ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS Para um novo cenário global na antropologia Gustavo Lins Ribeiro Cosmopolíticas atravessam o campo político e epistemológico da antropologia são conectadas às dinâmicas do sis- Entendo as questões tratadas pelos antropó- tema mundial e àquelas dos Estados-nações, prin- logos, suas preocupações teóricas, contribuições cipalmente às que dizem respeito aos diversos para o conhecimento, dilemas e erros, assim papéis que os “outros” ou a “alteridade” podem como as capacidades heurísticas e epistemológi- ter em cenários internacionais e nacionais. cas da disciplina, como inseridos em dinâmicas Este artigo é fortemente inspirado em um sociais, culturais e políticas que se desdobram em movimento coletivo chamado Redes de contextos historicamente estruturados, de diferen- Antropologias Mundiais (RAM) do qual sou membro tes maneiras, por relações de poder variáveis. As (ver sitewww.ram-wan.org). A rede tem como obje- principais forças sociológicas e históricas que tivo pluralizar as visões prevalecentes da antropolo- gia em uma conjuntura onde persiste a hegemonia dos discursos anglo-saxões sobre a diferença. Essa * Este texto foi apresentado como uma conferência perspectiva provém da compreensão de que, em no seminário internacional “A donde va la antro- pología?”, em setembro de 2004, em comemoração uma época de globalização exacerbada, os antropó- aos trinta anos da Universidad Autónoma logos não têm discutido consistentemente a nature- Metropolitana – Iztapalapa, Cidade do México. za corrente de sua prática e das transformações que (continua na página 164) ela atravessa em escala global. Isso pode ser uma conseqüência da hegemonia internacional da antro- Artigo recebido em novembro/2005 pologia norte-americana e sua tendência a confun- Aprovado em dezembro/2005 dir suas próprias crises internas com uma global. RBCS Vol. 21 nº. 60 fevereiro/2006 148 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60 A rede de “antropologias mundiais” preten- na construção de grandes unidades políticas. de contribuir para a articulação de uma antropo- Entendo a antropologia como uma cosmopolítica logia diversificada mais consciente das condições concernente às estruturas de alteridade (Krotz, sociais, epistemológicas e políticas de sua própria 1997), uma cosmopolítica que pretende ser uni- produção. A rede tem três objetivos principais: a) versal, mas que, ao mesmo tempo, é altamente examinar criticamente a disseminação internacio- sensível a suas próprias limitações e à eficácia de nal da antropologia – como uma série de discur- outras cosmopolíticas. Poderíamos dizer que sos e práticas ocidentais variáveis – dentro e atra- antropologia é um discurso político cosmopolita vés de campos de poder nacionais, assim como relativo à importância da diversidade para a os processos mediante os quais essa dissemina- humanidade.3 ção acontece; b) contribuir para o desenvolvi- Entender a antropologia como uma cosmo- mento de paisagens plurais de antropologias que política não é um ato destituído de implicações. sejam menos formadas pelas hegemonias metro- Significa, desde o princípio, que a antropologia politanas e mais abertas ao potencial heteroglós- não é o único discurso que trata da importância da sico da globalização; e c) encorajar conversas diversidade, apesar de sua sofisticação. De fato, entre antropólogos de diversas regiões do mundo deveríamos esperar que a antropologia fosse uma a fim de avaliar a diversidade das relações entre das mais sofisticadas cosmopolíticas sobre diversi- antropologias regionais e nacionais e um discurso dade, uma vez que é uma disciplina acadêmica. disciplinar, contestado, atravessado por relações Mas, um discurso xamanístico de um ianomami na de poder.1 Este projeto faz parte de uma antropo- Amazônia brasileira pode também representar logia crítica da antropologia, uma perspectiva que uma cosmopolítica, e isso realmente ocorre. Basta descentraliza, re-historiciza e pluraliza o que tem ver a intertextualidade cultural presente nas falas sido considerado “antropologia” até então. Ele do líder ianomami Davi Kopenawa, que articula questiona não só os conteúdos, mas também os discursos xamanísticos com ambientais globais termos e as condições dos encontros antropológi- relativos ao destino da Terra (Albert, 1995). Olhar cos. “Antropologias Mundiais” têm como objetivo para a antropologia como uma cosmopolítica tam- a construção de um cânone policêntrico, que, de bém significa que a posição da disciplina no mer- forma parecida ao multiculturalismo policêntrico cado intelectual/acadêmico não precisa restringir- (Shohat e Stam, apud Turner, 1994), implica em se ao “escaninho selvagem” como colocado por uma reconceitualização das relações entre comu- Michel-Rolph Trouillot (1991). A variedade cada nidades antropológicas. A antropologia hegemô- vez maior de alteridades criadas pelos processos nica monológica precisa ser substituída por antro- de globalização tem, há algum tempo, trazido pologias heteroglóssicas. Como indicou Bakhtin vários tópicos diferentes para os antropólogos. (Werbner, 1997, p. 6), a heteroglossia “enfraquece Outra implicação importante de ver a antro- a autoridade do costume e da tradição reificados”. pologia como uma cosmopolítica é a compreen- Uma outra observação introdutória refere-se são de que a história da antropologia acadêmica ao meu entendimento da antropologia como uma do Atlântico Norte não é suficiente para dar conta cosmopolítica. A noção de cosmopolítica procura da história do conhecimento antropológico em prover uma perspectiva crítica e plural sobre as escala global.4 Isso decorre não apenas das espe- possibilidades de articulações supra e transnacio- cificidades das histórias das antropologias em nais. Ela é baseada, por um lado, nas evocações cenários nacionais diferentes, mas também do positivas associadas historicamente à noção de fato de que outras cosmopolíticas se desenvolve- cosmopolitismo e, por outro, em análises nas ram em outras regiões do mundo e configuraram quais assimetrias de poder são de fundamental uma variedade de conhecimentos parecidos com importância.2 Cosmopolítica abrange discursos e o que depois seria conhecido como antropologia, modos de fazer política que se preocupam com a “disciplina acadêmica que teve seu primeiro seus alcances e impactos globais. Interessam-me, aparecimento na região do Atlântico Norte” sobretudo, as cosmopolíticas relacionadas a con- (Danda, 1995, p. 23). Antropólogos mexicanos, flitos sobre o papel da diferença e da diversidade por exemplo, normalmente localizam o começo ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS 149 da “antropologia” mexicana no século XVI e se norte-americana, representam cenários interessantes referem especialmente aos escritos de monges, para ver as intersecções entre sistemas de poder como Bernardino de Sahagún, como o momento nacionais e mundiais. Quero mostrar, ao final desta fundador do pensamento antropológico naquele seção, que, atualmente, há novos agentes em ação, país (Lomnitz, 2002, p. 132). Ajit K. Danda consi- gerando uma situação que abre desafios e perspec- dera corretamente que é necessário distinguir tivas inesperadas. Tal agência não é composta por entre antropologia como “disciplina acadêmica” e líderes de povos indígenas transformados pela antropologia como “corpo de conhecimento”. O modernização, nem por migrantes “exóticos” em autor afirma que “parece ser uma noção equivo- cidades globais, forças importantes para a proble- cada supor que no resto do mundo não se encon- matização das antropologias hegemônicas. Alcida trava conhecimento antropológico e que, até um Ramos (2004), por exemplo, mostra que chegou a ímpeto da região norte-atlântica se espalhar por hora dos índios fazerem suas próprias antropolo- outras partes, não haveria nenhum exercício sig- gias sobre seus próprios mundos. Eu adicionaria nificativo digno de referência que viesse daquelas que etnografias indígenas sobre nossos próprios áreas” (1995, p. 23). Ele exemplifica com a litera- mundos também dariam um inesperado ímpeto à tura indiana antiga, voltando no tempo até o ano nossa disciplina. Mas o que quero enfatizar é que de 1350 a.C. quando a Manava Dharmashastra (A hoje também existe uma nova força advinda de Sagrada Ciência do Homem) foi escrita. dentro da própria antropologia. Refiro-me ao papel Em suma, a antropologia é uma cosmopolí- cada vez mais importante que as antropologias não- tica ocidental que se consolidou como disciplina hegemônicas têm na produção e na disseminação acadêmica formal no século XX, internamente a de conhecimento em escala global. um sistema universitário ocidental cada vez maior As primeiras décadas do século XX, até a e em expansão mundo afora. Como outras cos- Segunda Guerra Mundial, foram momentos de mopolíticas, a antropologia reflete a dinâmica his- consolidação e expansão da antropologia em tórica do sistema mundial, principalmente aquelas muitos países. Instituições foram fundadas e redes relacionadas às estruturas de alteridades.5 internacionais criadas, replicando relações geopo- Algumas das mudanças mais fundamentais na líticas existentes entre diferentes lugares do siste- antropologia do século XX foram decorrentes das ma mundial, em um período em que impérios e mudanças na condição de sujeito do “objeto” Estados-nações estavam firmemente estabeleci- antropológico por excelência: povos nativos ao dos. Foi um momento de fundação e triunfal. A redor do planeta. antropologia começou a ser uma disciplina com um perfil próprio, a ter um número cada vez maior de instituições dedicadas ao seu crescimen- Transformações em sistemas de poder to e reprodução, assim como uma massa visivel- mente crescente de praticantes. Além das antro- Para melhor entender essa antropologia crítica pologias hegemônicas norte-americana, britânica da antropologia, devo apresentar como vejo a traje- e francesa, várias outras começaram a expandir tória da antropologia no século XX. Não pretendo em lugares como Japão, México e Rússia. A edu- fazer um resumo da história da disciplina com suas cação de grandes figuras fundadoras de diversas muitas realizações e problemáticas. Prefiro enfocar “antropologias nacionais” em centros anglo- como ela se enredou com geopolíticas e poderes saxões e o intercâmbio internacional proveram, nacionais/globais. Meus argumentos giram em torno com freqüência, uma base para cooperação e dis- de transformações que ocorreram principalmente seminação de conhecimento antropológico, crian- nas antropologias hegemônicas. Trata-se de forma- do um sentido de compartilhar um mesmo campo ções discursivas e práticas institucionais típicas da de objetivos de pesquisa e programas disciplina- normalização da antropologia em modalidades aca- res. Uma vez que fazer antropologia e viajar sem- dêmicas, principalmente nos Estados Unidos, na pre estiveram associados, desde os primeiros Grã-Bretanha e na França (Restrepo e Escobar, momentos da disciplina muitos antropólogos 2005). Antropologias anglo-saxãs, sobretudo a estabeleceram redes e estruturas transnacionais. 150 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60 As histórias das antropologias mexicana e cia pública da participação de antropólogos em japonesa ilustram bem como a expansão desse agências federais de inteligência e espionagem, na período caracterizou-se pelo relacionamento que realidade a AAA estava também censurando Boas os antropólogos tinham com processos de cons- pelas suas posições pacifistas contra a intervenção americana na Primeira Guerra Mundial. Como trução da nação e de construção de impérios. Stocking observou, o clima de patriotismo exacer- Após a revolução mexicana, a necessidade de bado após 1918 não podia tolerar idéias pacifistas integrar índios/camponeses ao Estado-nação foi a formuladas por um autor que era visto por alguns principal força por trás do crescimento de uma como um suspeito imigrante alemão de origem antropología indigenista, com o apoio de pode- judaica (2002, p. 188). rosas instituições estatais (Krotz, 2006).6 Inicialmente preocupados com as origens da cul- Algumas décadas depois, Boas consideraria tura japonesa, antropólogos daquele país logo abandonar sua carreira como antropólogo para passaram a seguir a expansão colonial do seu combater o nazismo (Idem, pp. 194-195), fato que Estado-nação e a fazer pesquisa de campo em pode ser tomado como um índice do clima con- países tais como Coréia e China, onde o poder sensual associado à Segunda Guerra Mundial. imperial japonês era exercido (Yamashita, 2006). Vários de seus ex-alunos, tais como Margaret Em suma, nas primeiras décadas do século XX, Mead, lideraram a participação da antropologia com diferentes nacionalismos e colonialismos no esforço bélico. Em alguns casos, os nativos operando, os “nativos” eram vistos principalmen- tornaram-se inimigos, tal como em O crisântemo te por uma perspectiva moderna como povos que e a espada, escrito por Ruth Benedict, em 1942, precisavam ser conhecidos a fim de propiciar sua para o Departamento de Informação da Guerra, e integração ao Estado-nação ou a impérios.7 publicado em 1946. Este livro é, talvez, o mais A Segunda Guerra Mundial, um momento famoso exemplo de associação entre conheci- fundamental de rearranjo do sistema mundial, mento antropológico e esforço bélico. A Segunda mudaria radicalmente esse panorama. Foi uma Guerra Mundial, com unanimidade sem prece- inflexão do período anterior de expansão global dente, provou que a antropologia poderia ser útil da disciplina, um momento de redefinição da para prover “inteligência” sobre o inimigo, no relação entre a antropologia e o Estado-nação, que causou impacto nas gerações posteriores. Se, sentido de ser capaz de superá-lo; sobre os alia- em muitas situações – a Grã-Bretanha é o caso dos, para aprender como cooperar com eles; e mais visível –, as relações da antropologia com sobre a própria nação, para aprender como usar interesses estatais aconteceram sob o guarda- sua própria força (Idem, pp. 198-199). As relações chuva da administração colonial, naquele espúrias entre pesquisa antropológica e interesses momento a guerra invadia o próprio núcleo da de Estado tiveram um exemplo mais concreto na disciplina de forma bem mais intensa e completa participação de vários antropólogos na adminis- do que durante a Primeira Guerra Mundial. tração de campos de concentração de japoneses- Antropólogos norte-americanos tinham se envol- americanos durante a Segunda Guerra Mundial vido até certo ponto com esforços de inteligência (Suzuki, 1981). Ainda se faz necessária uma his- durante a Primeira Guerra, um conflito que, ao tória consistente do papel da antropologia duran- contrário da Segunda, não gerou consenso amplo te a Segunda Guerra Mundial em diferentes paí- entre os intelectuais norte-americanos. Muitos ses.8 Esse foi um período importante porque deles defenderam uma posição neutra. De acordo revelou cruamente modos de interação entre a com Marcio Goldman e Federico Neiburg, antropologia e as elites estatais, que certamente seriam mais improváveis em períodos de paz. [...] no campo da antropologia, as discordâncias A Segunda Guerra Mundial foi um ponto chegaram a um ponto culminante quando, logo decisivo na história do sistema mundial. Entre após a Guerra, durante sua reunião anual de 1919, outras coisas, representou a exaustão da era um voto de censura removeu Franz Boas da presi- dência da Associação Americana de Antropologia. imperialista-colonialista clássica e o começo de Apesar do fato da razão explícita ter sido a denún- um novo momento sob a hegemonia dos Estados ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS 151 Unidos. Ideologias colonialistas de expansão freqüentaram o primeiro encontro brasileiro de foram substituídas pelas desenvolvimentistas antropologia, em 1953, 109, em 1959, 141, em (Escobar, 1995). Logo, a Guerra Fria criaria um 1968, e 408, em 1979. Em 2004, mais de 1.500 mundo dividido em duas metades antagônicas, pessoas freqüentaram o encontro brasileiro (o uma divisão que teve fortes impactos no desen- Gráfico 1 mostra o número aproximado de sócios volvimento de antropologias em países como a de algumas das maiores associações antropológi- China e a União Soviética (Smart, 2006; Vakhtin, cas em 2004). 2006). O verdadeiro período triunfante e de expansão rápida da antropologia começou após a Segunda Guerra Mundial. Em parte, coincidiu Gráfico 1* com a força modernizadora da época que deman- Números de Associados de Algumas dava massas instruídas, pessoas com maior aces- das Maiores Associações (2004) so a um sistema universitário que crescia rapida- mente em muitos países. Mas a rápida expansão 12.000 da antropologia também coincidiu com uma 11000 renovada demanda por conhecimento “científico” 10.000 sobre nativos estranhos e exóticos no interesse das necessidades mundiais de “desenvolvimento”. 8.000 Cada vez mais, os nativos deixavam de ser súdi- 6.000 tos coloniais de impérios ocidentais para se tor- narem cidadãos de Estados-nações “subdesenvol- 4.000 vidos”. Desigualdades e diferenças dentro do 2060 sistema mundial deveriam então ser gerenciadas 2.000 150012001000 750 600 400 350 300 200 100 80 por meios pacíficos e racionais, tais como ideolo- 0 gagiaêsn ec ipasla mnousl tdilea tdereasiesn cvoomlvoim aesn Ntoa çsõuesste Untnaiddoass peo or AAA JASCA RAAE ABA EASA IAS ASA UK CAS AAS AFA PAAA ALA ASAfrica Banco Mundial. Em um período cheio de confiança na força *Baseado em survey conduzido durante o encontro “An- da modernização e no papel da ciência e da tec- tropologias Mundiais: Fortalecendo a Organização Inter- nologia no grande destino da humanidade, o nacional e a Eficiência da Profissão”, junho de 2004, Reci- número de praticantes de antropologia aumentou fe, com a presença de catorze presidentes de associações firmemente. Mais de cinqüenta anos atrás, Alfred antropológicas (AAA, Associação Americana de Antro- Kroeber (1953) fez um survey sobre a antropolo- pologia; JASCA, Sociedade Japonesa de Antropologia gia mundial e publicou os achados no seu famo- Cultural; RAAE, Associação Russa de Antropólogos e so livro Anthropology today. Ele chegou a um Etnólogos; ABA, Associação Brasileira de Antropologia; número de 2 mil antropólogos em todo o mundo, EASA, Associação Européia de Antropologia Social; IAS, seiscentos deles membros da Associação Sociedade Antropológica Indiana; ASA, Associação dos Americana de Antropologia (AAA). Hoje, esta Antropólogos Sociais do Reino Unido e da associação tem cerca de 11 mil membros. Por Commonwealth; CAS, Sociedade Canadense de Antro- outro lado, outras comunidades antropológicas pologia; AAS, Sociedade Antropológica Australiana; AFA, Associação Francesa de Antropologia; PAAA, Associação cresceram e se diversificaram desde a Segunda Antropológica Pan-Africana; ALA, Associação Antropo- Guerra Mundial. Quando a Associação de lógica Latino-Americana; ASA, Antropologia Sul Africana). Antropólogos Sociais do Reino Unido e da Commomwealth(ASA) foi fundada em 1946, tinha aproximadamente vinte membros. Ela cresceu, Mas processos políticos do período pós- atingindo mais de 150 membros, em 1962, e cerca guerra logo convergiriam, na década de 1960, a de 240, em 1968 (Asad, 1973). Hoje a ASA tem uma grande crise de representação da antropolo- seiscentos membros. No que diz respeito ao gia hegemônica causada por uma mudança clara Brasil, Otávio Velho (1980) aponta que 41 pessoas 152 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60 na posição de sujeito do nativo e/ou de grupos colonialismo e o imperialismo. Os volumes, vulneráveis, o “objeto” de pesquisa clássico da Reinventing anthropology ([1969] 1974), de Dell antropologia. A descolonização teve impactos Hymes, Anthropology and the colonial encounter sobre a antropologia britânica que ainda hoje (1973), de Talal Asad, assim como Anthropologie estão sendo digeridos, ao passo que o Movimento et impérialisme (1975), de Jean Copans, represen- por Direitos Civis e a mobilização contra a Guerra tam as melhores ilustrações dessa literatura. do Vietnam mudaram o cenário norte-americano. Mesmo que as contribuições dessas obras tenham Os nativos reagiram falando com suas próprias sido desenvolvidas desigualmente e tenham ênfa- vozes e criticaram a antropologia por ser um ins- ses diferentes, elas compartilharam a insistência trumento do colonialismo, principalmente na Áfri- na necessidade de uma mudança nas fundações ca, onde a última onda de descolonização estava epistemológicas, institucionais e políticas da acontecendo e o papel da disciplina durante tem- antropologia anglo-americana. pos coloniais foi problemático (Nkwi, 2006). Afro- O sistema mundial passou por outra rodada americanos forçaram o Estado-nação estaduniden- de transformações com os eventos que levaram se a um novo pacto nacional, em que cultura e ao fim da União Soviética (1989-1991), terminan- identidade se tornaram altamente politizados, em do o período da Guerra Fria e inaugurando o um movimento que abriria o caminho para o mul- atual momento que pode ser chamado de “era da ticulturalismo e as políticas da diferença. A guerra globalização realmente existente”. Um capitalismo imperialista no Vietnam mobilizou corações e triunfante perdeu sua contraparte, tornou-se cada mentes contra a geopolítica e o nacionalismo sim- vez mais transnacionalizado e estendeu sua capi- plistas e ferozes dos militantes da Guerra Fria. A laridade a territórios e mercados anteriormente “era da inocência” da antropologia (Wolf, [1969] fechados. A globalização realmente existente 1974) acabou, ao passo que a relação entre conhe- criou fluxos cada vez mais complexos de merca- cimento e poder tornou-se mais explícita com o dorias, pessoas e informação, redefinindo as rela- envolvimento de antropólogos em atividades de ções entre espaços globais fragmentados – o local inteligência contra-insurgenciais, na Tailândia, por e o global. A compressão do tempo-espaço exemplo, levantando novos problemas éticos e (Harvey, 1989) ganhou impulso adicional com políticos (Wolf e Jorgensen, 1975).9 Todos aqueles novos avanços das indústrias de comunicação sob outros exóticos e subalternizados precisavam ser a hegemonia do capitalismo informacional e ele- vistos como sujeitos de seus próprios destinos. A trônico. Tecnologias digitais e a internet instala- crítica da antropologia tornou-se uma “literatura ram o que Castells (1996) chama de modo infor- de angústia” (Ben-Ari, 1999), aprofundando uma macional de desenvolvimento. O ciberespaço das auto-representações mais fortes da antropolo- propiciou um aumento enorme do intercâmbio gia (Wolf e Jorgensen, 1975), segundo a qual se global de informação e a emergência de uma trata de uma disciplina que é filha do imperialis- comunidade transnacional imaginada-virtual mo ocidental (Gough, 1975), da violência, como (Ribeiro, 1998), o meio estratégico de criação e disse Lévi-Strauss (1966), ou se trata de uma disci- apoio de uma sociedade civil global cada vez plina revolucionária que questiona uma suposta mais presente. Novas migrações internacionais superioridade do Ocidente (Diamond 1964). Ben- criaram segmentações étnicas mais diversificadas Ari (1999) vê essa ambivalência como uma dico- dentro dos Estados-nações em quase todos os tomia que permeia a antropologia desde o final do lugares, redefinindo o papel da distância na defi- século XIX, resumindo-a da seguinte maneira: a nição de sujeitos etnográficos. Para antropólogos antropologia ou é co-responsável pelos problemas hegemônicos, nativos deixaram de ser aqueles criados pela expansão ocidental, ou é um instru- povos exóticos vivendo a milhares de quilômetros mento para um melhor entendimento humano.10 de suas casas; eles tornaram-se vizinhos. Este tipo de crítica foi articulado nas décadas Todas essas transformações geraram outra de 1960 e 1970, principalmente por uma aborda- crise de representação da antropologia hegemô- gem de economia política marxista e, em geral, nica. As linhas entre nativos e não-nativos esta- em nome das lutas do Terceiro Mundo contra o vam embaçadas, as estruturas de alteridades ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS 153 socioculturais (Krotz, 1997) aumentaram em com- estrangeiros têm feito historicamente ao poder dos plexidade em contextos globais e nacionais. centros hegemônicos. Minha principal preocupa- Entraram em cena outras disciplinas, como os ção é com o que pode ser chamado de migração estudos culturais, e abordagens teóricas, como o de textos, conceitos e teorias. pós-colonialismo, que não carregavam o pecado A monotonia da fertilização cruzada interna- original da antropologia de cooperação com o cional não é um problema exclusivo da antropo- colonialismo. A globalização reforçou as contradi- logia. O sociolingüista Rainer Enrique Hamel, no ções entre segmentos étnicos e o poder do seu estudo Language empires, linguistic imperia- Estado-nação. Multiculturalismo e políticas da lism, and the future of global languages, conside- diferença foram internacionalizados, reforçando, rou que “pode ser tomado como sintoma do assim, movimentos políticos “nativos” e a cultura- imperialismo científico do inglês o fato de que [...] lização da política. a maioria de autores de países de língua inglesa e As duas principais crises da antropologia suas antigas colônias que escreve sobre o mundo supracitadas estavam intimamente relacionadas às como um todo, o faz sem citar um único texto de posições variantes, internamente a estruturas de língua não-inglesa em suas vastas bibliografias” poder, dos sujeitos clássicos da pesquisa antropo- (2003, p. 20). Esse problema, entretanto, é parti- lógica – grupos nativos ou sem poder –; estavam cularmente interessante quando percebido em relacionadas a mudanças do relacionamento da uma disciplina que preza a diversidade tão inten- antropologia com o “escaninho do selvagem” samente. A polifonia na produção antropológica (Trouillot, 1991). Mas hoje há outro elemento que deve significar, primeiro, o reconhecimento de não foi devidamente incorporado por críticas ante- uma enorme produção em diferentes locais do riores e que com certeza impactará a antropologia, sistema mundial, produção que precisa ganhar a saber, a presença internacional das antropolo- visibilidade se é que vamos levar a sério o papel gias não-hegemônicas e sua importância na pro- da diversidade na construção de discursos mais dução e na reprodução de conhecimento. Isso não densos e na complexificação da fertilização cru- é realmente uma novidade, já que o cenário aca- zada. Além disso, deve significar uma compreen- dêmico e científico – e a antropologia é uma con- são das trocas desiguais de informação que ocor- firmação dessa afirmação – tem sido sempre pro- rem dentro do sistema mundial de produção penso à internacionalização. Entretanto, com o intelectual e a conseqüente tomada de posições crescimento do número de antropólogos fora dos políticas que pretendam ir além da situação pre- países hegemônicos chegamos a uma situação dis- sente em direção a um ambiente mais igualitário tinta. Apesar disso, a fertilização cruzada interna- e, assim, mais enriquecedor. Finalmente, também cional tem acontecido dentro de um universo deve significar uma crítica intelectual e a ação crí- muito limitado, composto de um número restrito tica subseqüente sobre os mecanismos que sus- de parcerias. É verdade que em locais como o sis- tentam tais trocas desiguais não só dentro do tema universitário norte-americano a diversidade cenário acadêmico, mas também fora dele, envol- das nacionalidades do corpo docente e dos pes- vendo outras formas de produção de conheci- quisadores aumentou nas últimas décadas, um mento, outras cosmopolíticas sobre alteridades. resultado do próprio lugar central dos sistemas O presente é mais um momento de reinven- científicos, tecnológicos e acadêmicos norte-ame- ção da antropologia. Desta vez, a mudança não será ricanos no mundo globalizado. Mas esse aumento provocada por outra crise na posição de sujeito das em diversidade, na antropologia e em outras dis- populações nativas – a disciplina já passou por essa ciplinas, não tem correspondido a um crescimen- experiência –, mas por mudanças nas relações entre to intenso no consumo de uma produção estran- antropólogos localizados em diferentes locais do sis- geira diversificada, fato que indica a normalização tema mundial. Steban Krotz também antevê profun- do trabalho daqueles a quem Aijaz Ahmad (1994) das transformações nessa direção. Para ele, chamou de “intelectuais étnicos”. Na verdade, não estou tão preocupado com a migração de pessoas [...] apesar de os principais impulsos da produção e com a contribuição que muitos estudiosos de conhecimento antropológico continuarem 154 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60 vindo de países onde essa ciência se originou, poder. De fato, a circulação internacional de tais impulsos estão também acontecendo cada idéias está altamente entrelaçada com relações de vez mais em lugares onde vivem aqueles que poder, e ela própria pode “ter o efeito de cons- eram, até pouco tempo, exclusivamente objetos truir e reforçar a desigualdade” (L’Estoile, Neiburg favoritos da antropologia. Isso demanda a criação e Sigaud, 2002, p. 23). de novas estruturas de produção de conhecimen- A antropologia tem uma longa relação com to que [...] não submetam a diversidade cultural a o poder estatal em todos os países onde é prati- um modelo que pretende ser único e eterno de cada e, em muitos aspectos, a disciplina foi mode- forma exclusiva (2002, p. 399). lada por essas relações. Onde há um regime auto- ritário, como nos tempos stalinistas na Rússia, a Muitas antropologias estão prontas a partici- relação antropologia/Estado torna-se mais óbvia par desse novo cenário. De fato, sua maior visibi- (Vakhtin, 2006). De um lado, elites estatais lidade internacional é um pré-requisito para termos impõem um controle do potencial crítico da pro- uma comunidade mais heteroglóssica e igualitária dução e da teoria antropológicas; de outro, con- de antropólogos mundiais e formas mais comple- vertem a antropologia em uma técnica de contro- xas de criar e circular teoria e conhecimento em le social, um tipo de engenharia social visando a nível global. Muito do aperfeiçoamento da antro- administrar as relações entre minorias étnicas e pologia dependerá de como respondermos a essa poderosos governos centrais. Em tempos de guer- questão: em uma era de globalização intensa, e ra, como mencionamos anteriormente, mesmo depois das fortes críticas epistemológicas e meto- em regimes não-autoritários, tais como o norte- dológicas dos últimos quinze anos, como podemos americano, a antropologia pode ser chamada a estabelecer novas condições de trocas acadêmicas desenvolver papéis similares além de se tornar e regimes de visibilidade? uma fonte de inteligência sobre o inimigo. O papel da antropologia em processos de constru- ção da nação é bem conhecido e não é preciso Poder e hegemonia na antropologia estender-se muito sobre ele.11 É suficiente dizer que antropólogos (re)criam ideologias contraditó- O debate sobre antropologias mundiais pro- rias de unidade ou diversidade nacional, que são cura mostrar a existência de outros locais de pro- ancoradas na autoridade da produção acadêmica dução de conhecimento sobre diversidade, tais e freqüentemente se refletem em políticas de apa- como aqueles representados pela experiência da ratos estatais (da educação e cultura ou da admi- interculturalidad (Walsh, Schiwy e Castro- nistração de conflitos étnicos) e em posições polí- Gómez, 2002; De la Cadena, 2006). Também tem ticas de agentes da sociedade civil, como ONGs. a intenção de criticar a troca desigual de informa- Os dilemas que antropólogos australianos ção e teoria existente internamente à antropolo- (Toussaint, 2006) estão enfrentando em disputas gia. Tal desigualdade freqüentemente é discutida por terras aborígenes que chegam ao sistema judi- sob diferentes rótulos: antropologias centrais ver- ciário nacional são um exemplo das formas intri- sus periféricas (Cardoso de Oliveira, 1999/2000); cadas de relações entre antropologia, aparato antropologias internacionais versus nacionais ou estatal e auto-representação da disciplina, princi- antropologias de construção da nação e antropo- palmente no que diz respeito à autoridade de seu logias de construção de império (Stocking, 1982); status científico vis-à-vis conflitos no interior do antropologias hegemônicas e não-hegemônicas Estado-nação. Com efeito, a antropologia desen- (Ribeiro e Escobar, 2002); antropologias do Sul volveu-se em relação aos interesses nacionais e (Krotz, 1997); etc. Essas classificações são úteis internacionais sobre o status das populações nati- para pensar as desigualdades existentes, mas pre- vas “encontradas” em territórios tradicionalmente cisamos transcender tais dualidades, já que, como controlados pelos Estados ou em novas áreas diz Verena Stolcke (comunicação pessoal), não coloniais (L’Estoile, Neiburg e Sigaud, 2002). são capazes de lidar com ordens transnacionais. É preciso pensar um pouco mais sobre as Elas também refletem vários tipos de relação de relações entre antropologia e construção de impé- ANTROPOLOGIAS MUNDIAIS 155 rio, antropologia e colonialismo. Não obstante tra- neo-orientalismo (Velho, 2006). Abordagens nati- balhos como os de Asad (1973) e Stocking (1991), vistas podem igualmente ser uma reação à exis- ainda necessitamos um estudo que detalhe cuida- tência de um corpo de intelectuais e literatura dosamente as complicadas relações entre a disci- estrangeiros que mantêm os padrões válidos de plina e as administrações coloniais (Ben-Ari, interpretação sobre uma determinada cultura ou 1999). De um lado, a antropologia pode ter for- país. Velho argumenta que a ausência de brasilia- necido apoio a oponentes locais do poder colo- nistas, estudiosos estrangeiros do Brasil, contri- nial; de outro, Ben-Ari também argumenta que o buiu para impedir o desenvolvimento de uma conhecimento antropológico, junto com o censo, abordagem nativista em nosso país. o mapa e o museu, eram parte do que Anderson A existência de uma antropologia – isto é, de (1991, p. 163) chamou de gramática do estilo uma disciplina que expandiu nos sistemas univer- colonial estatal de pensar sobre seu próprio domí- sitários durante o século XX – totalmente isolada nio. Para Ben-Ari (Idem, p. 388), a questão crucial de antropologias hegemônicas ocidentais é uma é entender o lugar da antropologia na construção impossibilidade até em regimes autoritários de taxonomias e discursos coloniais. Na sua aná- (Vakhtin, 2006; Smart, 2006). A antropologia, lise dos relacionamentos entre colonialismo fran- desde seu começo, é uma cosmopolítica sobre cês e etnologia francesa, D’Estoile (2002) mostrou alteridade de origem ocidental. Se o reconheci- como várias pesquisas e instituições educacionais, mento de uma determinada afirmação em antro- tais como o Institute d’Ethnologie e o Musée de pologia depende da sua validade, esta validade, l’Homme, foram apoiados pelo aparato colonial em última instância, depende de sua consagração francês, em um movimento contínuo de pessoas, por uma comunidade de argumentação que é informação e conhecimento entre “modos de também uma comunidade cosmopolita. Até pers- conhecimento administrativo e discurso científi- pectivas nativistas teriam que passar por esse tipo co” com a intenção de legitimar a dominação de processo. É por isso que é impossível acredi- racional sobre nativos africanos.12 tar em uma antropologia isolada, cuja validade Essa discussão também traz à tona os limites seria inteiramente reconhecida e satisfeita apenas da antropologia como disciplina universal. A dentro dos limites do Estado-nação. Os exemplos necessidade de separar os vínculos reais ou ima- da antropologia na Rússia e na China são, nova- ginados entre antropologia e colonialismo em mente, fortes indicadores de tal condição. países africanos ou asiáticos (Barnes, 1982; O fato de a antropologia ter se expandido da Kashoki, 1982) conduziu a uma crítica afiada por região norte-atlântica para outros cantos do intelectuais pós-coloniais daquelas regiões. A Áfri- mundo não significa que não possa se beneficiar ca representa o melhor cenário para considerar a de suas muitas diferentes versões e das diferentes eficácia do discurso universalista antropológico, tensões que ela criou com sistemas locais pré- mais ainda do que a Índia. Na África, a pretensão existentes. Concordo com Shinji Yamashita quan- universalista da antropologia logo foi relacionada do argumenta que ao eurocentrismo e desenvolveu um debate sobre a necessidade de uma epistemologia africana. [...] se a cultura viaja, como mostra James Clifford Muito mais intensamente do que na Índia, onde o (1992), a antropologia também viaja. Através de pensamento antropológico foi parte de debates sua viagem global, ela pode ser enriquecida e transformada por seus encontros com diferentes pós-coloniais sobre construção da nação situações locais. Acredito firmemente que a antro- (Visvanathan, 2006), na África a disciplina foi pologia do século XXI vai ser construída na base pega entre o isolamento e o nativismo. De todo de relações “glocais”, isto é “global-local” modo, qualquer pretensão a uma epistemologia (Robertson, 1995), da mesma forma que outras nativista é um paradoxo já que, como Mafeje grandes formas de produção cultural são cons- (2001) observou, d’aprés Rabinow, não há nada truídas no mundo (1998, p. 5). mais ocidental do que a discussão sobre episte- mologia. Além disso, alegações de autenticidade Mas é também verdade que há diferentes cultural e científica podem bem ser um tipo de viajantes e formas de viajar. Hierarquias de 156 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 21 Nº. 60 conhecimentos e de cosmopolíticas são sempre amplitude do alcance do trabalho e da imagina- baseadas em hierarquias de poder social e políti- ção antropológicos, dependendo se os antropólo- co. A situação indiana traz considerações interes- gos fazem pesquisa de campo nos seus próprios santes. A maneira como a antropologia deslocou países ou no exterior. A oposição antropologia formas vernáculas de produção de conhecimento tout court/antropologia em casa (uma expressão na Índia (Danda, 1995) não pode ser entendida bastante popular nos Estados Unidos) indica que sem considerar a geopolítica da língua, do conhe- para as “antropologias imperiais” a disciplina sig- cimento e do prestígio implementada pelo colo- nifica pesquisa no exterior, e que fazer pesquisa nialismo britânico, que assegurou poder à língua, em “casa” não é valorizado da mesma forma. Mas à cultura e à ciência do colonizador. O inglês não o dilema de Stocking pode ser superado se pen- foi universalmente ensinado na Índia colonial, sarmos que, nos tempos modernos, por trás da mas apenas nos níveis mais elevados como a lín- construção de um império há sempre um Estado- gua da administração, da ciência, da alta cultura e nação. Com efeito, é bem conhecida a importân- do sistema universitário (Hamel, 2003). Tal situa- cia do colonialismo na criação e no reforço de ção criou a necessidade de se identificar com a ideologias nacionais nas metrópoles. De fato, língua do colonizador, de desejá-la e praticá-la se antropologias de construção de império são tam- certos agentes e agências quisessem ser vistos bém antropologias de construção de nação, mas como parte da elite. A antropologia foi, desde o o contrário não é verdadeiro. Além disso, tal dico- princípio, inserida e ensinada em um contexto tomia pode criar a impressão que há somente maior que prefigurou seu próprio poder privile- duas opções para as antropologias mundiais. giado sobre outras cosmopolíticas. Isso é certa- Antropólogos em toda parte estariam restritos a mente também o caso em países como o Peru, servir à nação ou ao império, o que não é exata- onde a subordinação do conhecimento indígena é mente o caso. Primeiro, há antropologias de cons- a contrapartida da hegemonia das formações aca- trução da diferença. Segundo, há “antropologias dêmico-econômicas euro-norte-americanas, como nacionais”, tais como a australiana, brasileira, afirma De la Cadena (2006). Em suma, se há algo canadense e mexicana, que podem se tornar que resta na discussão sobre antropologia nativa internacionais sem cair na tentação de virar antro- versus antropologia internacional/universal é que, pologias de construção de impérios. O antropólo- no final, o insider é um cidadão, enquanto o out- go português João de Pina Cabral, inspirado pela sider não. Estão em jogo os diferentes tipos de leitura de um livro sobre a antropologia brasilei- responsabilidade social e papéis políticos dos ra, menciona a possibilidade de uma quinta tradi- antropólogos. Outros problemas possivelmente ção antropológica, diferente da norte-americana, associados são de ordem metodológica, sobretu- da britânica, da francesa e da alemã, uma tradição do a respeito da natureza do encontro intersubje- “que não se sente identificada com qualquer dos tivo na pesquisa de campo e do papel do estra- projetos imperiais que, historicamente, moveram nhamento na construção do conhecimento o desenvolvimento científico” (2004, p. 263). antropológico. Archetti (2006) também mostrou que uma antro- pologia hegemônica, tal como a francesa, poder ser ao mesmo tempo voltada para a construção da Construção de império e construção nação e de um império. O exemplo japonês é da nação também interessante, pois indica que uma antro- pologia pode ser nacional ou imperial ao longo Uma das dicotomias mais estabelecidas do tempo (Askew, 2003), e, hoje, de fato, pós- quando os antropólogos pensam a antropologia imperial. Atualmente, a pesquisa antropológica em escala global pode ser chamada de “dilema de japonesa é bastante internacionalizada, mas não Stocking”. De acordo com esse autor (1982), há se relaciona com expansão imperial como foi o antropologias de construção da nação e antropo- caso no passado. logias de construção de império. A eficácia desta O projeto de desenvolver cosmopolíticas formulação provém do fato de apontar para a acadêmicas pós-imperialistas na América Latina
Description: