesario con las ciencias de la vida, más allá de comentarios y críticas, si las ciencias sociales y humanas han de revitalizarse para el siglo XXI. Palabras clave: Biología; Cuerpo; Cerebro; Ética; Humano; Social. animais, criaturas vivas, que nascem, Que tipos de criaturas pensamos ser, vivem, adoecem e morrem. Para pensar o nós, seres humanos contemporâneos? humano como animal: ao longo da segunda Como chegamos a entender a nós mesmos metade do século XX, essas ideias se por estas maneiras?1 E com quais tornaram associadas com essencialismo, consequências? É claro, não há uma determinismo, reducionismo, fatalismo, resposta única para essas questões: com a naturalização das delinquências diferenças múltiplas perturbam todas as humanas do sexismo à guerra, e com um tentativas de falar de um singular ‘nós’. legado sangrento de horrores da ciência Não obstante, desde seu nascimento, as racial às eugenias. Porém, no que alguns ciências das ordens sociais e morais denominaram ‘o século da biologia’ tiveram suas próprias visões sobre a (Ventar & Cohen, 2004), esta relação está ‘natureza’ dos seres humanos dos quais sendo reposicionada – na política, nas estudam as vidas sociais e mentais. E, a ciências da vida e nas ciências humanas. partir de sua criação, essas ciências têm de As biopolíticas contemporâneas negociar suas relações com a ‘biologia’. não se centram na morte, mas na ‘vida’ – Biologia em dois sentidos: (1) biologia isto quer dizer, ela está organizada em como campo de conhecimento positivo dos torno de dilemas concernentes à vitalidade seres vivos que assim denominamos; e (2) humana: os direitos humanos para a vida biologia como a realidade dos próprios (uma vida digna, uma qualidade de vida), a seres – humanos que são, afinal de contas, igualdade de todos os humanos como tipos Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 3-43 |4 Rose, N. ___________________________________________________________________________ particulares de criaturas vivas (direitos do biológico. Na verdade, a suposição humanos), o valor da vida, o futuro da vida reversa é comum – parece que o e o que pode ser feito com as vidas de ‘construtivismo’ é passé, a virada alguns para facilitar a vida de outros linguística chegou a um beco sem saída e (diagnóstico genético pré-implantado, uma retórica da materialidade é quase células tronco, implante de órgãos, doação obrigatória2. de partes do corpo) (Rose, 2007). Este foco Muitos aspectos levaram a esta na vitalidade do corpo vivo também está reformulação do humano. Alguns destes tornando-se central para as ciências têm relação com os ciclos de modismos humanas. Em nenhum lugar a ‘virada teóricos nas ciências humanas. Outros discursiva’ foi mais problemática que originam-se de um novo sentido de nossa quando os debates sobre ‘o corpo’ precariedade enquanto espécie em face dos pareciam negar quaisquer poderes para a perigos ecológicos e mudanças climáticas. própria coisa por onde circula o sangue. Alguns desses trabalhos fazem referência Entretanto, ao longo da última década um aos desenvolvimentos nas ciências da vida. número de teóricos sociais e filósofos Porém, a maioria dos autores obtém suas feministas vieram a perceber que não é instruções sobre corpos e cérebros a partir reacionário reconhecer a realidade de da filosofia. E quando aqueles das ciências nossa própria natureza carnal, e a examinar humanas e sociais voltam-se para a as possibilidades e restrições que fluem a biologia, há uma compreensível tendência partir disso (Blackman, 2008, 2010; em basear-se em livros sobre as ciências da Braidotti, 2002; Grosz, 1994; Massumi, vida escritos por não especialistas, e em 2002; Thirft, 2007; Wilson, 2004b). Em selecionar aqueles temas que linhas semelhantes, um movimento radical correspondem às suas aspirações teóricas em filosofia é repensar o lugar do animal ou políticas. A literatura especializada no pensamento contemporâneo, repensar a nessas questões como genômica, distinção fundante das ciências humanas – epigenética, neurogênese e plasticidade aquela entre nós, os criadores de cerebral é ampla e crescente, com novos ferramentas, de signos, de linguagem achados anunciados diariamente, com falada, e os outros animais (e.g. Calarco, implicações que são frequentemente 2008; Daston & Mitman, 2005; Haraway, difíceis de avaliar. E hoje, como nunca 1991, 2007; Wolfe, 2003). O progresso do antes, as ciências da vida estão conectadas pensamento das teorias sociais não mais se em diferentes formas com muitas outras deve pela virtude de seus distanciamentos disciplinas – da informática à engenharia, Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 3-43 |5 Rose, N. ___________________________________________________________________________ da matemática e física à complexidade coisas, estamos vendo a ascensão de um científica. De fato, não há uma biologia estilo de pensamento molecular e nesta ‘era biológica’. Contudo, apesar neuromolecular que analisa todos os desta heterogeneidade, estilos de processos da vida no corpo e no cérebro pensamento estão emergindo em muitas em termos das propriedades materiais de áreas da biologia contemporânea que componentes celulares – bases do DNA, oferecem a oportunidade para uma nova canais de íon, potenciais membranares, relação entre as ciências humanas e as entre outros. Esta visão molecular da vida ciências da vida. Nós podemos apontar pôde ser delineada nos anos de 1930. Isto para três características-chave desta ofereceu um grande impulso ao biologia que pode sustentar esta nova desenvolvimento em biologia molecular relação. que seguiu o trabalho de Crick e Watson, Primeiro, as ciências da vida na década de 1950, e a invenção da contemporânea – em genômica, na neurociência por Francis Schmitt e outros, compreensão da célula e dos processos de nos anos de 1960. E tem se tornado cada desenvolvimento e diferenciação, na vez mais poderosa por sua convergência neurociência molecular – revelam com as tecnologias da era da informação, múltiplas afinidades entre humanos e representando os processos vitais em outras criaturas, e lançam nova luz em suas elementos digitais que podem ser liberados diferenças3. Essas questões aparecem de suas origens orgânicas, manipulados e agora em uma forma que não é passível de fazendo-os circular como meros dados. simplificações da sociobiologia, até porque, No entanto, ao lado desta redução na era da genômica e epigenômica, as da vida para a interação dos seus menores velhas metáforas do determinismo componentes, outro estilo de pensamento biológico ou genético não podem mais ser vem tomando forma. Esta maneira de sustentadas cientificamente. Além disso, pensar explica as propriedades vitais como nos estilos de pensamento das ciências da emergentes, e os organismos vivos como vida contemporânea existe uma tensão que sistemas dinâmicos e complexos, se infiltra entre o reducionismo localizados em uma dimensão de experimental, que sempre foi anátema para temporalidade e desenvolvimento, e as ciências humanas, e uma consciência constitutivamente abertos ao seu entorno – [awareness] da complexidade e um meio que se estende em escalas do emergência – um dinamismo aberto que é intracelular ao psicológico, biográfico, menos familiar. No lado ‘reducionista’ das social e cultural4. Um dos embates Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 3-43 |6 Rose, N. ___________________________________________________________________________ conceituais chave nas ciências da vida – relacionado a um aumento da capacidade dos quais podemos encontrar em quase de atuar sobre ela naquele nível. A própria todas as áreas – concerne às relações entre vida – quer dizer, a vida do organismo vivo estas duas visões. As ciências humanas, – parece ter se tornado favorável para com sua compreensão das diversas formas intervenção e aberta para projeto de pelas quais os organismos vivos se controle. Desenvolvimentos como a moldam e são moldados pelo meio social clonagem de Dolly por Ian Wilmut, através ao longo do tempo e espaço, poderia da inserção do núcleo de uma célula desempenhar um importante papel aqui, se somática retirada da glândula mamária de elas estivessem dispostas. uma ovelha para uma célula ovo anucleada Atualmente, julgar algo biológico não fertilizada pertencente a outra ovelha não é afirmar o destino ou o fatalismo, mas (Wilmut & Highfield, 2006) e a criação de oportunidade. Como o corporal começa a Synthia de Craig Venter – uma célula ser construído não como mistério, mas bacteriana controlada por um genoma como mecanismo molecular, organismos, sintetizado quimicamente (Gibson et al., incluindo os organismos humanos, 2010) – levaram alguns a sugerir que nada parecem passíveis de otimização pela é biologicamente impossível, e apenas engenharia reversa e reconfiguração a este nossa própria imaginação – e nossas nível molecular. Consequentemente, próprias restrições – marcariam os limites segundo, nós temos visto a naquilo que podemos fazer com nossa ‘tecnologização’ da vitalidade nas ciências existência vital e a de outros animais. da vida. Não é apenas que para saber é Wilmut intitula sua autobiografia preciso intervir, apesar de ser crucial: sabe- ‘Dolly e a Segunda Criação’. Venter, se da vida hoje apenas intervindo nela. A também, é rotineiramente creditado com visão de Gaston Bachelard é tão verdadeira esses tipos de crenças. Essas fantasias de como sempre foi: um conceito “torna-se onipotência, enquanto elas inspiram muitas científico de acordo com a proporção pela especulações utópicas e distópicas, qual ele se tornou técnico, pela qual ele é grosseiramente superestimam nosso acompanhado por uma técnica de conhecimento e nossas capacidades realização” (Bachelard, 1969 [1938], p. 61, técnicas. No entanto, uma bioeconomia citado de Rheinberger, 2005, pp. 320-1). A global tem tomado forma em torno da intervenção não é apenas para conhecer, manipulação da biologia, e o conhecimento mas também para fazer: conhecer a vida no biológico vem se tornando altamente nível molecular tem sido intrinsecamente capitalizado. Caminhos para a criação das Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 3-43 |7 Rose, N. ___________________________________________________________________________ verdades biológicas formam-se por compreender na linguagem da biomedicina promessas e previsões do biovalor a ser contemporânea, a julgar a si mesmos em colhido – aprimoramento da produção das termos das normas articuladas pelos colheitas, bioenergia, biorremediação, e, é experts biomédicos, a modular seus corpos claro, avanço das tecnologias médicas e de e mentes com produtos que são o produto saúde baseadas na biologia. Companhias, de um sistema de crenças biomédicas, a nações e regiões competem nesta utilizar novas tecnologias reprodutivas bioeconomia global, argumentando que para manejar a procriação, a considerar a desenvolvimentos como na biologia troca de partes desgastadas com quadris e sintética sustentarão uma nova revolução joelhos artificiais, a pensar sobre a redução industrial consolidando conjuntamente os de riscos de doenças com dieta e exercício, sonhos de pacientes, de políticos, e para se preocupar, individual e pesquisadores e capitalistas naquilo que coletivamente, sobre Alzheimer e Carlos Novas denominou ‘uma economia demências, talvez, até mesmo, fazer política da esperança’ (Novas, 2006)5. Sudoku e ginásticas para mente na Há muito valor no trabalho que esperança de que se eles agirem por este agora fazemos para manter a nós mesmos caminho, eles podem ser salvos. Neste como seres vivos. Os segmentos dos sentido, a própria personalidade está se cuidados médicos e de saúde são as zonas tornando cada vez mais somática (Novas & mais lucrativas do mercado biotecnológico Rose, 2000). global: em 2008, eles geraram 69% da Ao longo do século XX, ao menos receita total do mercado. Em 2011, o nos países da Europa, América do Norte e mercado global para os fármacos estava suas colônias, o sentido dos indivíduos por volta de 500 bilhões de dólares, e para sobre eles mesmos foi profundamente aparelhos médicos em torno de 150 bilhões moldado pelo surgimento das ciências psi: de dólares6. Isto é indicativo de uma elementos variados de diferentes escolas terceira característica da biologia da psicologia tornaram-se integrantes às contemporânea que chama a atenção das suas formas de vida e à maneira como eles ciências sociais e humanas: a relevância eram compreendidos e governados pelas que o biológico e o biomédico alcançou autoridades (Rose, 1999). Não é de se em práticas de autoadministração e surpreender, então, que concepções autogovernamento. Não apenas no psicológicas da personalidade tornaram-se ‘Ocidente’, mas também em muitas outras as frequentemente inarticuladas regiões, indivíduos estão passando a se pressuposições das ciências sociais e Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 3-43 |8 Rose, N. ___________________________________________________________________________ humanas. Entretanto, como o século XX tudo desde nossas aptidões cognitivas até chegou a um fim, outra ética veio à tona, envelhecimento e morte. A crença nas ligada à crença de que, enquanto o domínio implicações dos avanços nas ciências da da mente permanecia crucial, vida para nosso dia a dia é exacerbada pelo características chave de nossa identidade ‘imperativo translacional’ – a obrigação de como pessoas foram fundamentadas na pesquisadores em biologia e biomedicina carne (Rose, 2007). Em alguns aspectos, de prometer aos financiadores, aos nossos corpos eram nós mesmos, embora assessores de pesquisa, às suas editoras não completamente no sentido expresso universitárias e à mídia de que os pelo Coletivo de Saúde de Mulheres de resultados de seus trabalhos na mosca, na Boston (Boston Women's Health minhoca, no rato ou no macaco logo Collective), três décadas mais cedo alcançarão a clínica – aproximadamente (Boston Women's Health Book Collective, ‘em três ou quatro anos’. Esta é uma 1978). É claro, não há nada de novo sobre fantasia, é claro. Quanto mais sabemos, uma ênfase nos corpos, seus manejos e mais percebemos quão pouco sabemos. modulações, ação sobre o corpo a fim de Cada sonho de controle sobre o corpo ou a prevenir doença e manter saúde (Porter, mente é logo pego por pontos negativos, 1999). Porém, hoje esta ética somática é efeitos colaterais e decepções. Quando se sustentada por um discurso de verdade sem trata da vitalidade humana, há muito do paralelos sobre o corpo humano decorrente que não pode ser controlado ou recriado das ciências da vida e biomedicina, [re-engineered] de acordo com nossos disseminada através de uma rede de desejos, e muito permanece injunções pelos experts do somático, ‘biologicamente impossível’. Não há uma considerada uma questão de estado, bem simples progressão da habilidade de como do indivíduo, e incorporada em resolver problemas simples para as múltiplos lugares, das casas e escolas aos capacidades conceituais e tecnológicas ambientes de trabalho e lazer. Viver bem necessárias para resolver os problemas atualmente é viver sob a luz da complexos, não há caminho de ouro para a biomedicina. constante expansão dos poderes, mas As estantes de livros estão a ranger muitas distintas e substanciais barreiras sob o peso da ciência popular discutindo biológicas que são dificilmente entendidas, esse novo conhecimento de nossa biologia, e muito menos superadas7. Além disso, e especulando sobre as implicações de como já comentei, as ciências da vida não nossa capacidade para entender e controlar constituem um campo homogêneo, mas um Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 3-43 |9 Rose, N. ___________________________________________________________________________ emaranhado de diversas e frequentemente atribuído por Comte, em 1839. Desde seu incompatíveis disciplinas e subdisciplinas, nascimento, a sociologia tem sido teorias, conceitos, argumentos, corpos de assombrada pela biologia. Ao longo do evidência, configurações experimentais e século XIX, havia um duplo movimento – assim por diante, dividido entre de um lado, tentativas para diferenciar as controvérsias sobre algumas questões ciências de ordem moral ou social daquelas bastante fundamentais. Não obstante, estritamente biológicas – para argumentar apesar do exagero, a ideia de que todos os que as leis de associação entre seres organismos vivos, incluindo humanos, humanos foram sui generis. E, de outro podem ser entendidos como seres lado, para modelar a sociologia em biológicos, de que sua natureza não é uma biologia, para pensar a ordem social de questão de mistério, mas de mecanismo, uma forma ou de outra análoga ao domínio está no cerne da afirmação que este será ‘o biológico, com estruturas, funções, século da biologia’. Tal como outra conexões orgânicas entre as partes, sujeitas alegação, mesmo que isto permaneça às leis do desenvolvimento que podem ser implícito, que muito do que é específico da descritas na linguagem da evolução, e nossa humanidade, nossa existência tendo um potencial apenas possível por individual e arranjos coletivos podem ser entidades vivas: ser normal ou patológico, entendidos em termos de nossas saudável ou doente9. características específicas de seres vivos8. Enquanto os estilos de pensamento Como poderiam estes das ciências da biologia do século XIX suscitaram a humanas e sociais responder? nova ciência da sociologia, as ciências sociais cresceram, ao menos em parte, Biologia e sociologia devido ao seu papel biopolítico. Quer dizer, elas alegaram ser capazes de fornecer o Biologia e sociologia nasceram know-how de governar aqueles aspectos bem próximas na primeira metade do das vidas individuais e coletivas dos seres século XIX: biologia em 1802, como o humanos, decorrentes da sua natureza nome para uma nova ciência das entidades enquanto seres vivos – tipos raciais, vivas – dividindo a natureza em dois desejos sexuais, procriação, doenças e ‘reinos’ – daqueles que possuem vida e epidemias em centros e cidades, e, é claro, daqueles sem ela; sociologia, como o todo o problema da população, de suas estudo científico do desenvolvimento das taxas de aumento ou declínio, das sociedades humanas, convencionalmente consequências de fertilidade diferencial, Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 3-43 |10 Rose, N. ___________________________________________________________________________ degeneração, eugenia, etc. Apenas ‘lixo sobre as leis alegadamente biológicas precisamos listá-los pela intensidade de crescimento populacional’ fosse dessas relações entre as ciências sociais e o resolvido: ‘a genética humana era um governo dos humanos como biológico, emaranhado de suposição e de vital, criaturas vivas, para ser mais claro. superstição... A racionalização do Esta questão foi central para a sociologia preconceito racial pelo uso de princípios desde que se tornou uma disciplina na biológicos foi então plausível apenas primeira metade do século XX. Apesar de porque a genética humana era muito muitas imprecisões com relação ao que a imatura’ (citado em Keynes, 2001). sociologia de fato foi (Abrams, 1981; Alexander Carr-Saunders, sucessor de Rocquin, 2006), as ciências da sociedade, Beveridge como Diretor da LSE, que foi na primeira metade do século XX, uma figura chave em muitas corporações permaneceram assombradas pela biologia. oficiais explorando a questão da Isto não ocorreu apenas no sentido de que população11, escreveu extensivamente a sociedade poderia ser imaginada como sobre eugenia e foi o presidente da um tipo de organismo, ou nos recorrentes Sociedade de Eugenia, entre 1949 e 1953. temas da evolução social. Suas questões Enquanto ele foi consistentemente recorrentes eram biológicas – uma questão crítico àquela forma de eugenia na qual de população (Osborne & Rose, 2008). A ‘clama por sugestões mentais para livrar-se população era muitas vezes direcionada em de pessoas com qualidades inatas termos de eugenia, embora nem sempre indesejáveis e para encorajar a condução como pensamos isso agora. Na London de crianças super dotadas ao mundo’ School of Economics (LSE), por exemplo, (Carr-Saunders, 1926: 18), ele concluiu sua William Beveridge, como diretor da LSE, palestra comemorativa Hobhouse, em de 1919 a 1937, solicitou financiamento Cambridge, em 1942, sob o título As Bases para docência em ‘biologia social (genética, biológicas da natureza humana [The população, estatísticas vitais, Biological Basis of Human Nature]: hereditariedade, eugenia e disgenia)’ para ‘completar o círculo das ciências sociais’10. Passaram-se quase 80 anos desde que Galton colocou o movimento eugênico de Contudo, ele nomeou Lancelot Hogben – pé. Ele pode… ter sido precipitado [mas] um fervoroso oponente do eugenismo – parece que agora nós temos informação porque ele acreditava que os problemas suficiente sobre isso para começar a agir, populacionais poderiam ser se assim desejarmos… Os Romanos, foi apropriadamente entendidos uma vez que o dito, orgulhavam-se por serem os Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 3-43 |11 Rose, N. ___________________________________________________________________________ descendentes degenerados dos deuses; fascinação de Talcott Parsons com ideias orgulhamo-nos de ser os muito dignos de sistemas orgânicos e homeostáticos, e descendentes dos macacos. Deixaremos de seus usos metafóricos e tipológicos da ser um crédito aos nossos ancestrais se linguagem de funções e de evolução. permitirmos a deterioração de nossa herança genética (Carr-Saunders, 1942, p. Contudo, nos anos 1970, tornou-se um 24). senso comum sociológico que o fatalismo, o determinismo, o reducionismo, o Quando John Maynard Keynes presenteou sexismo – uma naturalização e legitimação Carr-Saunders com a primeira medalha das relações de poder existentes – seguiria Galton, em 1946-1946! – Keynes inevitavelmente a partir de qualquer descreveu Galton como ‘o fundador do compromisso com a realidade da biologia mais importante, significativo e, eu humana – tanto como uma questão incluiria, genuíno ramo da sociologia que ontológica – o que realmente foram os existe, denominada eugenia’ (Blacker & seres humanos? – ou quanto uma questão Glass, 1967, p. 368)12. epistemológica – O que a biologia pode A partir de 1950, as coisas nos dizer sobre as formas de vida que os mudaram em função das consequências seres humanos fizeram para si? A biologia assassinas que pareciam estar associadas a humana foi relevante apenas no ponto em concepção de qualidades humanas em que forneceu as precondições para a termos biológicos. Muitos filósofos linguagem, o sentido e a cultura, cuja continentais do pós-guerra argumentaram forma e conteúdo devem ser contabilizados que a Alemanha nazi foi caracterizada por em termos não biológicos. As uma espiritualização do biológico, e controvérsias que fluíram notavelmente biologização do espiritual – a animalização sobre a raça e a inteligência, parecem do caráter humano, da vontade, valor e confirmar este julgamento negativo sobre virtude. Isto parece revelar, para todos os aqueles que importaram noções biológicas tempos, as consequências de uma forma de vulgares em seus diagnósticos do social pensar pela qual a pessoa e o corpo (Kamin, 1974; Lewontin et al., 1984), passaram a ser vistos como um, onde a assim como as simplificações da tarefa central da política foi a formação da sociobiologia, psicologia evolutiva e vida biológica da raça e da nação. É doutrinas do ‘gene egoísta’ (Rose & Rose, verdade que as metáforas biológicas 2000). A evidência de dois séculos parece permaneceram comuns nas sociologias das assentar referências do biológico ao lado décadas de 1950 e 1960 – por exemplo, na de uma política reacionária que amarra os Rev. Polis e Psique, 2014; 4(2): 3-43 |12
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