AO RÉS DO CHÃO, SEM CHÃO Drummond e a crônica moderna brasileira Arthur Vergueiro Vonk Série: Produção Acadêmica Premiada Arthur Vergueiro Vonk AO RÉS DO CHÃO, SEM CHÃO Drummond e a crônica moderna brasileira FFLCH/USP São Paulo 2016 UniVerSiDADe De São PAULo reitor: Prof. Dr. Marco Antonio Zago Vice- reitor: Prof. Dr. Vahan Agopyan FACULDADe De FiLoSoFiA, LetrAS e CiênCiAS HUMAnAS Diretor: Prof. Dr. Sérgio França Adorno de Abreu Vice-Diretor: Prof. Dr. João roberto Gomes de Faria SerViÇo De eDitorAÇão e DiS tribUiÇão FFLCH USP Helena rodrigues Mtb/SP 28840 Diagramação: Davi Masayuki Hosogiri Copyright © Arthur Vergueiro Vonk indicação Premiada do Programa de teoria Literária e Literatura Comparada de 2013. Catalogação na Publicação (CIP) Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Vonk, Arthur Vergueiro V947 Ao rés do chão, sem chão [recurso eletrônico] : Drummond e a crônica moderna brasileira / Arthur Vergueiro Vonk. -- São Paulo : FFLCH/USP, 2016. 172.119 Kb ; PDF. -- (Produção Acadêmica Premiada) Originalmente apresentada como Dissertação (Mestrado) -- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2013. ISBN 978-85-7506-277-7 1. Literatura brasileira (Crítica e interpretação). 2. Crônica literária – Século 20 – Brasil. 3. Crítica literária. I. Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987. II. Título. III. Série. CDD 869.985 How absolute the knave is! we must speak by the card, or equivocation will undo us W. Shakespeare (...) sobretudo, o que parece habitual B. Brecht Tornado através disso mais circunspecto, não me tornei todavia mais instruído (...) I. Kant sumário Nota ............................................................................................................................6 1. A boa sombra ...........................................................................................................9 2. Meia-luz ................................................................................................................27 3. Simpatia e sensibilidade .........................................................................................48 4. Entre os homens ....................................................................................................82 Epílogo ....................................................................................................................104 Excurso: Turista em trânsito .....................................................................................110 Bibliografia ...............................................................................................................123 Produção Acadêmica Premiada - FFLCH nota A transitividade que ronda as representações correntes a respeito da crônica mo- derna brasileira não dispensa que a sua discussão se inicie por um breve capítulo das dificuldades. Elas se manifestam de saída na postulação de uma aparente facilidade da forma, cuja ginga lírica convidaria ao descarte do exame crítico. É esse o ponto de apoio da louvação, potencialmente antiintelectualista, de uma escrita espontânea e natural, fre- quente nos comentários dedicados ao assunto e reivindicada por boa parte do elenco de cronistas brasileiros. A disposição a aderir ao idioma afetivo da prosa faz par com outro polo da recepção, pronto a equiparar minoridade e irrelevância, e portanto a conceder à crônica não mais do que estatuto acessório na consideração das ditas grandes obras. O rebaixamento de horizonte seria coroado com a lembrança da precariedade que deter- mina as condições de produção da escrita para jornal, impondo um freio às leituras de corte superlativo. Não é o caso de fazer pouco do que há de contingência ou mesmo fragilidade na letra e no espírito da crônica; pelo contrário, trata-se, justamente, de perguntar pela sua parte na experiência de uma forma, que é histórica e cristaliza algo da vida intelectual do país. Este trabalho busca examinar essas relações através da leitura de uma obra especí- fica, Fala, amendoeira, volume publicado por Carlos Drummond de Andrade em 1957. A investigação procurou extrair dos movimentos temáticos e formais a possibilidade de considerar aspectos da vida cultural e material, cuja discussão foi incorporada ao argu- mento na medida em que o permitiram as configurações encontradas no livro. Não são óbvios os caminhos através dos quais se vinculam textos específicos e um corpo mais amplo de problemas, o que poderia colocar sob suspeita qualquer tentativa de generalização. O exame revelou, no entanto, uma obra consistente, dentro de seus limites, e, sobretudo, um material repleto de pontos de mediação com o quadro em que se firma o idioma coletivo da crônica moderna brasileira. Fala, amendoeira permi- te discuti-lo a partir de alguns ângulos complementares, seja a passagem do ensaísmo praticado anteriormente por Drummond, sobretudo em Passeios na ilha, seja a fixação literária de um andamento intelectual que possui determinações no processo histórico brasileiro entre, mais ou menos, as décadas de 30 e 60 do século passado. Sem preten- der esgotar a obra, tratou-se de descrever os movimentos através dos quais se constitui a figura do cronista drummondiano. Ao investigar os seus gestos básicos, foi também possível considerar, ainda que brevemente, realizações de outros cronistas. O parentesco não elimina as notas dissonantes, que dão a ver as potencialidades e travejamentos de uma literatura pouco debatida. Com o fito de adensar a reflexão, incorporou-se, como excurso, o exame de alguns aspectos da série de crônicas O turista aprendiz, que Mário de Andrade publicou entre 1928 e 1929 no Diário Nacional. 6 Produção Acadêmica Premiada - FFLCH Os problemas incrustados na experiência da crônica moderna brasileira talvez te- nham já passado, embora, de lá para cá, nada haja ocorrido que permita falar em supe- ração. Se a crônica não mobiliza mais expectativas, se seria pouco plausível reafirmar a graça que nela já se celebrou, entender e estranhar o que esteve em jogo em sua aparente facilidade talvez seja oportuno. Quando não, ao menos para estranhar também costu- mes mentais com os quais ainda precisamos nos haver ao tentar compreender a prosa de tempos desconcertantes. Este trabalho foi beneficiado durante 24 meses por uma bolsa de estudos conce- dida pela CAPES. Sua elaboração não passou incólume pelas agruras e pedregulhos que costumam povoar os caminhos de uma pesquisa. Ao enfrentá-los, tive a boa sorte de contar com valiosa interlocução intelectual e companhia afetiva. Embora eu não tenha conseguido incorporar todas as sugestões partilhadas ou fazer justiça ao apoio recebido, a experiência, vista de hoje, permite atribuir a esses anos o sentido de uma aprendizagem. A lista é longa mas indispensável. Agradeço: a Edu Teruki Otsuka, que orientou este trabalho com paciência, pelas contribui- ções precisas e pela interlocução amiga que, desde a graduação, ajuda a dar algum norte aos estudos; aos professores Vagner Camilo e Ivan Francisco Marques, que participaram do exame de Qualificação, pela leitura atenta e pelas sugestões valiosas; ao professor Joaquim Alves de Aguiar, orientador de pesquisa durante a gradua- ção, que sugeriu o estudo da prosa drummondiana; a Ana Paula Pacheco, que leu e comentou versões deste trabalho em momentos cruciais, pela disposição ao pensamento coletivo e pela firmeza da amizade (e também pela observação da qual foi desentranhado o título da Dissertação); a José Antonio Pasta, exemplo crítico, pelos cursos que frequentei reincidentemente; a Ivone Daré Rabello, que viu este trabalho começar, pelo diálogo inquieto que, ao longo dos anos, assumiu vivo papel formativo, no texto e fora dele; aos amigos que os estudos trouxeram: Rafael Baitz, pelo compadrio republicano e a faculdade de conversar; Anderson Gonçalves da Silva, pela leitura, pela boa prosa, e por todas as ideias que apareceram entre Kant e a crônica; Pedro Coelho Fragelli, pela solidariedade e o diálogo franco e aceso; Vinícius Marques Pastorelli, pela especulação livre e as parcerias a cumprir; Christian Gilioti, pela análise técnica e tática, pelo apoio e pelas conspirações, arranjo imprevisto de cumplicidade e crítica; a Danilo Serpa e Fábio Rosa, pela república demoniacamente imaginada, em meio a uma cidade em parafuso e pilhas de livros por ler; a Simone Dantas e Breno Longhi, pela implacável galhofa nos tetos do Butantã; a Felipe Figueiredo, Shigueru Watanabe Jr. e João Marcos Cardoso, pela camara- dagem contra a corrente; à velha guarda, sempre presente, não importa a frequência: Fernando Carlos Har- greaves, pela alegria autêntica de um pastel; Daniel Bacellar, pela madrugada; Luis San- 7 Produção Acadêmica Premiada - FFLCH tiago Leme, desde que a infância parecia tenra; Daniel Tanis, porque concordar não é preciso, discutir, sim; Pedro Fukuti, pelo gume que nem a medicina esmorece; a Sofia, sorriso e energia; ao Gabriel, pela descompressão esportiva; ao meu irmão Lelo, pela ajuda e companhia constantes; ao meu pai, pelas lições de bom humor, obsessão e curiosidade intelectual; a minha mãe, pelo carinho, presença e apoio incondicional; à Dedé, que emprestou coragem ao trabalho, pelo amor que não cabe na página. 8 Produção Acadêmica Premiada - FFLCH capítulo 1 a boa sombra O período de abertura do primeiro texto de Fala, amendoeira, mais que indícios, contém algo do movimento encenado no livro, por assim dizer, uma de suas células mí- nimas. Nela, encontra-se também uma cifra da passagem à prática de uma modalidade literária até então recessiva na obra de Drummond: “Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta aten- ção em nós.”1 O livro, de 1957, é a primeira seleção organizada dos textos publicados, a uma razão de três por semana, na coluna “Imagens”, mantida no diário carioca Correio da Manhã desde 1954. Não é difícil identificar essa produção ao modelo de crônica literária que se consolidara a partir dos anos 1930 no Brasil.2 Como nota Antonio Can- dido, a “virtuosidade” da prosa anterior de Drummond, palco de uma “atividade mais complexa”, só se enquadraria em uma concepção alargada do gênero: em Confissões de Minas (1944) e Passeios na Ilha (1952), ensaio, crítica, relato autobiográfico e pequenas criações ficcionais compõem um conjunto de textos que se poderia tomar como crônica apenas “entre aspas”.3 Também Fala, amendoeira, é certo, apresenta alguma variedade ao longo das dez seções em que os textos são divididos; naqueles agrupados sob a designa- ção “Despedidas”, por exemplo, a evocação da figura de amigos mortos deixa de lado a tendência à ficcionalização.4 Há outros casos nos quais a disposição digressiva evita o padrão de abordagem do cotidiano através de um esquema narrativo mais ou menos armado, sem, todavia, aproximar-se do comentário de estrutura argumentativa aos fatos 1. “Fala, amendoeira”. In: Carlos Drummond de Andrade. Fala, amendoeira. 17ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, pp. 19-20. As citações do texto aparecerão em itálico, tal como ele é grafado no livro, à diferença das outras sessenta e duas crônicas do volume. Por conta da extensão breve das crônicas, optamos por não indi- car a paginação a cada referência. 2. Cf. “A vida ao rés do chão”, in: Antonio Candido. Recortes. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 29; “Fragmentos sobre a crônica”, in Davi Arrigucci Jr. Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experi- ência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 63. 3. “Drummond prosador”, in: Antonio Candido, Recortes, cit. Para as expressões citadas, ver, respectiva- mente, pp. 16 e 19. 4. Antonio Dimas parece se apoiar nos seis textos que compõem a seção para, generalizando para o conjun- to do livro a tendência ao comentário, afirmar que Fala, amendoeira participaria da “fase eclética” da prosa drummondiana (cf. Antonio Dimas, “A crônica de Carlos Drummond de Andrade”, in: Boletim Bibliográfico Biblioteca Mário de Andrade, Vol. 42, número 2, 1981, pp. 7-15). Rita de Cássia Barbosa propõe a mesma divisão sugerida, posteriormente, por Antonio Candido, localizando na produção que se inicia em meados dos anos 1950 o momento em que a prosa drummondiana passa a poder ser identificada, sem grandes dúvidas, como crônica – lembrando, todavia, que também aí encontraremos textos construídos mais como “impres- sões” do que como narrativas. Ver “Introdução”, in: Rita de Cássia Barbosa. O cotidiano e as máscaras: a crônica de Carlos Drummond de Andrade. Tese de Doutoramento. FFLCH-USP, 1984, pp. 13-49. 9 Produção Acadêmica Premiada - FFLCH do dia (ou da semana, ou da quinzena) que distingue as primeiras etapas do desenvolvi- mento da crônica brasileira, entre meados do século XIX e as décadas iniciais do século XX. Se não chega a autorizar a aproximação com a “latitude maior”5 das duas coletâneas anteriores, mostrando-se tributária do regime intelectual a que este segundo momento da prosa drummondiana está submetido, a fluidez de limites observada na obra remete à dificuldade de delimitar fronteiras entre gêneros, mas também a certo usufruto da am- bivalência que, sem alarde, a crônica exerce em várias frentes. É, afinal, entre ofício e rabisco que o escritor situa a sua atividade ao transpor para o livro a feição de cronista regular que passara a assumir. O período de abertura fixa essa disposição específica em uma formulação na qual tempo e natureza adquirem centralida- de, estabelecendo os polos que darão a direção da prosa drummondiana num gênero cuja dedicação ao presente imediato procura aquilo que não se costuma notar no cotidiano. Mas isso se faz de acordo com a inflexão “acolhedora”, a adoçar a “aspereza do poeta”, que Candido assinalou em sua resenha de Fala, amendoeira.6 A observação do crítico antecipa a percepção, desenvolvida em artigo posterior, de uma “divisão do trabalho literário” em Drummond: a mesma matéria, configurada pela mesma sensibilidade, assumiria feições diversas na poesia e na prosa do Autor, esta mais distendida e transitiva, aquela tensionada pela exploração concentrada das possibilidades de cada palavra.7 Não por acaso, a resenha de Candido se referia ao livro de 1957 como um “week-end literário”, no qual se desataria a “crispação” dos versos do escritor, ora postado “em galho onde suas responsabilidades são outras, e menos essenciais”.8 O específico dessa “responsabilidade”, que faz a palavra mes- ma vibrar estranhamente, quase em conflito com a dimensão de passatempo que envolve a crônica, está inscrito na forma dos textos, e diz respeito a uma postura literária e intelectual que cumpre desvendar, buscando o significado de Fala, amendoeira e sua posição no qua- dro da crônica moderna brasileira. A leitura do texto de abertura ao volume permitirá dar nome a alguns dos elementos que compõem esse feixe de problemas. Sua posição é peculiar: cumpre as vezes de prefácio, à maneira das notas iniciais com que Drummond abre seus outros livros de prosa, sem, no entanto, assumir de imediato o papel de advertir ou esclarecer a respeito do que se lerá. Sem título próprio, identificado no índice da primeira edição através de suas primeiras palavras9, esse texto 5. A expressão também é de Antonio Candido. Cf. “Drummond prosador”, cit., p. 16. 6. Idem, “Dois cronistas”. In: Textos de intervenção. Seleção, apresentação e notas de Vinícius Dantas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002, p. 206. (A resenha de Fala, amendoeira foi originalmente publicada por Antonio Can- dido no Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo, em 11/1/1958. Ao sair em livro, aparece associa- da pelo organizador do volume a outra resenha de um livro de crônicas, Dez anos, de Gustavo Corção). 7. Idem, “Drummond prosador”, cit., p. 22. 8. O vocabulário fora empregado nos anos 1940 pelo próprio Drummond, em depoimento bastante conhe- cido, no qual a sua concepção particular de engajamento o levava a afirmar que “poesia é negócio de grande responsabilidade”. Cf. “Autobiografia para uma revista”, in: Confissões de Minas. In: Carlos Drummond de Andrade. Prosa seleta. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2003, p. 198. 9. Em outras edições que pude conferir, o texto é identificado como “Fala, amendoeira” – não foi possível averiguar se a mudança foi escolha do Autor ou iniciativa editorial. 10
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