Além do habitus frédéric vandenberghe jean-françois véran (org.) Além do habitus Teoria social pós-bourdieusiana a i g o l o p o r t n a & a i g o l oo coleçãsoci © 2016 Frédéric Vandenberghe; Jean-François Véran programa de pós-graduação em sociologia e antropologia Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico instituto de filosofia e ciências sociais da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009. da universidade federal do rio de janeiro (ppgsa/ifcs/ufrj) Coordenação editorial Isadora Travassos Produção editorial Coleção Sociologia & Antropologia Eduardo Süssekind Rodrigo Fontoura Victoria Rabello Conselho Editorial Revisão Beatriz Maria Halasia de Heredia Carolina Lopes Batista Bila Sorj Elina Pessanha Felícia Silva Picanço Glaucia Villas Bôas cip-brasil. catalogação na publicação José Ricardo Ramalho sindicato nacional dos editores de livros, rj Marco Antonio Gonçalves A351 Marco Aurélio Santana Além do habitus: teoria social pós-bourdieusiana / organização Frédéric Maria Laura V. C. Cavalcanti Vandenberghe, Jean-François Véran. - 1. ed. - Rio de Janeiro: 7Letras, 2016. Michel Misse (Sociologia & antropologia) Mirian Goldenberg isbn 978-85-421-0382-3 Yvonne Maggie 1. Sociologia. 2. Sociologia – Metodologia. I. Vandenberghe, Frédéric. II. Véran, Jean-François. III. Série. 15-25633 cdd: 301.01 cdu: 316 2016 Viveiros de Castro Editora Ltda. Rua Visconde de Pirajá, 580/ sl. 320 – Ipanema Rio de Janeiro | rj | cep 22410-902 Tel. (21) 2540-0076 [email protected] | www.7letras.com.br UFRJ Sumário Novas sociologias: um exercício de teoria comparativa 9 Jean-François Véran Frédéric Vandenberghe Os pós-bourdieusianos: retrato de uma família disfuncional 27 Frédéric Vandenberghe parte i – bernard lahire: a sociologia em escala individual O homem plural ou a sociologia em escala individual 39 Bernard Lahire Bernard Lahire: contribuições e limites de uma sociologia em escala individual 49 Cláudio Marques Martins Nogueira parte ii – margaret archer: realismo crítico e reflexividade Explicação e compreensão podem ser ligadas numa história única? 73 Margaret S. Archer A sociologia na escala individual: Margaret Archer e Bernard Lahire 95 Frédéric Vandenberghe parte iii – luc boltanski: sociologia pragmática da justificação Novas sociologias: um exercício de teoria comparativa Sociologia crítica ou sociologia da crítica 129 Luc Boltanski Jean-François Véran A força das circunstâncias: sobre a metapragmática das situações 155 Frédéric Vandenberghe Alexandre Werneck A “justificação” como modelo político de regulação: reflexão a partir do contexto brasileiro 193 Jean-François Véran Diogo Corrêa Sobre os autores 213 vive la crise! Como se reconhece um sociólogo? O critério é quase operacional: quem cita Marx, Weber e Durkheim é, por convenção, sociólogo ou socióloga, pois, se a sociologia volta e sempre precisa voltar aos seus clássicos é, sem duvida, porque é assim que ela constrói a sua unidade e a sua coe- rência. Vejam Parsons nos anos 30, Merton nos anos 50, Habermas nos anos 70 ou Giddens e Bourdieu nos anos 80. A mistura fina dos clássi- cos pode variar – um pouco mais de Durkheim e um pouco menos de Marx, ou vice-versa. As referências canônicas podem mudar – quem ainda lê Herbert Spencer? Quem ainda não redescobriu a obra de Georg Simmel? –, mas o que tem ficado invariável nas transformações é a reve- rência aos “velhos” e a necessidade de se apoiar na tradição para inovar e regenerar a disciplina. De fato, a reinterpretação contínua dos clássicos durante um século só tem reforçado a tendência a dar um passo atrás para, em seguida, dar dois passos à frente. Seguindo a decomposição do marxismo como filosofia da história crível, novas figuras entraram em jogo nos anos 80. Bourdieu, Giddens, Habermas e Luhmann, eis os autores introduzidos nos cursos de teoria sociológica contemporâ- nea, entronizados como protagonistas do “novo movimento teórico” 9 além do habitus: teoria social pós-bourdieusiana novas sociologias: um exercício de teoria comparativa (ALEXANDER, 1986; ver também CORCUFF, 2001) que poderíamos até perdidas na tradução e andam a perguntar-se, num longo epistemologi- chamar, com certa ironia, para nos distanciarmos da alta escolástica da cal blues, se a antropologia ainda pode produzir saber e conhecimento agência e da estrutura, de “sociologia neoclássica”. Como os seus prede- “objetivos” ou simplesmente produzir algum tipo de “objetivação”. Uma cessores, eles também produziram suas teorias através de uma recom- leitura mais encantada dessas mutações consistiria em dizer que, no fim binação fotossintética dos clássicos. Temos a impressão de que a socio- das contas, a disciplina está realizando o programa que Foucault tinha logia entrou na “era dos epígonos” (VANDENBERGHE, 2010, p. 85-110). imaginado para ela e funcionando como uma “contraciência” humana, Não que não haja nada de novo, mas mesmo o novo (como a teoria do ao jogar com o “efeito Penélope”: trazer de volta as ciências humanas para ator-rede, por exemplo), se veste de velhas roupagens (a neomonadolo- a sua base epistemológica, “desfazendo” constantemente este homem gia de Gabriel Tarde e os devires rizomáticos de Gilles Deleuze). Hoje que, nas ciências humanas, faz e refaz sua positividade. em dia, com a assunção fulgurante da hegemonia de Pierre Bourdieu na ultima década, o campo da sociologia internacional pode ser divido em grandes teorias microssociológicas uma grande linha, isto é, entre bourdieusianos e antibourdieusianos – Se a antropologia se constituiu como “ciência” do “outro” e, ao menos com uma linha de fuga importante formada pelos pós-bourdieusianos, se nos ativermos a sua vertente malinowskiana clássica, tentou mostrar tais quais Luc Boltanski, Margaret Archer e Bernard Lahire, que, não como o “outro”, na verdade, era um “mesmo” (afinal, somos todos huma- por acaso, estão no cerne desse livro. nos), a sociologia parece ter feito o movimento contrário. Despontando A antropologia, por sua vez, entrou numa profunda crise episte- em meio às intensas transformações produzidas pelas Revoluções mológica decorrente de uma ampla desconstrução de seu próprio etno- Industrial e Francesa, os autores clássicos tentaram, cada qual ao seu centrismo. Bem mais seduzida do que a sociologia pela chamada virada modo, apontar para o fato de que as “mesmas” – quer dizer, as socie- linguística, na sua vertente culturalista (Geertz) ou pós-estruturalista dades ocidentais, norte-europeias – estavam se tornando progressiva- (Foucault), enfrentou sua crise pela incorporação da matriz relativista mente “outras”. Seja em razão do surgimento de uma sociedade global, que a disciplina tinha aplicado até então aos seus “nativos”, e assumiu o da incessante inovação das novas tecnologias ou simplesmente porque perspectivismo da sua própria prática. Descobriu-se que, assim como as sociedades se tornaram “complexas” demais, fato é que a sociologia havia uma diversidade de culturas, havia igualmente uma pluralidade de se voltou para as teorias de médio e de microalcance. De fato, a era das antropologias. O interpretativismo rebaixou o status epistemológico da grandes sínteses teóricas já passou. E já não se espera mais um novo narrativa etnográfica ao relê-la como uma “metanarrativa” (MARCUS; Parsons ou um novo Habermas para reorganizar as múltiplas teorias FISCHER, 1986). A crítica à antropologia colonial do tribalismo levou a num só quadro analítico capaz de englobá-las por completo. Na esteira certa “tribalização” da própria antropologia, soando às vezes como um de Bourdieu, frisa-se novamente que a sociologia não é uma filosofia ritual agonístico para pagar sua própria dívida com o passado e assim, aplicada, mas uma ciência empírica que não teoriza no vazio e cuja prá- quem sabe, lidar melhor com sua má consciência histórica. É significa- tica se dá no campo. Sem material não há ciência; sem teoria não há tivo que, em 2010, a Associação Americana de Antropologia tenha reti- pesquisa de campo. rado a palavra “ciência” de seu programa, preferindo atribuir-se a tarefa Fortemente influenciados pela síntese bourdieusiana, Margaret mais modesta de melhorar “a compreensão pública do gênero humano Archer, Luc Boltanski e Bernard Lahire, as três estrelas desse livro, com- em todos os seus aspectos”.1 Como resultado, as jovens gerações parecem partilham a ideia da sociologia como ciência empírica. O que não signi- fica, de modo algum, que eles aceitem o positivismo como filosofia ade- 1 O documento controverso encontra-se no site da AAA. Disponível em : <http://www.aaanet. quada das ciências. Como principal representante do realismo crítico na org/about/Governance/Long_range_plan.cfm>. Acesso em: 25 set. 2015.. 10 11 além do habitus: teoria social pós-bourdieusiana novas sociologias: um exercício de teoria comparativa sociologia, Archer contesta que a filosofia de Popper-Hempel seja válida atividades mentais de uma adolescente cabeleireira ou de uma religiosa – até nas próprias ciências naturais – e defende o programa explicativo missionária que acaba de retornar da América Latina. A investigação da perspectiva morfogenética como alternativa ao positivismo. Mais detalhada da maneira como elas planejam, ensaiam, decidem e se pro- influenciados pela etnometodologia, o pragmatismo e a hermenêutica, jetam no mundo é o que permite entender como elas se constroem e, Boltanski e Thévenot trocaram a explicação por um programa descri- assim, produzem o seu caminho existencial através do mundo. Importa tivo, enquanto Lahire evita, na medida do possível, entrar na seara da a Archer, também, observar como as decisões tomadas por cada uma epistemologia. De fato, nenhuma das três sociologias funciona de forma das pessoas afetam a reprodução ou a transformação da sociedade como puramente hipotético-dedutiva. Todas consideram o campo como um um todo. A aposta é que somente sondando as conversações interio- “espaço não popperiano” (PASSERON, 1998) de descoberta empírica e de res que as pessoas têm consigo mesmas torna-se possível mostrar como exploração teórica no qual novos conceitos são inventados e exemplifi- projetos pessoais são formados na mediação entre cultura, estrutura cados na pesquisa. A tipologia dos “modos de reflexividade” (ARCHER, e agência. De fato, na longa trajetória intelectual de Archer (2007), as 2003) que surgiu das conversações “exteriores” da socióloga inglesa com conversações internas intervêm como a última peça de um arcabouço seus entrevistados não tinha sido antecipada teoricamente. Os “retra- complexo que inter-relaciona os poderes causais da estrutura social, da tos de família” (LAHIRE, 1995) explicam sucessos e fracassos escolares cultura e da pessoa para repensar o binômio agência-estrutura. a partir das configurações no interior da família. Com os seus retra- O “homem” ou, talvez melhor, o “ator plural” revelado por Bernard tos e relatos, Lahire não só rompe com o mito do “abandono parental”; Lahire (1998) é analiticamente perceptível apenas à medida que o arguindo como sempre contra Bourdieu,ele vai também de encontro às sociólogo livra-se da lente grossa e homogeneizante do habitus para pesquisas estatísticas sobre o tema. Boltanski, por sua vez, começou por enxergar a complexidade do patrimônio de disposições incorporadas analisar as cartas de denúncia mandadas para um grande jornal francês, que faz o indivíduo pensar, sentir e agir de um modo determinado. o Le Monde (BOLTANSKI, 1990, p. 253-366). Foi só depois que, numa ten- Cada caso é escrutado em um nível micromolecular que traça o duplo tativa de formalizar os vocabulários de justificação usados pelos atores efeito da socialização e do contexto até que se possa explicar e, portanto, em situações críticas, ele, com a ajuda de Laurent Thévenot, produziu o entender o que realmente move uma pessoa. Assim, por exemplo, num universo conceitual de cités que virou a marca distintiva da sociologia livro maciço dedicado ao mais famoso escritor tcheco, Lahire faz uma pragmática francesa (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1991). sociologia total de Kafka (de Praga, da constelação familiar, do seu Cumpre dizer que, nos três casos, o foco é microssociológico e opera emprego numa empresa de seguros, do campo da literatura alemã) como um “zoom in” – análogo à introdução do Google-Earth nas pes- para explicar “por que Kafka escreve o que escreve do jeito em que quisas da vida social. Ou, dito de forma menos prosaica, a análise opera escreve” (LAHIRE, 2010, p. XX). Para isso, o autor propõe uma “descrição com esses “jogos de escala” conceituados por Revel (1996): sabe-se que, fina” particularmente meticulosa. Como sabido, a mesma expressão de perto, não se mostra nem se vê a mesma coisa que de uma distância é utilizada por Clifford Geertz (1989), mas, no caso do antropólogo focal maior. À medida que se muda a resolução da visão, o pesquisador americano, ela serve para referir-se ao grau zero da descrição, em se aproxima ou se distancia do objeto e torna-se mais ou menos sensí- oposição ao predicado de “descrição densa” de sua antropologia vel a distintos aspectos do relevo e da geografia local. Archer e Lahire interpretativa. Não é, obviamente, o sentido atribuído por Lahire, para trabalham ambos em um nível “microssócio-biográfico” e consideram a quem, justamente, nem “todas as interpretações valem o mesmo”. Para vida de um único indivíduo como unidade de análise. Diferentemente ele, a “fineza” refere-se mesmo a um processo de conhecimento que se de Boltanski, que propõe uma sociologia da ação, Archer e Lahire fazem dá pela observação do infinitesimal,com fundamentação empírica, um deliberadamente uma sociologia do ator. A primeira se interessa pelas projeto claramente distinto do universo da “hermenêutica livre” das 12 13 além do habitus: teoria social pós-bourdieusiana novas sociologias: um exercício de teoria comparativa interpretações “selvagens” e “incontroladas”. Boltanski, por sua parte, de Boltanski não seja pensada nos moldes de uma sociologia histórica observa também com uma lente micro; porém, não foca nos indivíduos comparativa, é evidente que o modelo das “economias da grandeza” fun- de maneira biográfica ou disposicional, mas nas situações de ação ciona somente em contextos onde os membros que mobilizam o voca- nas quais eles se encontram e, mais especificamente, nas situações de bulário de uma determinada cidade estejam interligados por um “prin- desacordo e nos processos sociais pelos quais os indivíduos remediam cípio de comum humanidade”, de “comum dignidade” e onde a justiça a indeterminação do contexto. Ele propõe uma sociologia da ação que seja tida como um bem comum. Além disso, o próprio Boltanski (1990) dispensa o habitus e o campo: se seus atores são analiticamente despidos reconhece que o seu modelo pressupõe a existência de uma “sociedade de sua espessura histórica e aliviados de suas bagagens disposicionais, crítica” e plural, quer dizer, uma sociedade cujas várias “esferas de jus- eles são equipados, em compensação, com competências críticas que tiça” (Walzer) ou “ordens de justificação” sejam quotidianamente mobi- lhes permitem formular uma denúncia em situações tensas em que há lizadas pelos atores a fim de assentarem, em um horizonte de publici- um imperativo de justificação e sem que se recorra à violência física. dade, as suas pretensões de justiça. Em O novo espírito do capitalismo, o Construído na interface entre o pragmatismo americano – embora o grande livro escrito na companhia de Ève Chiapello, em que Boltanski encontro com esse último só tenha sido “descoberto” mais tarde –, e a (2009) trata das transformações estruturais do capitalismo pós-fordista microssociologia inspirada em Harold Garfinkel, Harvey Sacks e Erving e neoliberal, o modelo de cités é reformulado, e o que era pano de fundo Goffman, o situacionismo metodológico não implica uma definição (o poder e a história) assume o primeiro plano. Com essa passagem da ontológica da realidade, como se o mundo se reduzisse ao universo micro para a macrossituação, Boltanski reencontra a verve política de das situações, mas é uma lente empírica seletiva, polida para apenas Pierre Bourdieu. Consequentemente, essa reaproximação da sociologia focar as situações da vida social que trazem à tona uma pragmática da crítica do último com da sociologia da crítica do primeiro não deveria reflexão crítica por parte dos próprios atores – e não somente por parte causar espanto. Ela abriu também o caminho para um diálogo com Axel do sociólogo. Honneth, o herdeiro da teoria crítica da Escola de Frankfurt, cujo resul- Quando se leva a sério a pesquisa empírica, a contextualização é ana- tado se encontra expresso no livro De la critique (2009). liticamente fundamental. Ao inscrever-se em espaços e temporalidades Se Lahire é bastante crítico para com a obra de Bourdieu, essa crí- específicas e problematizadas como tais, as três sociologias remetem a tica não se estende ao seu engajamento político. De fato, Lahire com- uma “configuração particular da modernidade”, segundo a expressão de partilha a visão crítica do capitalismo e aceita a macrossociologia de Reemstma (2011), a qual é explicitamente teorizada por Archer, implici- Bourdieu como uma descrição fidedigna da realidade da dominação sob tamente pressuposta por Boltanski e reiteradamente evitada por Lahire. todas suas formas. As críticas relativas à obra do ex-professor Collège de Nas suas mais recentes reflexões sobre a modernidade reflexiva, Archer France parecem ser mais de ordem metodológica do que substantiva ou (2012) conceitua a “sociedade morfogenética” como uma formação política. A obra de Lahire pode ser lida, nesse sentido, como um esforço social pós-tradicional, na qual a reprodução semiautomática do habitus obsessivo e sistemático para tornar visíveis e analiticamente apreensí- perde o seu poder explicativo e torna-se simplesmente obsoleta. Tantas veis os pontos cegos da teoria bourdieusiana. É a partir de observações mudanças acontecem ao mesmo tempo que a cumplicidade ontológica prolongadas em sala de aula, entrevistas com alunos e uma sensibilidade entre o campo e o habitus é rompida; a reflexividade existencial torna- para diferenças inter- e intraindividuais dentro de grupos relativamente se não apenas constante, como atravessa e perpassa todas as esferas da homogêneos que ele tem descoberto dissonâncias que indicam que a vida. Nessas condições, a reprodução (ou morfostase) social, cultural clivagem do hábito não é nada excepcional, mas de regra. Mudando a e pessoal de sociedades mais tradicionais vira a exceção que confirma escala de análise, ele tem sistematicamente desagregado o habitus numa a regra da transformação contínua. Ainda que a sociologia da crítica pluralidade de disposições, nem todas convergentes. Dessa maneira, a 14 15 além do habitus: teoria social pós-bourdieusiana novas sociologias: um exercício de teoria comparativa contextualização das disposições revelou que o habitus monolítico, fun- “para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei”. Esta tensão entre uni- cionando como uma máquina de reprodução estável, representa só um versalismo e particularismo decorre de que, ao contrário da premissa caso singular do possível que não pode ser generalizado a todas as popu- fundamental do modelo boltanskiano, a condição de comum humani- lações e situações. dade não é garantida por princípio. Para alguns que temem “não ser A reflexividade, as disposições plurais e as competências críticas tratados como gente”, ela sempre tem que ser negociada em situação, e o qualificam então indivíduos historicamente situados e atuando em con- risco de “perder” está sempre presente. Além do mais e simetricamente, textos empíricos particulares. Nenhuma das teorias consideradas foi for- o modelo de Boltanski trabalha com uma oposição entre justificação e mulada com a intenção primeira de investigar a conjuntura macrossocial violência. Essa posição não permite explorar contextos nos quais a vio- ou de propor uma ontologia do presente. A perspectiva morfogenética lência é sempre tida como potencialmente justificável. Tratar a violência propõe um programa explicativo que pretende resolver a problema da sem referência nenhuma aos vocabulários normativos de justificação agência e da estrutura sem redução ou fusão dialética entre ambas. O desumaniza os agentes e trata-os como se fossem objetos, meros corpos pragmatismo francês foi desenvolvido para investigar as gramáticas do sem significado simbólico. “Vidas não qualificadas”, segundo a expres- justo mobilizadas em situações públicas nas quais a categorização dada são de Giorgio Agamben (2002). às pessoas é contestada por elas. O programa de pesquisa disposicional Passando para Margaret Archer, ainda que a reflexividade seja uma prolonga a sociologia crítica, mas o faz transpondo-a para uma outra característica coextensiva à humanidade, tudo indica que os registros da escala. Ainda que os programas de pesquisa se concentrem na análise reflexividade se inscrevem numa configuração particular da moderni- quer de trajetórias individuais, quer de situações sociais, eles são formu- dade que coloca a questão de sua adequação de maneira diferencial. Não lados em um nível de generalidade que permite aplicá-los em campos e é preciso adotar uma postura pós-colonial para afirmar a necessidade situações diferentes. Entretanto, a questão da transposição desses mode- de alcançar modelos analíticos plurais para modernidades heterogê- los analíticos ao contexto brasileiro não é e não pode ser considerada neas. Por exemplo, podemos questionar em que medida o pós-materia- como um simples exercício acrítico de aplicação. Os pesquisadores bra- lismo que a metarreflexividade pressupõe se aplica em condições sociais sileiros não podem fingir que estão em Paris ou Londres. Belo Horizonte e materiais precárias que caracterizam sociedades altamente desiguais, não é Lyon e o subúrbio carioca não tem nada de parecido com aban- onde, muitas vezes, a progressão social é lida a partir das conquistas lieue parisiense. Ateorização fora do lugar passa necessariamente por materiais e passa pelo consumo das camadas populares em ascensão. um diálogo embasado em sólidos trabalhos empíricos seguido de uma Poderíamos também explorar a possibilidade de uma reflexividade confrontação conceitual e uma eventual reformulação teórica. metacomunicativa que alia introspecção à extrospecção de uma socia- Podemos apontar para alguns temas deste diálogo que parecem- bilidade intensa. Numa sociedade com redes sociais tão densas, o indi- nos mais salientes. O modelo de Boltanski tem como pressuposto ana- vidualismo embutido no modelo de Archer tem que ser qualificado e lítico que toda justificação se fundamenta num princípio de universali- calibrado em contextos de hiperssociabilidade. Além do mais, podemos zação (à la Rawls). Ora, no Brasil, certa tradição sociológica insiste em pensar que no Brasil os modos de reflexividade comunicativa, autônoma lembrar que a referência à universalização está sempre numa relação de e fragmentada não são tão estanques. A autonomia é inseparavelmente competição com o espaço referencial da personalização e da particulari- comunicativa e afetiva. zação. Isso não significa que não haja imaginário universalista, mas que, Ainda que ambos os modelos de Bourdieu e Lahire se concebam na vida cotidiana, a aplicação nas condições concretas degrada o prin- como universalizáveis, vale lembrar que o segundo foi construído em cípio de tal maneira que alguns podem obter tratamento “particular” contraposição com o primeiro, ao ponto que circula a piada que Lahire enquanto os outros são submetidos à força da lei. Como reza o ditado, está reescrevendo um por um todos os livros de Bourdieu. Nesta base, 16 17 além do habitus: teoria social pós-bourdieusiana novas sociologias: um exercício de teoria comparativa poderia pensar-se que, se Bourdieu está tão presente no debate acadê- De toda forma, na França como alhures, o gesto pragmático já mico, é bem porque na sociedade brasileira a dialética da reprodução e teve fortes consequências e ressonâncias entre nós. Até o ponto que da distinção funciona com ainda mais força que na França. Como disse já podemos destacar duas gerações de pesquisadores que utilizam ou o próprio Lahire, em conversa com os autores, precisamos de uma ver- foram fortemente influenciadas pelo modelo das cidades nas etnografias são brasileira da Misère du monde. Porém, se, de um lado, a homoge- urbanas: uma primeira em torno de Luiz Antonio Machado da Silva, no neidade parece superior, do outro, podemos pensar que o que Lahire antigo Iuperj e atual Iesp-Uerj, e outra em torno de Marco Antonio da chama de “dissonância”, para dar conta de processos plurais e complexos Silva Mello e de Roberto Kant de Lima, na UFF – todos do grande Rio. de socialização, seria melhor qualificado no Brasil como “harmonia”, Enquanto Machado da Silva (2008) desenvolveu a ideia boltanskiana do sintetizando os ecos de uma sociedade intrinsecamente plural. regime de violência na sua análise da “sociabilidade violenta” em fave- Em conclusão, queríamos ressaltar que este livro não consiste, de las cariocas, Mello e Kant de Lima (2010) se voltaram mais para uma forma nenhuma, em mais um exercício de sociologia da revelação que discussão comparativa entre Brasil e França, mais preocupada com os consistiria em expandir para outros horizontes conceitos forjados em diversos regimes de engajamento existentes em sociedades plurais. epicentros quaisquer. As três abordagens aqui apresentadas de forma crí- A segunda geração, mais jovem, parece ainda mais fiel e próxima tica são perspectivas envolventes e totalizantes que podem tanto esclare- ao pragmatismo francês e aplica os conceitos e preceitos na investigação cer quanto assombrar a realidade empírica. Seu teor heurístico ainda tem minuciosa de várias situações de ação. Orientanda de Machado da Silva que ser demostrado. Um bom artesão sabe não somente quando utilizar no antigo Iuperj, Jussara Freire defendeu uma tese pioneira sobre os as suas chaves, mas também quando deixá-las guardadas na caixa. “Sensos do justo e problemas públicos em Nova Iguaçu” (2005). Fábio Reis Mota é outro autor que merece ser destacado. Sob a orientação de a recepção no brasil Kant de Lima, ele defendeu uma tese sobre as “demandas de direitos e reconhecimento no Brasil e na França” (2009). Alexandre Werneck é Vamos agora, rapidamente, apresentar os três sociólogos, na ordem certamente um dos expoentes dessa nova geração. No seu livro (2013) invertida da sua visita ao país.2 Dos três, Luc Boltanski é, sem dúvida, o e também no artigo que publicamos no presente livro, ele investiga as mais famoso e conhecido. Dois dos seus artigos sobre os usos sociais do condições de felicidade nas quais “o ato de dar uma desculpa” pode corpo, escritos na época de intensa colaboração com Pierre Bourdieu, ser considerado como legítimo. Por fim, a dissertação de Rodrigo de foram publicados aqui, no livro As classes sociais e o corpo (1989). Ainda Castro sobre as “formas de engajamento” revolucionário existentes no que De la justification (1991), obra “exemplar” (no sentido de Kuhn) do Movimento Sem-Terra, defendida em 2010, não pode deixar de ser pragmatismo francês, escrita com Laurent Thévenot, não esteja disponível mencionada como um trabalho exemplar dessa segunda geração. em português, “A sociologia da capacidade critica” (BOLTANSKI; Até hoje, nenhum dos livros de Bhaskar ou de Margaret Archer THÉVENOT, 2007), um artigo de síntese dirigido ao público anglo-saxão, foram traduzidos para o português. No Brasil, a recepção e assimila- foi traduzido e publicado no Brasil. O artigo de Boltanski que publicamos ção do realismo crítico tem ocorrido fragmentária, isolada e assiste- neste livro também é um clássico e apresenta de maneira sinóptica a maticamente. O ano de 2009 demarcou simbolicamente uma fronteira passagem de uma sociologia crítica para uma sociologia da crítica. sobre esta área de estudos com a realização da Conferência Interacional de Realismo Crítico na Universidade Federal Fluminense. Na ocasião 2 Lahire frequenta o Brasil anualmente desde 2006. Archer participou das conferências da SBS desta conferência, organizada por economistas marxistas da UFF, Roy no Rio de Janeiro e em Curitiba. Thévenot fez um acordo Capes-Cofecub com os colegas da Bhaskar, Mervyn Hartwig e a própria Margaret Archer, vieram para Universidade Federal Fluminense. Porém, foi só em 2013 que Boltanski visitou o país pela pri- meira vez. o Rio de Janeiro. Antes disso, com a exceção do artigo de síntese de 18 19