AMAR TRAIR quase uma apologia da traição Aldo Carotenuto PAULUS AMAR TRAIR quase uma apologia da traição Biblioteca de Alexsandra Massolini Psicóloga CeI: 9675-0982 PAULUS Carotenuto, Aldo Amar trair: quase uma apologia da traição / Aldo Carotenuto ; tradução Benôni Lemos. - São Paulo: Paulus, 1997. - (Amor e psique) Título original: Amare tradire : quasi un'apologia dei tradimento. Bibliografia. ISBN 978-85-349-0658-6 1. Amor 2. Jung, Carl Gustav, 1875-1961 3. Relações interpessoais I. Título. II. Série. 95-5007 DD-158.2 Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o índices para catálogo sistemático: homem descobriu novos caminhos que o levam para a 1. Traição: Relações interpessoais : Psicologia aplicada 158.2 sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se um lugar novo de experiência. Os viajantes destes cami- Coleção AMOR E PSIQUE coordenada por nhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar Dr. Léon Bonaventure e Ora. Maria Elci Spaccaquerche a alma, mas também o amor precisa da alma. Assim, em Título original lugar de buscar causas, explicações psicopatólogicas às Amare Tradire - Quasi un'apologia deI tradimento nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em © Bompiani, Milão, 1994 ISBN 88-452-2197-0 primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feri- Tradução das e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Benôni Lemos Patrizia G. E. Collina Bastianetto Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade Revisão e realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria Edson Gracindo vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa Impressão e acabamento unidade primeira. PAULUS Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar 3a edição, 2011 do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa que a psicologia pode de novo estender a © PAULUS - 1997 mão para a teologia. Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil) Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço Fax (11) 5579-3627' Tel. (11) 5087-3700 www.paulus.com.br·[email protected] para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si ISBN 978-85-349-0658-6 5 mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle- NOTA À NOVA EDIÇÃO xões durante a prática psicoterápica, e está começando a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É uma nova visão do homem na sua existência cotidiana, o seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensões diferentes de nossa existência para podermos reencontrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aqueles que são sensíveis à necessidade de colocar mais alma em todas as atividades humanas. A finalidade da presente coleção é precisamente restituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de sacerdotes capaz de entender novamente a linguagem Levar o leitor à descoberta deste livro, agora em da alma", como C. G. Jung o desejava. nova edição, oferece-me a oportunidade de abordar no- vamente o tema da traição, mas com o vigor que me vem Léon Bonaventure da aceitação que essa obra teve entre os leitores. Obra que queria e quer sacudir e - por que não? - suscitar polêmicas entre os que, embora sabendo que a é fenômeno antigo como o mundo, consideram reprová- vel levantar o véu que o oculta ao olhar da consciência. Eu, ao contrário, penso que o que cria maiores danos são justamente o desconhecimento e a indiferença, ao passo que sondar e tentar esclarecer os movimentos psíquicos que geram, fomentam ou rejeitam a traição é de grande utilidade para se viver cada experiência (porque, como o leitor terá ocasião de constatar, a traição assume mil aspectos), compreendendo-a e elaborando-a, e não só deixando-se dominar por ela. A violência e a cegueira que acompanham a trai- ção em todas as suas formas - desde a da família em relação ao filho àquela amorosa - são prova de nossa ingenuidade psicológica, isto é, o indivíduo quase nunca tem consciência das forças que g(}vernam seus impulsos para o crescimento ou para a individuação, de forma que permanece um agente passivo de suas pulsões destrui- doras. Essa forma particular de resistência testemunha 6 7 que o desenvolvimento da consciência psicológica é, como de sofrimento, dá início ao nascimento da consciência, sustentava Jung, um opus contra naturam (uma "obra com a expectativa - é essa a promessa de toda doutrina contra a natureza"), um caminho difícil e cheio de peri- soteriológica - do pleno despertar, isto é, da aquisição gos; ninguém conhece melhor que o autor dessas linhas, de uma consciência interior que torne o homem capaz de por causa de sua profissão, o tributo de sofrimentos que reconhecer as forças que o dirigem e de mudar em seu a pessoa deve pagar para libertar-se das ilusões neuró- favor também o conhecimento do mal. ticas, dos equilíbrios de compromisso e das satisfações Porque a traição é essencialmente "passagem" - é alucinatórias do desejo. esse seu significado .-, outrem, A primeira e fundamental forma de traição é jus- a qual sempre se traduz em confissão de fraqueza e em tamente a que o indivíduo sofre para tornar-se sujeito pedido de ajuda, e, portanto, inclui sempre o risco da responsável por seus desejos e por seus atos: a perda da perda, do abandono. Mas para se viver em plenitude a inocência, a expulsão do Paraíso da indiferenciação psí- existência própria é necessária essa "passagem" pela quica e a queda. Transgredindo o pacto originário com a morte, esse reconhecimento do limite, da. fin,itude, esse mãe natureza, o indivíduo fica inevitavelmente exposto saber-se traidor e traído. à fadiga da procura de sentido, procura que, no entanto, Os cenários da traição são muitos; parece-me, porém, o constitui como sujeito da história. que a cena original se abre no interior relacional mais A perda da inocência certamente na culpa e na precoce, sendo a a que é praticada em punição; assim, muitas vezes nós nos condenamos a ser relação ao nasciturõ;<iuando, com o nome, é-lhe atribuída verdugos inexoráveis de nós próprios e nos expomos aos a projeção imaginária elaborada pelos pais. É um destino pio:es vexames para expiar culpas hipotéticas, sem ja- inevitável, inscrito na história da existência humana, pelo maIS conseguir pagar completamente o grave pecado de qual somos condenados a encarnar o desejo de outrem e a termos vindo ao mundo e de o termos feito da maneira . suportar grandes fadigas para separar-nos de seu/nosso menos discreta possível, com um pedido intolerável de fantasma. amor, sempre gritado. Se o homem fosse livre, não teria necessidade de trair; Nascemos traídos e com a necessidade de trair para entretanto, é verdade também que se o homem não fosse é uma lei cármica, que soa como condenação, livre, não poderia trair .. se, Justamente através das vicissitudes da traição, não fosse pedido ao indivíduo o encargo de confrontar-se com Aldo Carotenuto, abril de 1994 sua ambivalência constitutiva e de assumi-la consciente- mente, de modo a transformar a orientação natural das pulsões e a tornar-se, de alguma forma, artífice profundo de destino de individuação. E esse o significado profundo que o mito hebraico da expulsão do Paraíso terrestre representa simbolicamen- te, expulsão que, se entrega o homem a todas as formas 8 9 AGRADECIMENTO Esse assunto tão particular nasceu de minha experiência com as pessoas que encontrei em minha vida e que de forma totalmente inconsciente contribuíram para as minhas reflexões. Agradeço às minhas alunas e colaboradoras mais chegadas, Francesca Aveni, Daniela Bucelli, Simonetta Massa, Benedetta Silj e Stefania Tucci, pela sua atenção a todos os problemas surgidos durante a elaboração do livro. Agradeci- mento particular aos meus alunos Giorgio Antonelli, Silvia Martufi e Patrizia Lorenzi, que leram as minhas anotações e não me pouparam críticas e sugestões. Advertência do Editor INTRODUÇÃO Os nomes de autor seguidos de data citados no texto A VIDA COMO TRAIÇÃO remete:n .à no fim do Quando Itahana, a, indica a edição original, enquan- to os numeros de pagInas remetem à tradução (italiana). Recordo-me bem dos rostos daqueles homens: não estavam todos voltados para mim? Não gritavam outrora "salve"? Assim fez Judas com Cristo, que, em doze, encontrou fi- delidade em todos, menos em um; eu, em doze mil, não a encontrei em nenhum. (William Shakespeare, Ricardo II, IV, 1.167-71) Em meu livro Eros e pathos ocupei-me de um tema fundamental da vida humana, a dimensão amorosa, em- bora soubesse que me aventurava por estrada considerada geralmente intransitável, porque o testemunho mais acei- tável de algumas experiências "inefáveis" seria o silêncio. Com a mesma consciência, e com a mesma confiança, pre- tendo agora retomar aquela estrada intransitável, para estudar um dos aspectos mais inquietantes da existência humana: a traição. Palavra tremenda, marca infamante! E no entanto, se aprofundarmos seu conceito, chegaremos a uma conclusão surpreendente: não só em todo o arco de . Ilossa vida a traição está sempre em cena, representando papel de primeiro plano, senão de protagonista, como tam- foi em virtude de uma traição que o homem foi "posto no mundo". Traição inevitável, traição que era necessário )(\(/' ! levar até o fim, porque foi somente traindo, violando o pacto original, que o homem, de uma modalidade que não era vida, mas inconsciência e indiferenciação, constitui-se como sujeito da história. Eis o sentido profundo conhe- cido pelo nome de felix culpa (feliz culpa), doutrina que 12 liga a vinda redentora de Cristo, e com ela a perspectiva cumpridas do faraó, a adoração do bezerro de ouro, na au- de uma vida radicalmente nova, à transgressão sência de Moisés; Saul, Sansão, Jó, as iras do Senhor e a quase destruição da criação, e assim por diante, culminando Adão e Eva. Se os nossos míticos progenito- no mito central de nossa cultura, a traição de Jesus. res nao tIvessem transgredido, Cristo não teria vindo ao mundo para instituir a economia salvífica. Isso, enfim, é não pode haver redenção do pecado onde E, no entanto, o mistério da traição é tal que se lê no nao ha pecado; analogamente, não há modo de "nascer Talmude que, se Israel não se tivesse manchado com seus pm'a mundo" senão pecando. A doutrina da erros, com suas transgressões, com suas traições, ter-Ihe- Q se. Hegel, que interpreta o mito do pecado -iam sido concedidos somente os livros do Pentateuco, ou como .queda para o alto". Nessa ótica de recupe- os livros da "Lei", e o livro de Josué (Talmude, Nedarim e redefimção da traição original, parece igualmente 22b, in Elkaim-Sartre, 1982, pp. 675-76). De forma seme- legI.}Ima a doutrina gnóstica, segundo a qual a serpente lhante, no Novo Testamento não foi só Judas quem traiu. do Eden é que deve ser venerada, por haver transmitido Sem dúvida, o ato de Judas é a culminação da traição, e o conhecimento, a gnose. Ora, essa transmissão coincide com Hillman teria concordado Kierkegaard, o qual escre- também com a possibilidade de ler a vida toda a vida veu em seu Diário que "para se a (l1.lldo o con:o traição. Isso leva o pensamento a de uma época, basta ver o que ela pensava tutIvos e fundantes das religiões hebraica e cristã como de Judas" (Kierkegaard, 1834-55, voI. 5, p. 99). Em todo a transgressão original cometida por Adão e e no caso, não são menos significativas as outras traições que Novo Testamento, a traição de Cristo praticada por'Ju- aparecem no Novo Testamento, como as negações de Pedro das; ainda, todo o Antigo Testamento, que e o adormecimento dos discípulos no Getsêmani. E não lIam como a expressão manifesta de traição será talvez possível ler o grande grito de Jesus, lançado dIvma, pode ser lido como eterna mensagem de um Deus ao céu antes de morrer: "Deus meu, Deus meu, por que traído por Israel, a "esposa infiel", a "prostituta" que ele me abandonaste?" (Mateus 27,46), como sinal de extrema não obstante,jamais cessa de procurar. na traição praticada pelo Pai em relação a ele? Tão presente sagem do profeta Oseias na qual parece estar sintetizada no mundo do mito e da "história sagrada", a traição não na perspectiva da traição, a história passada e de permear com sua inquieta da de Israel (Oseias 6,7): "história profana". Julien Benda, por exemplo, falou da "traição dos clérigos", em seu homônimo e célebre escrito eles, como Adão, violaram a aliança; publicado em 1927. Se o papel dointelectm:tl consiste em eIS onde me traíram. os é, em servir à verdade, ajustiça, à razão e à liberdade da pessoa, então, escreve Como escreveu também Hillman (1964 b, p. 86): Benda, os intelectuais traíram seus compromissos his-: Desde. a_expuls.ão, a Bíblia registra uma história contínua tóricos e, deveríamos dizer, também "meta-históricos". de CaIm e Jacó e Esaú, Labão, José vendido Os "clérigos", por exemplo, puseram a arte e a ciência a pelos lrmaos, os qUaIS enganaram o pai; as promessas não serviço dos interesses políticos e econômicos, aderiram ara a nossa mente, é vertigem, não é desta terra. Otto à supressão da pessoa (exaltando o Estado "monolítico", .k .aJlk., um dos grandes da engrandecendo a família enquanto organismo global que toda a vida consiste unIcamente nas tentatIvas de que nega o indivíduo, e nutrindo simpatia pelo corpo- ubstituir o paraíso perdido "mediante complicadíssimas. rativismo), não se mostraram à altura de defender ra- de direção da libido e de seu destino" cionalmente a tese da paz acima de tudo e cederam às i924, p. 198). Rank sabe, todavia, que o paraíso perdIdo ideologias, praticando, mediante suas doutrinas, o jogo já não pode ser encontrado pelo homem. Se isso é das paixões políticas. Os intelectuais, escreve Benda em deveríamos talvez deduzir que as mudanças de dIreçao da seu apaixonado panfieto7praticaram sua traição de vários libido das quais ele fala, correspondem também a trai- modos: em nome da ordem,do dever, do amor, do caráter *-ções. De fato, "Terrestre" não é o Paraíso, mas a traição! sagrado do escritor, do relativismo do bem e do mal e em E nem um deus pode escapar disto: "de traições", escreveu. nome dá comunhão coma evolução e com o dinamismo I \ "" Franco Sacchetti, "não conseguiu livrar-se nem Cristo" do mundo, comunhão que consiste em não se medirem as (Sacchetti, 1970, p. 499). mudanças com o metro da razão, mas em se aderir a elas vitalisticamente. Talvez seja oportuno partirmos daí para falarmos das outras traições, que, com o pretexto do mito da história sagrada e profana e dos "grandes Sistemas'" afundam sua lâmina nos meandros do cotidiano, traições: em suma, com as quais deve confrontar-se constantemen- te outro "intelectual", o psicanalista. Portanto, a vida, toda a vida, pode verdadeiramente entrar no horizonte da traição. O Paraíso terrestre enten- dido como plenitude e indiferenciação da vida pré-natal, representa uma condição insustentável, já que, se fomos o?rigados a traí-la, e a traí-la pelo nascimento, foi porque dIante de nós abriam-se a história e o mundo. Se devês- semos descrever com uma metáfora como se caracteriza a nossa condição humana, se devêssemos explicar com pala- vras simples a verdadeira tragédia dos homens, diríamos que ela consiste na inexistência do Paraíso. Não existe o jardim edênico, o Paraíso não é desta terra. O Paraíso como lugar do não dualismo, do não desejo e, portanto, do não apego, como lugar onde o coração do homem não freme, porque cheio em si mesmo, não tem esperança, P?rque em si mesmo, não teme a morte, porque VIda em SI mesmo, o Paraíso como aquela plenitude que, 17 16 1 AINDA ANTES DE NASCER E saiu do trono a voz do Pai, dizendo: "Que fazes, maldito? Corrompes os anjos do Pai? Autor do pecado, faze logo o que pretendes fazer!" (lnterrogatio Iohannis, V. 50, pp. 51-52) Em seu estudo sobre o sonho, Freud descobriu que o inconsciente ignora a negação e, por isso, no sonho não se dá representação do "não". Consequentemente, a mesma .. ê, , Esse "mQvimento d:y.pl,!( à linguagem, c0l!l<?.. ao ler. um publicado em filólogo Karl Abel, intitulado O sentido oPQstcJ , c!....qfi, RP,[a,vras primordiais. Do opúsculo Freud tirou a noção segundo a línguas mais antigas - no egípcio, em primeiro lugar, mas também nas línguas se- míticas e indo-europeias - sentidos opostos, como "forte/ fraco", "grande/pequeno", eram expressos pela mesma raiz linguística. Assim, ele uma a..nalogia en- tre.a história da língua. e 0."comportament9.!3ip,ID!1ª:r:J:l9 trabalho onírico", que igp.9.r:ª&negação. . CFreud, 1915-17, p. 349). Em uma recensão de 1910, intitulada também, em homenagem ao opúsculo citado, O sentido oposto das pc:Zavras primordiais, Freud, entre outras coisas, citou vá- nos exemplos, que impressionam também os não peritos em linguística. "Em latim", escreve Freud, "aZtus significa 1Q