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AS ALMAS HERDEIRAS». PDF

726 Pages·2016·4.29 MB·Portuguese
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MARIA DE LURDES PEREIRA ROSA «AS ALMAS HERDEIRAS». Fundação de capelas fúnebres e afirmação da alma como sujeito de direito (Portugal, 1400-1521) Tese de Doutoramento em História Medieval apresentada à École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, e à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa LISBOA 2005 Ao Zé e à Carminho A minhas irmãs e irmãos Em memória do Professor Pe. António Domingues de Sousa Costa, OFM “Posible, pero no interesante – respondió Lönrot. Usted replicará que la realidad no tiene la menor obligación de ser interessante. Yo le replicaré que la realidad puede prescindir de esa obligación, pero no las hipótesis.” Jorge Luís Borges, “La muerte y la brújula”, p. 149, Ficciones, 4ª ed., Madrid, Alianza Ed., 1993 “Não vazes tantas vezes vozes rente ao vento e não escutes os pássaros nem mesmo o mar não oiças sequer o vento se soprar ouve o tempo passar escuta a sua voz pois o tempo tem voz o tempo fala” Ruy Belo, “Um dia uma vida”, in Todos os poemas, p.547, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000 (de: Toda a Terra) ÍNDICE Introdução................................................................................................................................. 1 Cap. I- As almas herdeiras: tópicos para uma análise, em torno de duas narrativas...... 9 Cap. II –“Fit et facit ad vitam et salutem animam”: a construção teológica e canonística da “propriedade das almas”..................................................................................22 1. A constituição do direito das “pias causas” no Baixo Império...............................26 2. ODecreto de Graciano e colecções legislativas anexas .........................................30 3. Transformações tardo-medievais............................................................................32 4.As almas dos reis mortos contra os reis vivos: as respostas de “um outro Direito”......................................................................................................................67 Cap. III – A majestade e a misericórdia: a construção do papel do rei na salvação das almas (das “leis jacobinas à “reforma manuelina”)..........................................................109 1. D. João I e “Príncipes de Avis” (entre teorização da intervenção régia e resistência eclesiástica)...........................................................................................................111 2. D. Afonso V (a consolidação da intervenção régia).............................................136 3. D. João II e D. Manuel (a conclusão da reforma).................................................151 4. Um estudo de caso: o tribunal régio e a capacidade sucessória das «almas em glória» (1472-c.1542)...........................................................................................202 Cap. IV – As capelas de leigos na Lisboa tardo-medieval: enquadramentos devocionais e características do processo de instituição das “almas herdeiras”....................................238 1. A fundação de capelas na capital do reino, 1400-1521.........................................238 1. Fontes .......................................................................................................238 2. Tempo, espaço e homens...........................................................................248 3. Um projecto de vida..................................................................................269 4. Em torno do perfil dos fundadores............................................................284 5. Contextos devocionais...............................................................................300 a) Devoção culta e piedade interiorizada...........................................300 1. Afirmar-se como devoto..........................................................300 2. Confessores e “pais espirituais”...............................................304 3. Pertença a irmandades de leigos .............................................308 4. Pertença a movimentos confraternais......................................311 5. Cultura litúrgica e doutrinal.....................................................315 b) A privatização da religião..............................................................344 1. A posse e o uso de livros de horas...........................................349 2. As doações de livros litúrgicos e devocionais.........................372 3. Ambientes e objectos...............................................................383 2. Espiritualizar o corpo : o funeral e o ciclo comemorativo anual..........................400 1. O funeral....................................................................................................407 2. O ciclo anual..............................................................................................422 3. Corporizar a alma: a constituição da capela em instituição................................ 426 1. Umainstituição com características especiais...........................................426 a) A vontade do fundador como lei “interna”....................................428 b) Uma reprodução institucional específica: a capela ancorada em estruturas sociais informais...........................................................440 c) Uma instituição baseada em imperativos religiosos e éticos.........460 d) Uma instituição funcionando para o sobrenatural.........................474 2. A “casa material da alma”.........................................................................483 3. A capela e a comunidade...........................................................................509 Conclusão...............................................................................................................................527 Apêndice de quadros e gráficos...........................................................................................532 Índice do Apêndice de Quadros e Gráficos........................................................................533 Apêndice documental............................................................................................................632 Fontes.....................................................................................................................................636 Bibliografia............................................................................................................................647 Siglas.......................................................................................................................................708 Agradecimentos.....................................................................................................................710 1 INTRODUÇÃO Nas disposições relativas à instituição de capelas fúnebres contidas na lei de 7 de Setembro de 1769, o Marquês de Pombal, pela boca do régio legislador, apresentava, como principal razão para as medidas tomadas, a necessidade de evitar uma catástrofe iminente: “se chegará ao caso de serem as almas do outro Mundo senhoras de todos os Predios destes Reinos”1. Inserida num documento trespassado por uma impaciência flagrante contra a irracionalidade de um mundo que se procura iluminadamente organizar, a expressão situa-se na fronteira da ironia com a descrença. E, no entanto, por mais absurda que a sentisse, e exprimisse, o Marquês de Pombal sabia estar a referir-se a uma realidade bem real. As almas eram “senhoras”, isto é, proprietárias de pleno direito, de bens terrenos, vastas parcelas do reino do Senhor D. José... O legislador iluminado situava-se ainda no limiar de um mundo regido pela lógica que colocava, com toda a naturalidade, as almas dos mortos a par dos vivos, com eles comungando direitos e privilégios jurídicos. Ou seja, num sistema como o que ele procurava destruir, a instituição das capelas fúnebres tinha limpidamente aquela função. Por detrás de cada uma delas, estava um proprietário do Outro-Mundo, a que aquele instituto possibilitava continuar, neste mundo, a deter bens e direitos. Assim, ainda que formulado com ironia, o diagnóstico era certeiro, e apenas por via legislativa, ao nível supremo, era possível alterar, com a legalidade que se impunha, uma situação de iure. Sebastião José saberia ainda, com toda a probabilidade, que a sua lei era mais uma na longa colecção de actos régios que tinham tentado interferir nas duas esferas legais em que se moviam as capelas: as vinculações e as disposições pro anima. Desde o século XIII que os reis de Portugal, à semelhança dos outros soberanos europeus, legislavam sobre o tema. É certo, porém, que a legislação de Pombal marcou uma viragem decisiva: não se inseria já na aceitação do “planeta” sócio-legal onde as capelas tinham lugar natural, e onde ao legislador régio cabia apenas a função de evitar abusos – aceitando que a natureza do instituto envolvia uma outra esfera legislativa, a canónica, dotada de autoridade sobrenatural (o que não se discutia), e com a qual se construía uma convivência “caso a caso”. Antes, fazia tábua rasa dessa realidade e afirmava o poder supremo do soberano iluminado para acabar com os vestígios de um passado que, se se 1Lei de 7 de Setembro de 1769, § 12 (p. 9), inCollecção de leis, decretos e alvarás que comprehende o feliz reinado d’El Rei Fidelissimo D. José desde o anno de 1766 athe o de 1770, vol. II, Lisboa, Off. de Miguel Rodrigues, 1770. O estudo mais recente e completo sobre esta lei, e a legislação pombalina afim, 2 apresentava como irracional e desorganizado, devia tal, precisamente, ao poder que nele tinha o sobrenatural. Ou seja, o ambiente perfeito das almas do Outro-Mundo, entendidas e queridas como um parceiro em tudo semelhante aos homens de carne e osso deste... A legislação pombalina é, assim, o início “em grande” do processo de dissolução de uma realidade cuja compreensão se tornou progressivamente mais difícil – porque a natureza profunda deste processo foi a de, aos poucos, mas sem recuos, tornar o sobrenatural uma realidade irracional... Devolver a racionalidade ao “mundo das capelas” pré-absolutista e pré-liberal – na sua fase tardo-medieval-, e explicar a lógica do seu funcionamento: eis os objectivos deste trabalho. Se começou por ser a parte inicial de um primeiro projecto visando construir uma síntese sobre “a religiosidade dos leigos, no Portugal da Baixa Idade Média”, o interesse e a vastidão do tema acabaram por conduzir à sua exploração exclusiva. Para tal contribuíram, ainda, dois outros factores. Em primeiro lugar, a constatação que existia um campo de estudos quase oculto, ou mesmo já perdido, votado ao desinteresse pela voga das abordagens “sociológicas”: a dimensão legal das capelas, afinal aquilo que mais certeiramente – com conhecimento vivencial – criticava o Marquês de Pombal. Uma legalidade porém específica, própria do mundo antigo e medieval. A exploração deste campo de estudos, e a decisão de localizar e analisar as fontes históricas que ele sugeria e implicava, veio provocar um primeiro grande alargamento do enfoque primitivo. O segundo foi causado pela constatação de que, através das capelas, era também possível alcançar o “mundo devocional”, e de que, sem o seu enquadramento, elas simplesmente não têm explicação. Vejamos agora como se articula o nosso trabalho. No capítulo I procuraremos, através da narração explicativa de duas histórias de fundação de capelas fúnebres, colocar a problemática a que o resto do trabalho quer responder, de forma mais analítica. A ideia que presidiu a estes relatos foi a de tentar reconstituir esta específica prática fundadora de uma forma complexa e integrada, referindo ainda os principais problemas que ela coloca ao historiador. A virtude da abordagem narrativa parece-nos na perspectiva que nos interessa, encontra-se em Ana Cristina Araújo, A morte em Lisboa. Atitudes e representações 1700-1830, pp. 273-280, Lisboa, Ed. Notícias, 1997. 3 ser a de permitir expor a problemática analítica sem operar um distanciamento ainda maior em relação às fontes, afinal apenas vestígios de uma realidade longínqua, encoberta e infinitamente mais rica do que aquilo que chegou até nós. A “voz do passado”, reabilitada por algumas correntes da historiografia contemporânea, muito para além da velha perspectiva romântica, chega-nos talvez mais conforme à complexidade do real, se escutarmos com a atenção do colector de histórias, tentando reconstruir a sua mensagem, antes de a começar a analisar friamente, com as categorias do historiador profissional. Assim, sob a epígrafe da «espiritualização dos corpos », procuraremos explicar como, através da fundação de uma capela fúnebre, se constrói sobre o « corpo físico » do fundador uma outra realidade também corpórea, mas desta vez um «corpo» formal, institucional, ou ainda, num certo sentido, como veremos, ficcional. A história que nos servirá de fio condutor é a da fundação de Pedro Eanes Lobato, cidadão de Lisboa que, julgando-se perto da morte no ano de 1438, prepara cuidadosamente a vida futura que o espera. Um outro fundador, Gonçalo Lourenço de Gomide, lega à posteridade, em transe semelhante, desta vez no ano de 1410, uma rica reflexão sobre o enquadramento material que prevê dar, após a sua morte, à parte espiritual do seu ser. Jogando com a ideia das duas «moradas» do homem, a espiritual e a temporal, este alto funcionário régio elabora um discurso onde se vislumbra claramente toda a complementaridade que estas duas realidades revestiam, para o homem medieval. Ele permite-nos pôr o problema da função dos bens materiais e daquilo a que hoje chamaríamos «recursos humanos », desta pequena «empresa » criada para levar a alma ao Céu : é o que tentaremos na 2ª parte deste texto, intitulada «a corporalidade das almas ». Todas as questões evocadas deste modo serão depois desenvolvidas analiticamente no resto do trabalho. Assim, no capítulo II, procuraremos explicitar os fundamentos canónicos e teológicos da “propriedade das almas”, a partir da reflexão teológico- jurídica que a Igreja construiu sobre o tema, e da forma como depois ela foi recepcionada pelos leigos. Nesta parte interessa-nos visualizar o problema “a partir de dentro”: é crucial perceber-se a argumentação relativa às funções das «heranças por alma», e à propriedade eclesiástica em geral, bem como as formas de que revestiu a reclamação dos direitos (da «batalha jurídica» à manipulação da emoção e da tradição, revelando a grande maleabilidade institucional que permitiu à Igreja a sua plurissecular 4 hegemonia). Tentaremos apresentar uma síntese sobre a história da constituição das “piae causae”, na evolução da propriedade da Igreja, a partir dos trabalhos existentes. Trataremos depois em particular das capelas, espécie daquele género global, com problemáticas específicas – que vinham sobretudo da sua grande inserção na esfera laical. A base empírica será a normativa canónica, e as obras dos seus principais comentadores, no campo das “pias causas”. Será dada natural enfâse a algumas obras da literatura jurídica ibérica dos séculos XIV-XV (complementadas com obras idênticas do primeiro século XVI, desde que tal se revele pertinente). Tentar-se-à nunca perder de vista os fundamentos teológicos da construção jurídica, de modo a enquadrar todo o tema dentro da proposta metodológica de Paolo Grossi, a concepção da Igreja como um “planeta jurídico” de base religiosa. Terminaremos este capítulo com uma abordagem preliminar, construída a partir de dois “estudos de caso”, do que definimos acima como segunda forma de reclamação dos direitos, por parte da Igreja: o recurso à manipulação da emoção e da tradição. Tendo em vista a defesa dos interesses eclesiásticos perante a Coroa precisamente em matéria de “bens da igreja”, dois dos mais importantes santuários régios do século XV, Santa Cruz de Coimbra e Santa Maria da Oliveira, vão desenvolver narrativas de milagres envolvendo o castigo dos oficiais régios e dos próprios reis – narrativas em que o papel de justiceiro divino é assumido por “reis bons”, já mortos. No caso mais tardio, resta- nos mesmo o testemunho de uma invocação pública da “narrativa sacra” dos poderes do Santuário, sob a forma de “arenga” feita aos funcionários encarregues de executar os bens daquele – que nos permite avaliar do impacto emocional que tinham estas “armas sacrais”. É importante salientar, porém, que mais do que o interesse de cada um, estes estudos de caso se referem sempre ao problema central da tese: os diferentes caminhos da “reificação das almas”, trilhados de forma diversa pelos dois poderes “oficialmente legais” da sociedade medieval: a Igreja e a Coroa. Estudada a relação entre as “almas” e a Igreja, passaremos, no capítulo III, ao estudo do relacionamento daquelas com o outro grande poder medieval, a Coroa. Os bens dos «pia corpora» pertenciam «às almas» e o seu objectivo dependia da «vontade dos defuntos». Almas e defuntos: dois, ou o mesmo, «grande ausente», presente porém através de um extraordinário poder sobre os vivos, e cuja representação, na vida terrestre, foi fortemente disputada pelos poderes. Já no direito romano, o respeito pela vontade dos defuntos constituía um dos pilares da ordem política e social; a decadência 5 do poder civil arrastara para a esfera eclesiástica este dever para com os mortos, afinal enorme poder sobre os vivos. Na época medieval, a constituição dos Estados acendeu a rivalidade, aqui como em tantos outros campos. A propriedade que a Igreja acumulara ao longo dos séculos, a partir do seu papel de dispensadora de salvação, bem como a proeminência generalizada que assim adquirira, eram demasiado fortes para o poder régio. É importante explicitar aqui a inexistência de qualquer paralelo entre a acção da Coroa portuguesa tardo-medieval e a ofensiva do Estado liberal sobre a propriedade eclesiástica, no processo de desmantelamento do Antigo Regime. De facto, o modelo deste processo histórico é demasiadas vezes projectado sobre a Baixa Idade Média, impossibilitando a correcta percepção da posição da Coroa. A salvação da alma, própria e dos súbditos, eram uma real preocupação do Rei, integrada com o papel de centralização da ordem pública que pretende assumir, e que se traduz também na «reforma» da Igreja. Se tal passa muito claramente pela drástica limitação da posse de bens à Igreja, não é pela descrença do papel desta na salvação das almas, através da intercessão ritual. A afirmação do domínio régio sobre os bens temporais do seu reino colidiu com o facto de, depois de séculos de doutrina e prática neste sentido, boa parte daqueles bens estarem afectos a fins espirituais; e com a realidade de ser a monopolização dos cuidados com estes fins, por seu lado, que alimentava a força do poder eclesiástico. As lutas pela hegemonia foram portanto inevitáveis, e não podem ser escamoteadas. Mas a Coroa não se poderia nunca afirmar através de mecanismos estranhos ao horizonte mental da época, sendo reais as balizas impostas por conceitos como a «libertas ecclesiae» ou por armas menos teóricas mas talvez até mais actuantes, como as que resultavam de um mau relacionamento prolongado com o clero. Por outro lado, a racionalidade do Estado contemporâneo era algo alheio aos reinos medievais. O sistema que a Coroa portuguesa da Baixa Idade Média montou para fiscalizar e regular os “corpos pios” não foi um sistema «rentável», para utilizar um conceito que perpassa por muitos estudos sobre o tema, em especial os que defendem a “modernização” da assistência medieval (apesar do anacronismo que ele representa, quanto às intenções dos agentes). Estão a demonstrá-lo a história das instituições pias na Época Moderna, bem como a caótica situação a que se chega, em meados do século XVIII, e a que a própria Igreja tenta obviar. O objectivo tardo-medieval foi o de gerir, dentro de um sistema de redistribuição e sempre em negociação com o poder eclesiástico,

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Fundação de capelas fúnebres e afirmação da alma .. bens à Igreja, não é pela descrença do papel desta na salvação das almas, através da Teve ainda um outro efeito colateral de peso: foi especialmente proveitosa para o.
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