Alexandra Filipa Soares Rodrigues FORMAÇÃO DE SUBSTANTIVOS DEVERBAIS SUFIXADOS EM PORTUGUÊS FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA 2006 Alexandra Filipa Soares Rodrigues FORMAÇÃO DE SUBSTANTIVOS DEVERBAIS SUFIXADOS EM PORTUGUÊS Dissertação de Doutoramento na área de Línguas e Literaturas Modernas, especialidade de Linguística Portuguesa, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientação da Professora Doutora Graça Maria Rio-Torto. FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA 2006 Resumo O presente estudo visa descrever e explicar a formação lexical dos substantivos deverbais sufixados do português europeu. Sob uma perspectiva léxico-mental, baseada no programa “arquitectura paralela” de Jackendoff (2002) (cap. I, § 1.1), desenvolve-se um modelo genolexical designado por “RFPs em interfaces” (cap. II). Com este modelo, mantém-se a importância da base derivacional, seguindo perspectivas orientadas para o input (e.g. Corbin 1987; Rio-Torto 1993, 1998, 2004). Contudo, a base derivacional não é delimitada sintacticamente. Na nossa abordagem, cabe às estruturas semânticas da base a construção do novo lexema. A maior inovação do nosso modelo consiste na assunção de que a formação de palavras é simultaneamente orientada para o output, seguindo abordagens (Plag 1999, 2004) que reconhecem a identidade e a operacionalidade semânticas dos afixos. No nosso modelo, o mesmo afixo pode ser agregado a diferentes tipos de bases sem ter de ser multiplicado em afixos homónimos. Os produtos lexicais construídos a partir de diferentes bases partilham um determinado componente pelo qual é responsável a carga semântica do afixo. Simultaneamente, há diferenças entre os produtos de acordo com os componentes semânticos de cada tipo de base. O modelo “RFPs em Interfaces” é concebido como um domínio dinâmico onde existem regras de formação de palavras e afixos. As regras de formação de palavras são entendidas como subdomínios dinâmicos onde todas as operações concernentes às diferentes estruturas linguísticas são combinadas para formar itens lexicais. Estas operações são primariamente semânticas e morfológicas. Mas outros domínios podem aí intervir, como o pragmático e o processual. Para cada RFP são definidas operações. Isto significa que é possível manter a concepção da RFP de nomes de acção, se a operação entre a base derivante e o produto já não for definida como uma mera operação verbo > substantivo, mas como uma operação entre determinados componentes semânticos da base bem definidos e um conjunto de componentes semântico também bem definido que constitui o produto. Isto significa que cada RFP é construída a partir de muitas sub-regras. Os afixos são caracterizados como contendo componentes semânticos. Estes componentes são observáveis indirectamente através dos efeitos semânticos homogéneos em produtos de diferentes RFPs. Duas RFPs diferentes podem estar em interface pela acção de um afixo que opera em ambas. Tal ocorre se os componentes semânticos do afixo forem compatíveis com os componentes semânticos das bases particulares a que os afixos se agregam. Assim, existem pelo menos dois níveis diferentes de compatibilidade semântica. Um nível é o da RFP. Neste nível, a carga semântica do afixo tem de ser compatível com a operação semântica geral entre a base e o produto. O segundo nível é muito mais refinado. Este estabelece que o afixo tem de ser semanticamente compatível com os componentes semânticos da base. Isto explica que um afixo possa operar numa RFP, mas não possa, em princípio, ser agregado a todas as bases que constituem o input dessa regra. Por outro lado, o mesmo afixo pode operar em outras RFPs. Este tipo de comportamento é explicável se tomarmos uma abordagem generativa do léxico e da semântica na linha de Pustejovsky (1995). A estrutura semântica é um domínio complexo, formado por fiadas múltiplas (Jackendoff 2002). A importância da semântica no campo de formação de palavras levou-nos a compreender o contributo real de outros componentes na formação dos deverbais. Contra visões tradicionais, estabelecemos que a estrutura argumental não intervém na formação dos substantivos deverbais. Se alguns deverbais possuem estrutura argumental, esta é desenvolvida dentro do deverbal, como consequência da sua configuração semântica. A 3 estrutura argumental não é herdada da base verbal. O mesmo ocorre em relação a deverbais que designam indivíduos. Nestes casos, não é um argumento da base verbal que é projectado para formar o semantismo do deverbal. O único material responsável pelos produtos localiza-se nos níveis semânticos. Estes postulados teóricos só poderiam ser alcançados através de uma alimentação contínua entre dados empíricos e problemas teóricos. Os dados empíricos provêm de 8414 substantivos sufixados deverbais e 8414 bases e dos 13708 semantismos desses produtos. A relação entre os produtos e as bases foi avaliada morfologicamente. No cap. III, analisamos a relação entre a estrutura morfológica das bases e a dos produtos de cada afixo. A avaliação do contributo dos componentes semânticos das bases é focada no cap. IV. Neste capítulo, explicamos quais os tipos de componentes semânticos é que deverão ser considerados para entendermos o seu contributo na formação dos diferentes semantismos de cada produto. O capítulo V desenvolve um aparelho formal baseado na abordagem generativa do léxico e da semântica. Tomando cada componente semântico oriundo das fontes possíveis (estrutura eventiva da base, estrutura léxico-conceptual da base, afixo e extra), que foram previamente definidas, este aparelho explica o modo como os componentes se combinam entre si para formar os semantismos dos produtos. Os mecanismos responsáveis pela operação de combinação são a “coindexação” (seguindo uma proposta de Lieber 2004) e a “projecção” (cap. II). Os capítulos VI e VII aplicam o modelo desenvolvido nos capítulos anteriores à análise dos deverbais de evento e de não-evento, respectivamente. Os dados encontram-se organizados em quatro anexos. Os anexos A e B contêm dados numéricos relativos aos semantismos distribuídos por produto (com orientação para o afixo) e por base léxico-semântica. Os anexos X e Y contêm a aplicação do aparelho formal para a compreensão da formação dos semantismos por afixo e por base léxico-semântica. Palavras-chave: regras de formação de palavras, afixação, modelos orientados para o output, substantivos deverbais. 4 Abstract This study aims to describe and explain the lexical formation of Portuguese suffixed deverbal nouns. Under a lexical-mental perspective, which is founded on the program “parallel architecture” by Jackendoff (2002) (chap. I, § 1.1), in this study we develop a genolexical model called “Word Formation Rules in Interfaces” (chap. II). With this model we maintain the importance of the deriving base, following input-oriented perspectives (e.g. Corbin 1987; Rio-Torto 1993, 1998, 2004). However, the deriving base is not syntactically delimited. Under our approach, it is the semantic structures of the base which play a role in the construction of the new word. The major innovation of our model consists of the assumption that word formation is simultaneously output-oriented, following approaches (Plag 1999, 2004) that recognise the semantic identity and the operationality of affixes. In our model, the same affix may be adjoined to different kinds of bases without having to be multiplied in homonymous affixes. The lexical products constructed from different bases share some semantic component which the semantic charge of the affix is responsible for. Simultaneously, there are differences between the products according to the semantic components of each kind of base. The “WFRs in Interfaces” model is conceived as a lexical-mental dynamic domain where word formation rules and affixes exist. Word formation rules are assumed to be dynamic subdomains where all the operations concerning different language structures are combined to form lexical items. These operations are primarily semantic and morphological. But other domains may intervene, such as pragmatics and process. For each Word Formation Rule, there are semantic operations defined. This means that it is possible to maintain the conception of action nouns WFR, if the operation between the deriving base and the product is no longer defined as a mere verb > noun operation, but as an operation between some well-defined semantic base components and a well-defined semantic set, which is the product. This means that each WFR is constructed on many subrules. Affixes are characterised as containing semantic components. These components are indirectly observable by the homogeneous semantic effects on products of different WFR. Two different WFRs may be in interface by the action of an affix which operates in both. This occurs if the semantic components of the affix are compatible with the semantic components of the particular bases which it is adjoined to. This means that there are at least two different levels of semantic compatibility. One level is the level of the WFR. In this level, the semantic charge of the affix must be compatible with the general semantic operation between the base and the product. The second level is a much more fine-grained one. This states that the affix must be semantically compatible with the semantic components of the base. This explains that an affix may operate in a WFR, but may not, in principle, be adjoined to every base that constitutes the input of that rule. On the other hand, that same affix may operate in other WFRs. This kind of behaviour is explainable if we adopt a generative approach to the lexicon and to semantics under the perspective of Pustejovsky (1995). Semantic structure is a complex domain, which is formed by multiple tiers (Jackendoff 2002). The importance of semantics in the word formation field has enabled us to understand the real contribution of other components to the formation of deverbal nouns. Against traditional views, we state that argument structure does not intervene in the formation of deverbal nouns. If some deverbal nouns have argument structure it is developed inside the deverbal noun, as a consequence of its semantic configuration. It is not inherited from the verbal base. The same occurs with deverbal nouns which have concrete 5 meanings. In these cases, it is not an argument of the base verb which is projected to form the meaning of the noun. The only material responsible for the products belongs to semantic levels. These theoretical postulates could only be achieved by an ongoing intercourse between empirical data and theoretical problems. The empirical data come from the analysis of 8414 suffixed deverbal nouns and their 8414 bases and 13708 meanings of those products. The relation between products and bases was evaluated using a morphological analysis. In chapter III, we analyse the relation between the morphological structure of the bases and each product affix. The evaluation of the contribution of the semantic components of the bases is focused on on chapter IV. There we explain what kind of semantic components are to be taken into account to understand their contribution to the formation of the different meanings of each product. Chapter V develops a formal device based on the generative approach of the lexicon and of semantics. Taking each semantic component of the possible sources (eventive structure of the base, lexical-conceptual structure of the base, affix or extra), which have been defined, this device explains the way those components combine with each other to form the meanings of the products. The mechanisms responsible for the operation of combination are “coindexation” (following a proposal of Lieber 2004) and “projection” (chap. II). Chapters VI and VII apply the model developed along the previous chapters to the analysis of event deverbal nouns and non-event deverbal nouns, respectively. Data are organised in four annexes. Annexes A and B contain numeric data of the meanings distributed by product (affix-oriented) and lexical-semantic base. Annexes X and Y contain the application of the formal device to understand the formation of the meanings by affix and lexical-semantic base. Key-words: word formation rules, affixation, output-oriented models, deverbal nouns. 6 Agradecimentos À Senhora Professora Doutora Graça Maria Rio-Torto, da Universidade de Coimbra, minha orientadora científica, pelo modo exemplar como acompanhou a elaboração deste trabalho, quer em termos profissionais, quer em termos humanos. Gostaria de ressalvar que quaisquer incongruências, lacunas ou limitações desta dissertação são inteiramente da minha responsabilidade. À Universidade de Coimbra, por ter viabilizado a laboração desta dissertação no seu seio. Ao Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada e ao Instituto de Língua e Literatura Portuguesas da Universidade de Coimbra, pelo apoio bibliográfico e pelo incentivo à investigação. Ao Instituto Politécnico de Bragança, bem como ao programa PRODEP III, medida 5, acção 5.3, pela possibilidade de dedicar-me durante três anos em exclusivo à feitura deste trabalho. Ao Centro de Linguística da Universidade do Porto, na pessoa da Dr.ª Deolinda Gomes, pela facultação de bibliografia. Ao Instituto Ortega Y Gasset de Madrid, nas pessoas da Senhora Professora Doutora Soledad Varela Ortega e da Senhora Professora Doutora Violeta Demonte, pela possibilidade de participar como visitante no curso ministrado pelo Professor Doutor Geert Booij, da Vrije Universiteit Amsterdam, sob o tema ‘The position of morphology in the grammar’, inscrito no programa de ‘Doctorado en Lingüística Teórica y sus Aplicaciones’, em Abril-Maio de 2004. Ao Senhor Professor Doutor Geert Booij, pela possibilidade que me deu de assistir ao referido curso. Ao Professor Doutor João Veloso, à Dr.ª Cândida Cantiga e ao Doutor Rui Pereira, pela facultação de bibliografia. Aos meus pais e ao meu irmão, pelo apoio e pela paciência. 7 8 Capítulo I Introdução 1. Fundamento teórico A dissertação que aqui se apresenta possui como objecto a formação de substantivos deverbais sufixados do português. A análise desse objecto ancora-se num modelo teórico de genolexia que aqui propomos e que designamos por ‘modelo das RFPs em interfaces’. A validação teórica do modelo genolexical por nós desenvolvido tem como suporte um programa geral de teoria da linguagem elaborado por Jackendoff (2002). Ainda que a designação do modelo que propomos contenha ‘RFPs’, estas não devem ser tomadas aqui como domínio exclusivo de homogeneização genolexical. Na verdade, o modelo advoga que quer a constância das bases, definidas semântica e não necessariamente sintacticamente, quer a constância de cada operador afixal em si mesmo representam domínios de convergência e de divergência genolexicais. Assim, o modelo das RFPs em interfaces pressupõe que o poder de construção semântica está a cargo quer das RFPs, quer dos operadores afixais, visto estes possuírem verdadeira identidade semântica e não serem apenas mutadores sintácticos regidos pela RFP em que laboram. O modelo que propomos distancia-se, assim, dos modelos que tomam as RFPs como centros de homogeneização da formação de palavras, bem como daqueles que encaram os afixos como detentores exclusivos dessa capacidade. Nos modelos centrados nas RFPs, de que destacamos os trabalhos de Corbin (1987) e de Rio-Torto (1993, 1998, 2004), as RFPs são os domínios que definem os paradigmas genolexicais. São as RFPs responsáveis pela formatação das operações semântico- categoriais entre bases e produtos. Nos modelos centrados nos afixos, como o modelo proposto por Plag (1999, 2004), a homogeneidade genolexical é da responsabilidade dos afixos. Para Plag, é prescindível a concepção de RFPs, na medida em que a uniformidade dos semantismos dos produtos que partilham o mesmo afixo se sobrepõe à uniformidade das bases defendida pelos modelos centrados nas RFPs. 9 O modelo de RFPs em interfaces que propomos conjuga a autonomia das RFPs com a autonomia dos afixos, através de relações dinâmicas tecidas entre os componentes genolexicais. As inovações aportadas pelo modelo de RFPs em interfaces baseiam-se no programa “arquitectura paralela” de Jackendoff (2002) e são ainda sustentadas por visões do léxico e da semântica lexical como a de Pustejovsky (1991; 1995). Na esteira de Pustejovsky, compreendemos que a decomposicionalidade semântica dos lexemas não se rege pela inventariação de traços primitivos em número reduzido e delimitado, mas antes pela organização em rede de traços eles próprios decomponíveis em traços em rede cujas inter-relações permitem gerar semantismos. 1.1 O programa “Arquitectura Paralela de Jackendoff (2002) O modelo proposto por Jackendoff (2002) apresenta uma visão actual do fenómeno cognitivo que é a linguagem. Tendo partido de perspectivas lançadas pela Gramática Generativa Standard, Jackendoff prossegue alguns dos princípios desta, mas avança em direcções que fazem do seu programa uma proposta aliciante em termos estritos e latos. Em termos estritos, falamos da linguagem e, em termo latos, do funcionamento da mente-f1 em geral como domínio cognitivo resultante de uma evolução filogenética. O modelo “Arquitectura Paralela” permite dar respostas satisfatórias a problemas suscitados pelas 1 Jackendoff (2002) segue a concepção de Chomsky (1965): “mente” refere-se a um domínio localizado entre o inconsciente conceptualizado por Freud e o cérebro enquanto órgão fisiológico (Jackendoff 2002: 21). Jackendoff (1994: 18-19) esclarece a distinção entre o inconsciente concebido por Freud e o nível de inconsciente onde se localiza a linguagem da seguinte forma: «In a way, the unconsciousness of mental grammar is still more radical than Freud’s notion of the unconscious: mental grammar isn’t available to consciousness under any conditions, therapeutic or otherwise. On the other hand, an unconscious mental grammar that guides our behavior is a good deal less personally threatening than an Oedipus Complex or a Death Instinct. Unlike these Freudian constructs, mental grammar doesn’t have pernicious effects.». Por outro lado, o A. desvincula a noção de “mente” de uma concepção exclusivamente relacionada com a parte biológica do cérebro (Jackendoff 1999: 39). Assim, Jackendoff (2002: 21) caracteriza “mente” como «the functional organization and functional activity of the brain, some small part of which emerges in consciousness and most of which does not.». Para que “mente” não se confunda com o uso não técnico do lexema, o A. propõe a designação “f-mind”, sendo que “f” designa “functional”, que Jackendoff (2002: 21, nota 1) desde logo distancia da Gramática Funcionalista, ou seja, da teoria que concebe que as propriedades gramaticais derivam das exigências da comunicação. Uma imagem com a oposição hardware/software é usada pelo A. (2002: 21-22) para esclarecer o conceito de mente-f: «the brain is taken to parallel the hardware, the mind the software. When we speak of a particular computer running, say, Word 97, and speak of it storing certain data structures that enable it to run that program, we are speaking in functional terms – in terms of the logical organization of the task the computer is performing. In physical (hardware) terms, this functional organization is embodied in a collection of electronic components on chips, disks, and so forth, interacting through electrical impulses. Similarly, if we speak of the mind/brain determining visual contours or parsing a linguistic expression, we are speaking in functional terms; this functional organization is embodied in a collection of neurons engaging in electrical and chemical interaction.». 10
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