Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Allan Ramalho Ferreira A favela e a lei: por um Direito tolerante e protetivo (estudos aplicados sobre o Rio de Janeiro) Mestrado em Direito São Paulo 2016 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Allan Ramalho Ferreira A favela e a lei: por um Direito tolerante e protetivo (estudos aplicados sobre o Rio de Janeiro) Mestrado em Direito Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração em Direito Urbanístico, sob a orientação do Prof. Dr. Nelson Saule Junior. São Paulo 2016 Banca Examinadora: Dedico este trabalho à minha mãe, Maria Geny Ramalho Ferreira, à minha irmã, Aryana Ramalho Ferreira, e ao meu pai, José Tavares Ferreira, que são o porto seguro para o qual sempre retorno e me sinto acolhido. Dedico também a Carlos Eduardo Gonçalves Ferreira, pelo mundo que me fez descobrir com sua chegada. Aos (meus) irmãos Ribeiro Basílio pela amizade cultivada. Dedico ao meu orientador, Professor Nelson Saule Júnior, e também à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), na pessoa dos Professores Willis Santiago Guerra Filho, Vidal Serrano Nunes Júnior, Clarice Von Oertzen Araújo, Eduardo Arruda Alvim, Nelson Luiz Pinto e Thereza Celina Diniz Arruda Alvim e, em especial, do Professor Roberto Dias, meu orientador na Especialização em Direito Constitucional também pela PUC-SP. Dedico à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, nas pessoas dos/as Defensores/as membros e colaboradores/as do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo e, também, dos/das colegas, dos/das servidores/as e dos/das estagiários/as das Unidades Osasco e Carapicuíba e do Atendimento Inicial Especializado da Capital – em especial dedico aos/às meus/minhas queridos/as estagiários/as, com os/as quais pude aprender uma infinidade de coisas (muito mais do que ensinei). “Ver Ipanema Foi que nem beber jurema Que cenário de cinema Que poema à beira-mar E não tem tira Nem doutor, nem ziguizira Quero ver que é que tira Nós aqui desse lugar”. (Chico Buarque, “A violeira”) “Abre a janela! Abre a janela da favela Você vai ver a beleza que tem por dentro dela” (Gracia do Salgueiro, “Janela da favela”) “E o cano da pistola que as crianças mordem Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito Mais bonita e Muito mais intensa do que no cartão postal Alguma coisa está fora da ordem Fora da nova ordem mundial...” (Caetano Veloso, “Fora da ordem”)1 1 As três canções-poesias, de Chico Buarque, de Gracia do Salgueiro, e de Caetano Veloso, falam sobre boniteza. O Rio de Janeiro, de fato, serve como cenário de cinema (ou paisagem, noção geográfico-urbanística que substitui o conceito de cenário, sem o mesmo encanto artístico). A beleza da cidade, de todo modo, não se reduz à natureza incomum que a cerca. Há também beleza na favela, onde mora a violeira (de Chico). Para ver essa beleza, que talvez não seja tão aparente como a formosura do Corcovado ou do Pão de Açúcar, estampados em cartões postais, deve-se abrir a janela, a janela da favela (de Gracia), vê-la por dentro. Esse encanto, mais intenso, em todas as suas cores, é refletido pelo cano da pistola, daqueles que estão pela ordem (conforme Caetano) e daqueles que estão contra ela. Beleza, traduzida em paisagem, porém numa outra ordem (urbanística). Na essência, é sobre isso que trata o presente trabalho: a beleza da favela carioca. Resumo O trabalho ora apresentado, de autoria de Allan Ramalho Ferreira, intitulado “A favela e a lei: Por um Direito tolerante e protetivo (estudos aplicados sobre o Rio de Janeiro)“ está dividido substancialmente em três capítulos. O primeiro deles busca identificar nos enunciados das legislações urbanísticas e securitárias do Estado do Rio de Janeiro e do Município do Rio de Janeiro o discurso hegemônico sobre a favela, notadamente a partir da virada estigmatizante iniciada com a escolha da cidade para sediar os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016, fato que desencadeou uma série de intervenções urbanísticas e a eclosão de uma verdadeira guerra urbana, com a intervenção policial em diversas comunidades e a instalação de bases militares, em um contexto de segregação socioespacial planejada – adoção de um modelo de cidade dispersa. O segundo capítulo dedica-se à análise do princípio democrático no recorte das relações urbanas, sublinhando-se o seu aspecto procedimental, com especial destaque à necessidade de participação efetiva dos moradores de favelas na formulação, implementação e monitoramento das políticas urbanas, mas, também, sob o prisma substancial, encarado como a proteção das minorias diante das decisões urbanísticas majoritárias, com a proposição da formação de valores de tolerância às diversidades construídas na cidade – fundamentos de um Direito Urbanístico comunitário. A favela, agora, é tomada não mais como desvio urbanístico, mas como um lugar-na-cidade, que recebe os influxos dos significados e sentimentos atribuídos pelos seus moradores, enxergados, além do estigma territorial e da discriminação baseada no estatuto da posse, como sujeitos de direitos, empoderados para o planejamento da cidade e para a reexistência na cidade, de acordo com seus desejos e utopias (sonhos possíveis). No derradeiro capítulo, propõe-se um giro na lente analítica: da opressão à vulnerabilidade. Estuda-se os fatores de vulneração no quadro de remoções de favelas do Rio de Janeiro para, com a incidência do princípio da igualdade, a especificação do/ morador/a como um sujeito de direito (vulnerável) e, por consequência, a formação de microssistemas urbanísticos de proteção Palavras-chave: Direito Urbanístico. Favelas. Microssistema protetivo. Abstract This work, by Allan Ramalho Ferreira, entitled "The favela and the law: For a tolerant and protective right (applied studies on Rio de Janeiro)" is divided in three main chapters. The first aims to identify the hegemonic discourse about the favela, identifying it in the statements of the urban and secular legislations of the Rio de Janeiro State and the Rio de Janeiro Municipality, in particular from the stigmatizing turn that began with the choice of the city to host the Olympic Paralympic Games, which triggered a series of urban interventions and the outbreak of a real urban war, with police intervention and military bases installation in slums, in a planned socio- spatial segregation context - adoption of a dispersed city model. The second chapter analyzes with the democratic principle of urban relations analysis, emphasizing its procedural aspects, with the effective participation of slum dwellers in the urban policies formulation, implementation and monitoring, but also in a substancial approach, considering the minorities protection, in the face of the majority urban planning decisions, purposing formation of values towards city built diversities tolerance - foundations of a Community Urban Law. The favela is now taken no longer as an urban deviation, but as a place-in-the-city that receives the influxes of meanings and feelings attributed by its residents, seen beyond the territorial and discrimination stigma, based on the status of possession, so now as subjects of rights, empowered for city planning and (re) existence in the city, according to their desires and utopias (possible dreams). In the last chapter, we propose a shift in the analytic lens: from oppression to vulnerability. The vulnerability factors in the Rio de Janeiro favela removals are studied in order to specify the dwellers as rights subjects (vulnerable) with the incidence of the principle of equality. Thus, urban protection microsystems are formed, adopting the dialogue of the urban sources involved. Keywords: Urbanistic Law. Slums. Protective microsystem Sumário Capítulo I. A favela fora-da-lei: o desvio e o estigma urbanísticos no contexto da segregação socioespacial planejada ...................................................................... 9 I.I A invisibilização da favela........................................................................................ 9 I.II. A estigmatização da favela e de seus moradores [a favela-desvio] ................... 18 I.III. O abandono da favela [da contenção à desconstrução] .................................... 30 I.IV. A retomada da favela [como campo] ................................................................. 41 Capítulo II. A favela fora da lei: pela formação democrática de valores de tolerância às diversidades urbanísticas ............................................................... 56 II.I. Tolerância às diversidades! [um manifesto jurídico-político-urbanístico] ............. 57 II.II. A crítica do direito e o direito como crítica [o recorte do Direito Urbanístico] ..... 72 II.III. Um discurso topofílico sobre a favela ................................................................ 84 II.IV. Era uma vez uma Vila... .................................................................................... 95 Capítulo III. O Direito pela favela: microssistemas urbanísticos de proteção . 114 III.I. A especificação do sujeito diante da vulneração urbanística ........................... 115 III.II. Estudo de dois fatores de (hiper)vulneração urbanística................................. 126 III.II.I. Perseguição político-urbanística ................................................................... 126 III.II.II. Violência urbanística contra as mulheres ..................................................... 131 III.III. Remoção forçada e direitos humanos ............................................................ 137 III.IV. Microssistema urbanístico protetivo [um estudo aplicado sobre a lei do Rio de Janeiro] ................................................................................................................... 146 Conclusão .............................................................................................................. 159 Referências Bibliográficas ................................................................................... 166 Capítulo I. A favela fora-da-lei: o desvio e o estigma urbanísticos no contexto da segregação socioespacial planejada “Mais além do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular a produção da cidade, a legislação urbana age como marco delimitador de fronteiras de poder. A lei organiza, classifica e coleciona os territórios urbanos, conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania diretamente correspondentes ao modo de vida e à micropolítica familiar dos grupos que estiveram mais envolvidos em sua formulação. Funciona portanto como referente cultural fortíssimo na cidade, mesmo quando não é capaz de determinar sua forma final. Aí reside talvez um dos aspectos mais interessantes da lei: aparentemente funciona, como uma espécie de molde da cidade ideal ou desejável. (...) Porém, ao estabelecer formas permitidas e proibidas, acaba por definir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limitada” (Raquel Rolnik2) “Os poderes e as instituições não são hoje deslegitimados porque caíram na ilegalidade; é mais verdadeiro o contrário, ou seja, que a ilegalidade é difundida e generalizada porque os poderes perderam toda a consciência de sua legitimidade. Por isso, é vão acreditar que se pode enfrentar a crise das sociedades por meio da ação (certamente necessária) do poder judiciário – uma crise que investe a legitimidade não pode ser resolvida somente no plano do direito. A hipertrofia do direito, que tem a pretensão de legiferar sobre tudo, revela, isso sim, através de um excesso de legalidade formal, a perda de toda a legitimidade substancial. A tentativa moderna de fazer coincidir legalidade e legitimidade, procurando assegurar, através do direito positivo, a legitimidade de um poder é – como resulta do irrevogável processo de decadência em que ingressaram as instituições democráticas – totalmente insuficiente. As instituições de uma sociedade só continuaram vivas se ambos os princípios (que em nossa tradição também receberam o nome de direito natural e direito positivo, de poder espiritual e poder temporal ou, em Roma, de auctoritas e potestas) se mantiverem presentes e nelas agirem, sem nunca pretender que coincidam” (Giorgio Agamben3) I.I A invisibilização da favela Na gênese de qualquer favela, estabelece Luis Kehl como premissa de análise histórica desse modo-de-habitar na cidade, “existem em primeiro lugar, a expulsão de segmentos da sociedade da estrutura urbana formal, e busca pela construção de um ambiente em que os indivíduos se fecham para possibilitar sua sobrevivência pessoal e grupal”4. 2 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel; FAPESP, 1997, p. 13 (Coleção cidade aberta). 3 AGAMBEN, Giorgio. O ministério do mal: Bento XVI e o fim dos tempos. Tradução de Silvana de Gaspari e Patrícia Peterle. 1.ª ed. São Paulo: Boitempo; Florianópolis: Editora da UFSC, 2015. 4 KEHL, Luis. Breve história das favelas. São Paulo: Claridade, 2010, p. 87. 9 Esse quadro também se observou no Rio de Janeiro, outrora capital de nossa república. Conforme Maurício de Almeida Abreu, “a primeira década do século XX representa, para a cidade do Rio de Janeiro, uma época de grandes transformações, motivadas, sobretudo, pela necessidade de adequar a forma urbana às necessidades reais de criação, concentração e acumulação do capital”5. Com essa finalidade, Rodrigues Alves indicou Francisco Pereira Passos6 para assumir o cargo de Prefeito do Distrito Federal, outorgando-lhe carta branca para a implementação do “Plano de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro” (concebido entre os anos de 1875 e 1876), por meio da criação de um estatuto de organização municipal (lei de 29 de dezembro de 1902) que atribuía poderes arbitrários ao gestor. A atração de um grande contingente populacional à centralidade industrial, combinadas às precárias condições de alimentação, habitação, vestimenta e medicação, favoreceram altas taxas de mortalidade entre os/as operários/as7. Além de embelezamento e preparação da cidade ao capitalismo, para seu realinhamento em relação às capitais europeias e à concorrente Buenos Aires (invejada imbecilmente, como lamenta Lima Barreto8), a Reforma Passos foi concretizada no sentido da salubridade9 (saneamento, higienização, extinção de doenças e epidemias) pelo estabelecimento de ordem de condutas e da repressão de práticas citadinas consolidadas. 5 ABREU, Maurício de Almeida. Evolução urbana no Rio de Janeiro. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos, 2013, p. 59. 6 Pereira Passos (1836-1913) estudou engenharia na École Nationale des Ponts et Chaussées, período em que assistiu, de perto, a reforma empreendida por Geroges Eugène Haussmann, nomeado por Napoleão III como Prefeito do Departamento de Seine, entre os anos de 1853 e 1870. 7 A despeito disso, Milton Santos na sua empreitada de comparação entre a urbanização nos países subdesenvolvidos com o processo ocorrido nos países industrializados no início da Revolução Industrial, indica como um dos importantes fatores para a configuração de nossa urbanização como rápida (ou mais rápida), paradoxalmente, a sua tardança, que possibilitou aos países de urbanização tardia “beneficiar-se – e de uma forma muito rápida – do conjunto de progressos médicos pacientemente realizados nos países desenvolvidos” (SANTOS, Milton. A urbanização desigual: a especificidade do fenômeno urbano em países subdesenvolvidos. Tradução de Antonia Déa Erders e Maria Auxiliadora da Silva. 3.ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010, p. 36), em decorrência da facilidade de comunicação e de deslocamento intercontinentais. 8 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956. Apud: SANTUCCI, Jane. Cidade Rebelde: as revoltas populares no Rio de Janeiro no início do Século XX. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008, p. 94. 9 Manuel Herce Vallejo ressalta que “é óbvio por que a saúde pública foi a primeira preocupação que sensibilizou a burguesia no seu papel de poder dominante nas esferas econômica e política” (VALLEJO, Manuel Herce. O negócio da cidade: evolução e perspectivas da cidade contemporânea. Tradução de Salvador Antonio Bernardino Pane Baruja. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Mauad X; Inverde, 2015, p. 71). 10
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