11111111111111111111111111111111111 45631 PUBLICAÇÕES EUROPA-AMt:RICA HENRI PIRENNE Título original: LesVillesdu Moyen Âge Tradução de Carlos Montenegro Miguel Capa: estúdios P. E. A. © Presses Universitalres de France Direitos reservados por Publicações Europa-América, Lda. AS CIDADES Nenhuma parte desta publicação pode ser re- , produzida ou Transmitidapor qualquer forma ou por qualquerprocesso, elearánico, rnecãnico DA IDADE MEDIA oufotográfico, incluindo fotocópia, xerocopia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente atranscri- çãodepequenos textos oupassagenspara apre- sentação ou críticado livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser ijuerpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em re· colhas antologtcns ou similares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os trans- gressoressãopassíveis deprocedimento judicial Editor: Francisco Lyon de Castro PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. Apartado 8 2726 Mb~'V1MARTlNS CODE.J( PORTUGAL Edição n.o 10105J/50J3 Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra - Mem Martins PUBUCAÇÕES EUROPA-AMÉRICA Depósito legalu.o33361/R9 Na mesma colecção, e sobre temas afins do tratado n presente volume, destacamos: .'i- As Origens da Burguesia, Régine Pernoud 43 -- A Pré-Histária da Sociedade Europeia, V. Gordon Childe 76 - Que E o Feudalismo?, F. L. Ganshof 99 -- A Revolução Industrial da Idade Média, Jean Gimpel 125 - O Mito da Idade Média, Régine Pernoud 145- O Trabalho na Idade Média, Jacques Heers 156- A Alta Idade Média Ocidental, Michel Banniard ÍNDICE Pág. PREFACIO DOAUTOR ..............•................ : . \3 CWiTUlO I - O comércio do Mediterrâneo até ao fim do século VIII .•................................. 15 CAPiTULO 11- Adecadência comercial do século IX ........•. 31 C,o\píTUl.O 11I- As cidades eos burgos . 55 (·.\PiTULO IV - O renascimento do comércio . 71 ~ll~UI R~r) CAPiTULO V - Os mercadores . 91 V i\l - ~\,. CAPnuLo VI - A formação das cidades ea burguesia . 109 CAPITULO VII _. As instituições urbanas . Ll7 ('APi rui.o VIII -' Influencia das cidades na civilização européia . 168 PREFÁCIO DO AUTOR Este pequena livro contém a s'íntese das lições profe- ridas em diversas Universidades dos Estados Unidos ãa América, Otexto inglês foi publ'icado com o título: Medie- val Cities. Their origins and the revival of trade (Prin- ceton, Univers'ity Prees), Nada se encontrará neste livro de um manual d,idác- licu, Propus-me simplesmente realizar uma tentativa de sintese acerca de um dos assuntos mais interessantes da história social da Europa. Espero que me relevem o não t,;;- 'resistido à tentação de descrever, após longos anos de lwsquisas especiais, os grandes mO'tlimentos da evolução urbanll desde o fim da Antiguidade até cerca de meados dI) séc'U·loXII. A natureza deste trabalho não me permitia nem deter-me em controvérsias, nem abster-me âehipó- leses. Bntre estas, haverá algumas que pa1'ecerão taZ'vez bastante audaciosas, Senti'r-me-ia feliz se encontrassem atousno. arlesão. MaioSfeliz seria se estas hipóteses susci .. tassem. novas pesquisas num domínio em que, para além do,s caminhos percoT1'iãos, muitos outros 'restam ainda 'fJur percorrer. CAPÍTULO I o COMÍ<:RCIO DO MEDITERRÂNEO ATÉ AO }'IM DO SÉCULO VIII Se se lançar uma vista de conjunto sobre o Império I{"mano, o que avulta, sobretudo, é o seu carácter medi- t•.rrânico. A sua extensão não ultrapassa muito a bacia grande lago interior que o Império encerra por todos dI) ()~lados. As suas longínquas fronteiras do Reno, do Da- núbío, do Eufrates, do Sara, formam um vasto círculo de ,h'fesas destinado a proteger-lhe os acessos. Incontestà- velmente, o mar é ao mesmo tempo a garantia da sua unidade política e econômica. A existência do Impérío depende do domínio que exerce no mar Mediterrâneo. Sem esta grande via de comunicação, nem o governo nem a alimentação da orbis '/"Umanus seriam possíveis. ~~interessante notar-se quanto, à medida que envelhece, c, Império acentua cada vez mais o seu carácter marítimo. A sua capital em terra firme, Roma, é abandonada no século IV por uma capital que é ao mesmo tempo um porto admirável: Constantinopla. Decerto, desde o fim do século 111,a civilização revela IIIH abatimento incontestável. A população diminui, a energta enfraquece, as crescentes despesas do governo, que se obstina em l~tar pela vida, conduzem a uma explo- ração fiscal que, cada vez mais, subjuga os homens ao Estado. E, não obstante, esta decadência não parece ter atingido sensivelmente a navegação do Mediterrâneo. A actividade que ainda apresenta contrasta com a atonía que, pouco a pouco, se apodera das províncías contínen- 16 HENRI PIRENNE AS CIDADES DA IDADE MÉDIA 17 tais. Continua a manter em contacto o Oríeate e o Oci- Portanto, não pode causar espanto ver os Germanos, dente. Não se assiste à interrupção do intercâmbio dos desde o início do período das invasões, esforçarem-se por produtos manufacturados ou dos produtos naturais de atingir essas mesmas margens para aí se estabelecerem, climas tão diferentes banhados pelo mar: tecidos de Cons- Quando, no decurso do século III, as fronteiras cedem tantinopla, de Edessa, de Antioquia, de Alexandria, vi- pela primeira vez sob o seu impulso, lançam-se num nhos, azeites e especiarias da gíria, papiros e trigos do mesmo ímpeto para o sul. Os Quados e os Marcomanos Egipto, da Africa e da Espanha, vinhos da Gália e da Invadem a Itália, os Godos marcham sobre o Bósforo, os Itália. A reforma monetária de Constantino baseada no Francos, os guevos, os Vândalos, que atravessaram o soliàus de ouro favoreceu singularmente o movimento Reno, longe de se retardarem, dirigem-se imediatamente comercial, dotando-o do benefício de uma excelente para a Aquitânia e para a Espanha. Não pensam em moeda; empregada em toda a parte como instrumento fixar-se nas províncias setentrionais, de que são vi.z1nhos, das permutas e expressão dos preços. Manifestamente cobiçam essas regiões abençoadas, onde Das duas grandes regiões do Império, o Oriente e o n doçura do ar e a fecundidade da natureza se aliam à Ocidente, a primeira ultrapassava infinitamente a se- riqueza e aos encantos da civilização. gunda, não só pela superioridade da sua civilização, mas Esta primeira tentativa dos bárbaros só teve de dura- pelo nível muito mais elevado da sua vitalidade econó- douro as ruínas que provocou. Roma conservava vigor mica. A partir do século IV só no Oriente há verdadeiras .mrícíente para repelir os invasores para lá do Reno e do grandes cidades, e é lá também que se concentram, na lJanúbio, Durante um século e meio ainda conseguiu con- gíria e na Ásia Menor, as indústrias de exportação e, em I"-los, esgotando os seus exércitos e as suas finanças. particular, a dos têxteis, de que o mundo romano cons- Mas o equilíbrio de forças tornava-se cada vez mais desí- titui o mercado, que são transportadas em barcos síríos. ~l1alentre os Germanos (cuja pressão se fazia mais pode- O predomínio dos Síríos é certamente um dos factos mais rosa à medida que o aumento do seu número os cons- interessantes da história do Baixo Império '. Contribuiu trangía mais imperiosamente a expandirem-se para além) largamente para essa orientalização progressiva da socie- •. () Império, cuja população decrescente permitia cada dade que devia conduzir por fim ao bizantinismo. E esta VI'Z menos uma resistência, de que não podemos, aliás, orientalização, de que o Mediterrâneo é o veículo, é uma uupedtr-nos de admirar a habilidade e a constância, prova evidente da crescente importância do mar à me- () facto deu-se no começo do século v. O Ocidente, todo dida que o Império, envelhecendo, se enfraquece, recua ,'I<:, é invadido. As províncias imperiais transformam-se ao norte face à pressão dos bárbaros e cada vez mais se "111 reinos germânícos. Os Vãndalos instalam-se em comprime sobre as suas margens. Arríca, os Visigodos na Aquitânia e em Espanha, os Bur- I{lIlnhões no vale do Ródano, os Ostrogodos na Itália. Esta nomenclatura é significativa. Não compreende, vemo-lo, senão países do Mediterrâneo, e nada mais é , P. Schcffer-Boiehorst, «Zur Geschichte der Syrer im Abend- lande» [M'itteiltmgen àes Instituts !ür Oester'reichiache Geschi- prccíso para mostrar que o objectívo dos vencedores, li- otitsforsch.uaut, t. VI (188.5), p. 521]; L. Bréhrer, «Les cotoníes v,'(~senfim de se estabelecerem à sua vontade, era o mar, dOrtcntaux en Occident au commenccment du Moycn Age IBy,wntinische Zeitschr'ift, t. XII ílf;()3)], Cf. F. Cumont, Les reli- ,'H(I' mar que durante largo tempo os Romanos chamaram gi<ms orielltalcs dans le lJ"!1I1His»Ic "ama'in, p. 132 (Paris, 19(7). ""11I tanta afeição quanto orgulho mare nostrum, l!J para ~---, 18 HENRI PIRENNE A-_S CIDADES DA IDADE MÉDIA__ 19 .._-------------------_. .._-_._-------~-- ele que sem excepção todos se dirigem, impacientes por ter ccuméníco que outrora fizera coincidir as suas rron- se estabelecerem sobre as suas margens e desfrutarem da Ieiras com as da cristandade. No entanto, seria necessá- sua beleza. Se os Franceses, ao principio, não o atingiram, rio muito para que se tornasse desde então estranho às foi porque, chegados tardiamente, encontraram o lugar províncias que perdera. Aí perdurou a sua civilização ocupado. Mas também eles se obstinam em possui-Ias. para além do SÇU dominio. Pela Igreja, pela língua, pela Já Clodoven quis conquistar a Provença, e foi preciso que superiorídade das instituições e do direito, impôs-se aos 'I'eodoríco interviesse para o impedir de estender as fron- seus vencedores. No meio das perturbações, da insegu- teiras do seu reino até à Côte d'Azur. Este primeiro ín- rança, da miséria e da anarquia, que acompanharam as sucesso não devia desencorajar os seus sucessores. Um invasões, degrada-se, é verdade. mas nesta degradação quarto de século mais tarde, em 536, aproveitaram-se da «onserva ainda uma físionomia nitidamente romana. Os ofensiva de Justiniano contra os Ostrogodos para con- (;ermanos não puderam, e aliás não quiseram, pô-Ia de seguirem destes a região cobiçada, e é impressionante l.ido. Eles bal'bal'izal'am-na, mas não a ocrmonizorav: notar-se quanto, incansàvelmente, a dinastia merovín- vonsclentcmente. gia tende, desde então, a tornar-se, por seu lado, uma Nada confirma mais cabalmente e~L1nhsel"\'aç,io ·du potência medíterrâníca. Em 542, Quildeberto e Clotárío que a persistência até ao século VIIl do caráctr-r marítimo arriscam uma expedição, aliás infeliz, para além dos Píre- '1\lf! verificámos há pouco, como essencial ao Império. néus, Sobretudo a Itália atrai u cobiça dos reis francos. (; Mediterrâneo não perde a sua ímportância após o pe- Estes aliam-se aos Bizantinos, depois aos Lombardos, na riodo das invasões. Permanece para os Germanos ,) qUI.' esperança de porem pé ao sul dos Alpes, Constantemente fora antes da sua chegada: o próprio centro da Europa, () desiludidos, encarníçam-se em novas tentativas. Já em //I.Itl·enoetrurn, Por importante que tenha sido na ordem 539 Teodoberto atravessara os Alpes, e quando Na.rsês, politica, a deposição do último imperador romano do Oci- em 553, reconquistar os territórios que ele ocupara, nume- d,'nte (476) não foi suficiente para desviar o evoluir hts- rosos esforços serão realizados em 584-585 e de 588 a 590 tórico da sua orientação secular. Ao contrário, continua para destes se apoderar novamente. :<. desenvolver-se sobre o mesmo teatro e sofrendo as rncs- O estabelecimento dos Germanos na bacia do Mediter- IlIas influências. Nenhum indício anuncia ainda o fim da râneo não marca de modo algum o ponto de partida de ".,munidade de civilização estabelecída pelo Império, das uma nova época na história da Europa. Por importantes (:o!unas de Hércules ao mar Egeu e das costas do Egipto consequências que tenha tido, :1:10 fez tábua rasa do pas- ,. da Ãfrica às da Gália, Itália e Espanha. Colonizado sado, nem quebrou a tradição. O fim dos invasores não p<'losbárbaros, o novo mundo conserva nos seus traços era o de aniquilar o Império Romano, mas o de ai se ins- I:•·.rais a fisionomia do mundo antigo. Para seguir o curso talarem para desfrutarem da sua civilização. Em suma. dllsacontecímentos de Rómulo Augústulo e Carlos Magno, o que eles conservaram ultrapassa em muito o que des- !. '''~ obrigado a dirigir constantemente os olhares para ,', truiram e o que trouxeram de novo. Decerto, os reinos M('diterrâneo '. que fundaram sobre o solo do Império fizeram desapare- cer este como Estado na Europa Ocidental. Vistas as coisas do ponto de vista político, a 07'bis "omanus, repelida doravante no Oriente, perdeu o carác-. "II/toIloHfl;." Picrtrndu«'ld,sto"iMrf'a,!U.Ht.!lfI·l(1c9t22C),hurpI.cm7a7].guc-» !Ncruc lH'l.fJr d,- 20 HENRI PIRENNE AS CIDADES DA IDADE MÉDIA 21 Todas as grandes peripécias da história se desenrolam rica importância conservada pelo Mediterrâneo. E aquela nas suas margens. De 493 a 526, a Itália governada por aparece ainda mais significativa se se pensar que a evan- Teodorico exerce em todos os reinos germânicos uma gelização da Irlanda se deve a missionários vindos de hegemonía, através da qual se afirma e perpetua o poder Marselha e que os apóstolos da Bélgica, S.to Amândio da tradição romana. Depois, desaparecido Teodorico, esse (t c. 675) e S. Remígio rr c. 668), são da Aquítãnía. poder atesta-se mais claramente ainda. Falta pouco para Mais claramente ainda, o movimento económico da que Justiniano restaure a unidade imperial (527-565). Europa revela-se como a directa continuação do movi- A África, a Espanha e a Itália são reconquistadas. O Me- mento económico do Império Romano. Sem dúvida, o de- ,diterrâneo volta a ser um lago romano. Bizâncio, é certo, crescer da actividade social aparece neste domínio como esgotada pelo imenso esforço que acaba de reali.zar, não em todos os outros. Já os últimos tempos do Império pode nem acabar, nem mesmo conservar intacta, a obra nos fazem assistir a uma decadência que a catástrofe das surpreendente que realizou. Os Lombardos levam-lhe o invasões contribuiu naturalmente para acentuar. Mas Norte da Itália (568), os Visigodos libertam-se do seu enganar-nos-íamos completamente se imaginássemos que jugo. Ainda assim nada abandona das suas pretensões. a chegada dos Germanos teve como resultado substituir Conserva, por longo tempo ainda, a África, a Sicília, a o comércio e a vida urbana por uma economia puramente Itália Meridional. Não renuncia a dominar o Ocidente agrícola e o estagnar geral da circulação '. A pretensa graças ao mar, de que as suas frotas possuem o domínio, repulsa dos bárbaros pelas cidades é uma fábula conven- de modo que a sorte da Europa se joga mais do que cional desmentida pela realidade. Se nas fronteiras-limi- nunca, neste momento, sobre as vagas do Mediterrâneo. tes do Império algumas cidades foram pilhadas, íncen- O que é verdadeiro do movimento político não o é diadas e destruídas, é incontestável que a imensa maioria menos, se o não for mais ainda, da civilização. Será pre- delas sobreviveu. Uma estatística das cidades hoje exis- ciso recordar que Boécío (480-525) e Cassiodoro (477-c. tentes em França, em Itália e mesmo nas margens do 562) são italianos, como S. Bento (480-543) e como Gre- Reno e do Danúbio provaria que, na sua maioria, se er- gório, o Grande (590-604), e que Isidoro de Sevilha (570- guem no mesmo local onde se erguiam as cidades roma- 636) é espanhol? li: a Itália que conserva as últimas nas e que o seu nome não é, muitas vezes, senão uma escolas, ao mesmo tempo que espalha o monaquismo ao modificação do nome daquelas. j norte dos Alpes. li:neste país que se encontra ao mesmo Como se sabe, a Igreja havia decalcado as suas cir- tempo o que ainda subsiste da cultura antiga e o que se cunscrições religiosas nas circunscrições administrativas cria de novo no selo da Igreja. Tudo o que a Igreja do do Império. Regra geral, cada diocese correspondia a uma Ocidente revela de vigor encontra-se nas regiões mediter- t civitas. Ora, como a organização eclesiástica não sofreu rânicas. Só aí possui uma organização e um espírito capa- nenhuma alteração na época das invasões, sucedeu que zes de' grandes empreendimentos. Ao norte da Gália, o conservou o seu carácter municipal nos novos reinos clero avilta-se na barbáríe e impotência. Foi necessário que o cristianismo fosse levado aos Anglo-Saxões (596). não das costas vizinhas da Gália, mas das longínquas 1 A. Dopsch, wvrtsctuütuonc und So,oialc G1'ulldlagcn der Eu- 1"I1J!iii.,,:h,·n Kultul'cnclItu:ickelung, t. H, p. 527 (Viena, 1920). ín- costas da Itália. A chegada de Santo Agostinho entre Rurg('-se contra a ideia de que os Gcrmanos teriam fcito desa- estes é, também, uma brilhante demonstração da histó- parecer a civilização romana. 22 HENRI PIRENNE AS CIDADES DA IDADE MÉDIA 23 fundados pelos conquistadores germânicos. Isto é de tal mont-Ferrand, Marselha, Nimes e Bordéus '. Importa, modo verdadeiro que a partir do século VI a palavra civi- sem dúvida, não exagerar a sua importância. Seria uma tas toma o sentido especial de cidade episcopal, centro da falta tão grande como subestirná-los. ';e certo que a cons- diocese. Sobrevivendo ao Império, em que se havia fun- tituição económica da Gália merovíngia se baseava mais dado, a Igreja contribuiu, portanto, e muito acentuada- n-t agricultura que em qualquer outra forma de activi- mente, para salvaguardar a existência das cidades ro- dade, e isto é tanto mais evidente quanto já o era assim manas. durante o Império Romano. Mas este facto não impede Mas é preciso reconhecer também que estas cidades que a circulação interna, que a importação e exportação conservaram por si próprias, durante muito tempo, uma dos géneros e das mercadorias desempenhem um papel considerável importância. As suas instituições municipais tão activo para que devamos reconhecê-los como indis- não desapareceram bruscamente à chegada dos Germa- pensáveis à alimentação e subsistência da sociedade. Urna nos. Nota-se que não somente na Itália, mas na Espanha prova indirecta deste facto é fornecida pelos rendimentos e na própria Gália, ficam com os seus Decuriones, quer do imposto do terrádigo (thelonewm ), Chamava-se assim, dizer, com um corpo de magistrados revestido de uma como se sabe, às portagens estabelecidas pela administra- autoridade judicial e administrativa, cujos pormenores ção romana ao longo dos caminhos, nos portos, na pas- nos escapam, mas de que não podemos negar nem d sagem das pontes, etc. Os reis francos deixaram-nas existência, nem a origem romana '. Ai sobressai ainda a subsistir a todas, e tiravam rendimentos tão abundantes presença do Detemo?' civítatis e a prática da inscrição que os cobradores desta espécie de taxas (thelonearií) dos actos autênticos n.aGesta Municipalia. Por outro lado, figuravam no número dos seus mais úteis funcionários. e de um modo mais irrefutável, aparecem como centros A manutenção do comércio depois das invasões ger- de uma actividade económica que é também uma sobrevi- mànicas e, simultâne8;mente, a manutenção das cidades vência da civilização anterior. Cada cidade permanece o que eram o centro desse comércio e dos mercadores que mercado dos campos limítrofes, o domicílio de Inverno lhe serviam de instrumento explica-se pela continuação dos grandes proprietários rurais da sua região e, por do tráfico mediterrânico. Tal como existia desde Cons- pouco bem situada que esteja, o centro de um comércio tantino, tal o encontramos, nas suas grandes linhas, do cada vez mais desenvolvido à medida que nos aproxima- século V ao VIII. Se, como é possível, o seu declínio se mos das margens do Mediterrâneo. Basta ler Gregório de acentuou, não é menos verdade que nos apresenta o espec- Tours para nos convencermos de que a Gália do 'seu táculo de um intercâmbio ininterrupto entre o Oriente tempo possuía ainda uma classe de mercadores de pro- bizantino e o Ocidente dominado pelos bárbaros. Através fissão fixados nas cidades. Cita, em passos absoluta- da navegação que se efectua do litoral da Espanha e da mente característicos, os de Verdun, Paris, Orleães, Cler- Gália ao da Síria e da Asia Menor, a bacia do Mediter- râneo não deixa de constituir a unidade económica que formava desde há séculos no seio da comunidade imperial. 'li"u:-:ld de Coula ngr-s, Da A"nnarchú: Iranqu», p. 2:hi: A. I)fl[l;;eh. ]'Virtsc/w.ftlich" unei S01.·jalc Gruruilaçen ricr E",,,,'piii8- clten Kulturenentvncketuru), t. II. p. 342: E. Mayer, Deutsch ulld , Ve-ja.«ntru outras, a Hislõ-rú.t l"nUlCo?·u>no.d. Krusch, I. IV, fTa1f.:~iisische Vertas8ung8[Jcschich te, t. I. p. 296 (Leipalg, 1899). 42. I. VI. § 45. I. VIII. § 1. 33. I. IH. § 3-1. 24 HENRI PIRENNE AS CIDADES DA IDADE MÉDIA 25 Devido a este mar, li organização eeonómica do mundo gorro de Tours em numerosos passos, quando lhe acon- permaneceu para além da sua divisão polítlca. tece falar desta cidade, obrigam-nos a considerá-Ia como A .falta de outras provas, o sistema monetário dcs um centro económico singularmente animado'. Uma nave- reis francos confirmaria esta verdade até à evidência. gação muito activa ligava-a a Constantinopla, à Siria, à Este sistema, sabemo-Io muito bem para que seja neces Africa. ao Egipto, à Espanha e à Itália. Os produtos do sârío insistir. é puramente romano. ou, para falar com Oriente, o papiro, as especiarias, os tecidos de luxo, o mais exactídão, romano-bizantino. l!:-opelas moedas que vinho. o azeite, foram aí objecto de uma normal impor· cunha, .o801idu.s, o triens e o denarius, ou seja, o soldo. o tação. Mercadores estrangeiros, na sua maioria judeus c terço do soldo e o dinheiro. 1::-0 ainda pelo metal que em- síríos, aí se estabeleceram e fixaram, e a sua nacionali- prega. o ouro. utíüzado para a cunhagem dos soldos e dade demonstra os estreitos laços mantidos por Marselha dos terços de soldo. 1::-0 também pelo peso que dá às com as regiões bizantinas. Por fim, a extraordinãria quan- moedas. l!:-o,enfim. pelas efigies que Ihes imprime. Lem- tidade de moedas, que na cidade foram cunhadas durante bremo-nos de que as oficinas monetárias conservaram por a época merovíngia, fornece-nos uma prova material da. muito tempo, durante os reis merovíngios, o costume de I característica actividade do seu comércio '. A população representarem o busto do imperador nas moedas e de. I da cidade devia contar, ao lado dos negociantes, com uma .no reverso, gravarem a Victo/ia Augusti e que, levando numerosa classe de artistas'. Sob todos os aspectos, a imitação ao extremo, não deixaram, quando os Bizan- parece, pois, conservar sob o governo dos reis francos o tinos substituíram pela cruz a imagem desta VictorUz, carácter nitidamente municipal das cidades romanas. de logo imitarem o seu exemplo. Um servilismo tão O movimento económico de Marselha propaga-se na- completo só se explica por motivos imperiosos. Tem turalmente ao hinterland do porto. Sob a sua influência como causa evidente a necessidade de conservar entre a todo o comércio da Gália se orienta para o Mediterrâneo. moeda nacional e a moeda imperial uma identidade que O:,;impostos mais importantes do reino dos Francos estão não teria razão de ser se as mais intimas relações não -; " tivessem continuado entre o comércio merovíngto e o comércio geral cioMediterrâneo, quer dizer, se este comér- , Bistorla FrmtCONL"H, ed. Krusch, I. IV, § 43.I. V. ~5. 1. VI. cio não tivesse continuado a ligar-se pelos mais estreítos § 17. 24. 1. IX. ~ 22. Cf. Gregõrio. o Grande. Epistolaf', I. 45.- laços ao comércio do Império Bizantino '. Demais, desses Havia em Marselha um entreposto (cellarium f-isci, catabolus ! laços, as provas abundam, e bastará recordar aqui algu- ",' provido de uma caixa incontestAvelmente alimentada pelos direi- tos de entrada e que era ainda suncíentemento rica no fim do mas das mais significativas. Antes de tudo, notemos que século VII para. que o rei pudesse constituir sobre ela rendas Marselha não cessou de ser, até ao começo do século VIII, que montavam A cifra de 100soldos-ouro. VE'ja-se um exemplo o grande porto da Gália.Os termos empregados por Gre- para a abadia de S. ::>inisem Mon. Germ. Hist . Diplomata, t. J. n.'· 61 e82. Cf. Mon. Gel"1n.Hist, Script . Re1"U1nMeroving·ica"",,,, t. 11.p, 406. aM. Prou, Catalogue des I1wmwies mél·ovingiclllle.. de Ia 8'ibliotheque Naticmale de PQ1'is,p. 300. 'M. Prou, Catalogue de" mO'l1na;eNmlh·01!illgielllle,. de Ia "Com efeito. é impossível não supor a I'xisténda em Marse- Bibliothtque Naticmale de Paris. Introduction; H. Pircnno, «UlI lha de uma classe de artistas. pelo mr-nog tão importante como contraste économique. Mérovingiens et Carolinglens» [Revue belge a que existia em Arles nos meados do século VI. F. Kiener, Ver- âellhilologie et d'I"i8toire, t. 11(1923). p. 225]. fassunUII.qeschichte der Provence, p. 29 (Lripzig. 1900).