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Alegria: a força maior PDF

51 Pages·2000·6.916 MB·Portuguese
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coneXões Clément Rosset CONEXÕES éuma coleção dirigida por Maria Cristina Franco Ferraz e apresenta as seguintes publicações: ADÚVIDA_ Vilém Flusser AmONIN ARTAUD - OArtesão do Corpo Sem Órgãos _ Danie/ Lins PLATÃO - As Artimanhas do Fingimento _Maria Cristina Franco Ferraz Nosso SÉCULOXXI - Notas sobre arte, técnica epoderes _ lanice Caiafa DIFERENÇA ENEGAÇÃONAPOESIADEFERNANDO PESSOA _ JoséGil PARAUMAPOÚI1CADAAMIZADE- Arendt, Derrída, Foucault _FranciscoOrtega ALEGRIA: A FORÇA MAIOR ENTRE CUIDADOESABERDESI- Sobre Foucault eapsicanálise _ IoelBirman ALEGRIA: AFORÇAMAIOR_ Clément Rosset CREPÚSCULO DOStooios (ou como filosofar com omartelo) _ Friedrich Nietzsche VERTIGENS PÓS-MODERNAS - Configurações institucionais contemporâneas _ Luís Fridman NIETZSCHE - METAFÍSICA ENIILISMO _Martin Heidegger Tradução Eloisa Araújo Ribeiro ESTELIVRO,PUBLICADONOÂMBITODOPROGRAMADEPARTICIPAÇÃO ÀPUBLICAÇÃO, CONTOUCOMOAPOIO DOMiNIsTÉRIO FRANCÊS DAS RELUME ~ DUMARÁ RELAÇÕES EXTERIORES,DAEMBAIXADA DAFRANÇA NOBRASILEDA Rio de Janeiro MAISON DEFRANCE DORio DEJANEIRO 2000 ________ cone)<'ões-------- Título original: Laforce majeure ©Copyright -Éditions de Minuit ©2000- Copyright da tradução, com SUMÁRIO osdireitos cedidos para esta edição à DUMARADISTRIBUIDORADEPUBUCAÇÕESLIDA. www.relumedumara.com.br Travessa Juraci, 37- Penha Circular 21020-220- RiodeJaneiro, RJ Tel.:(21)5646869- Fax:(21)5900135 E-mail: [email protected] Revisão Mariflor Rocha Editoração Aforça maior 7 Dilmo Milheiros Capa Sobre Nietzsche 31 Simone Villas Boas Prólogo ············31 Beatitude e sofrimento 35 Obra publicada com oapoio do Ministério da Nietzsche eamúsica 44 Cultura da França A alegria musical 51 Superfície eprofundidade 58 CIP-Brasil.Catalogação-na-fonte. A gaia ciência 65 Sindicato Nacional dosEditores deLivros,RJ. Nietzsche eamoral 72 R74a Rosset,Clément O eterno retorno 81 Alegria: aforça maior/Clément Rosset; tradução Eloisa Araújo Ribeiro.-RiodeJaneiro: Relume Dumará, 2000 -(Conexões; 9) Post-scriptum: O descontentamento de Cioran 95 Tradução de:Laforcemajeure ISBN978-S5-7316-218-9 1.Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900.Alegria. I.Títu- lo.II.Série. 00-1059 CDD193 CDU1(43) Todos osdireitos reservados. Areprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio,sejaelatotalouparcial, constituiviolaçãodaLein°5.988. --------coneXões-------- A FORÇA MAIOR Os deuses ocultaram oque faz viver oshomens. Hesíodo, Os trabalhos eos dias Uma das marcas mais seguras da alegria é,para empregar um qualitativo com ressonâncias desagradáveis sob vários aspectos, seu caráter totalitário. O regime da alegria é o do tudo ou nada: não há alegria senão total ou nula (e acres- centarei, antecipando o que virá a seguir, que só há alegria a um só tempo total e de certo modo nula). Certamente, o homem alegre alegra-se com isso ou com aquilo em parti- cular; mas ao interrogá-Io mais, descobre-se rapidamente que alegra-se, também, com outro isso e com outro aquilo, eainda com essa eaquela outra coisa, eassim por diante ao infinito. Seu regozijo não é particular, mas geral: ele fica "alegre com todas as alegrias" ommíbus laetítiís laetum, como diz um amante em êxtase, numa peça, parcialmente citada por Cícero, do dramaturgo latino, Trabea. Dito penetrante, ainda que se ignore tudo do contexto em que se situa. O que ele sugere pode ser enunciado mais ou menos assim: há na alegria um mecanismo aprovador que tende air além do objeto particular que a suscitou, para afetar indiferente- mente qualquer objeto echegar auma afirmação do caráter jubiloso da existência em geral. Assim, a alegria aparece como uma espécie de quitação cega concedida atoda equal- 8 ÜÉMENT Rosssr ALEGRIA: AFORÇA MAIOR 9 quer coisa, como uma aprovação incondicional de toda for- à sua própria condenação à morte e continuar a exibir-se ma de existência presente, passada ou por vir. como senada houvesse, um pouco àmaneira daqueles ver- Conseqüência curiosa desse totalitarismo: ohomem ver- mes que, embora partidos em dois ou quatro, continuam a dadeiramente alegre pode ser reconhecido, paradoxalmen- remexer-se e aprosseguir rumo a seu cego objetivo, ou da- te, por sua incapacidade de precisar com oque fica alegre e quele mandarim maravilhoso, musicado por Bela Bartok, de fornecer o motivo próprio de sua satisfação. Pois sobre que nenhuma punhalada consegue abater. Essa insistência isso teria coisas demais a dizer em geral, mas nada encon- da alegria revela uma desproporção, radical e característi- trando para alegar em particular. Coisas demais a dizer: ca, entre todo regozijo profundo e o objeto particular que o quando tivesse exaltado o mérito dos diferentes vinhos de ocasiona ou, mais precisamente, serve-lhe de pretexto. As- França - euma vida inteira não bastaria para completar esse sim, a alegria sempre constitui uma espécie de "a mais", ou curto capítulo -, das paisagens gregas ou italianas, da ma- seja, um efeito suplementar e desproporcionado à sua pró- nhã ou do anoitecer, restar-lhe-ia ainda tudo a dizer do pria causa, que vêm multiplicar pelo infinito essa ou aquela charme da existência; tudo ou quase tudo, digamos, o infi- satisfação relativa aum motivo determinado. Eéesse amais nito menos uma ou duas unidades. Mas também não teria que, precisamente, ohomem alegre é incapaz de explicar e o bastante a dizer, pois sua alegria não pode valer-se de mesmo de exprimir. Pois do mesmo modo epelas mesmas nenhum fato preciso, por um lado devido ao princípio que razões que ahipótese do Um, tal como Platão a disseca em proíbe a um elogio geral apoiar-se em um único fato, por Parmênides, a alegria é uma hipótese inexprimível: sendo outro, pela simples razão de não haver, de todo modo, ne- forçoso dizer sobre ela, a um só tempo, tudo - o que é im- nhum objeto do qual ela possa valer-se, este cedendo, inva- possível (e contraditório no caso do Um) - e nada, o que riavelmente, aoefeito corrosivo de análise eda reflexão. Não leva a situar a alegria à margem, quando não à parte de há nenhum bem do mundo que um exame lúcido não faça qualquer coisa existente e dizível (exatamente como o Um, aparecer, em definitivo, como derrisório eindigno de aten- de acordo com aprimeira hipótese de Parmênides, se encon- ção, mesmo que seja simplesmente por sua constituição frá- tra separado do ser). Perdida entre o demais e o pouco de- gil, quero dizer, por sua posição a um só tempo efêmera e mais a dizer, a aprovação da vida permanece para sempre minúscula na infinidade do tempo e do espaço. O estranho indizível. Toda tentativa visando exprimi-Ia dissolve-se, é que, entretanto, a alegria permanece, embora suspensa necessariamente, em um balbucio mais ou menos inaudí- em nada eprivada de qualquer base. Eéesse oextraordiná- vel e ininteligível. rio privilégio da alegria: essa aptidão para perseverar quan- Imediatamente se notará - e é esta a primeira das três do sua causa éouvida econdenada, essa arte quase femini- objeções às quais gostaria de responder antes de continuar na de não se render àrazão alguma, de ignorar alegremen- - que esse tipo de "vago n'alma" da alegria, assim definida, te tanto aadversidade mais manifesta quanto a contradição corresponde literalmente a seu exato contrário: o vago mais flagrante. Pois a alegria, tal qual a feminilidade, per- n'alma romântico, que tende à melancolia e à tristeza. Não manece indiferente a qualquer objeção. Uma faculdade de bastaria protestar aqui que são duas disposições de espírito persistência incompreensível permite à alegria sobreviver diferentes ediametralmente opostas, pois asemelhança for- 10 11 CLÉMENT ROSSET ALEGRIA: AFORÇA MAIOR mal é tão evidente que chama a atenção: exatamente como vos de tristeza e desencorajamento. "Respirar somente, era ohomem alegre éincapaz de dizer omotivo de sua alegria uma fruição, e eu extraía um prazer positivo até mesmo de e a natureza daquilo que o enleva, o melancólico não sabe várias fontes bastantes plausíveis de pena", escreve Edgar precisar o motivo de sua tristeza nem a natureza daquilo A.Poe, em Ohomem dasmultidões. Encontramos outro exem- que lhe falta, exceto que sua melancolia, repetindo plo surpreendente dessa euforia contraditória em uma lem- Baudelaire, é sem fundo e o que lhe falta não figura no re- brança de infância de Michelet: "Recordo-me que em meu gistro das coisas existentes. Mas se o mundo em seu con- consumado infortúnio, privações do presente, receios do junto étão indescritível quanto o conjunto das coisas situa- futuro, oinimigo adois passos (1814!),emeus próprios ini- das fora do mundo, anywhere out of the world, como diz migos diariamente zombando de mim, um dia, em uma Baudelaire, ele não deixa também de se diferenciar deste quinta-feira, encolhido, sem fogo (a neve cobria tudo), não por uma característica maior, que é,naturalmente, sua exis- tendo certeza seopão chegaria àtarde, tudo parecendo aca- tência. Daí a diferença fundamental entre ovago romântico bado para mim - experimentei, sem mescla alguma de es- eovago alegre: oprimeiro falha na descrição do que não é, perança religiosa, um puro sentimento estóico -, eu bati com o segundo ao passar em revista o que é.Em outros termos, minha mão, rachada pelo frio, sobre minha mesa de carva- a alegria tem sempre contas a acertar com oreal, enquanto lho (que sempre conservei), e senti uma alegria viril de ju- que atristeza debate-se sem descanso - eéessa sua própria ventude e de futuro." Tais textos lembram que a alegria, infelicidade - com o irreal. Montherland ilustra muito bem como a rosa de que fala Angelus Silesius em Le pêlerin essa verdade primeira quando escreve, em Pitié pour les chérubinique, pode, em certo momento, dispensar qualquer femmes: "Veja você, só há uma maneira de amar as mulhe- razão de ser. Sugerem também que talvez seja na situa- res, com amor. (...)Todo o resto, amizade, estima, simpatia ção mais adversa, na ausência de qualquer motivo racional intelectual, sem amor, éum fantasma, eum fantasma cruel, de regozijo, que a essência da alegria se deixará melhor pois os cruéis são os fantasmas: com as realidades pode-se apreender. sempre se arrumar." Resta, naturalmente, que a alegria habitual está no mais Segunda objeção: tal como habitualmente considerada, das vezes, ligada a uma causa, a um motivo de satisfação. a alegria não consiste em um regozijo desprovido de moti- Sobre esse ponto basta consultar o Auriga de Delfos e seu vo eque funciona, de certo modo, "no vazio"; mas na satis- misterioso meio-sorriso, ainda mais jubiloso que uma ale- fação de uma espera precisa, na obtenção de um objeto co- gria franca e notória: não darei muita importância a isso, biçado edefinido. Como sepoderia ficar contente com nada, parece pensar, mas de fato não estou descontente por ter alegre com coisa nenhuma? Notemos, porém, que tal caso, ganhado. Esse regozijo contido é a marca comum de toda por mais raro e extraordinário que possa parecer, está lon- alegria motivada, certa de um triunfo indiscutível, mas tam- ge de não ter exemplos: há acessos de alegria independen- bém preciso e particular. No entanto, se é certo que um tes de qualquer causa, ímpetos de euforia perfeitamente motivo de satisfação pode provocar a alegria, como uma incompatíveis com o pensamento consciente, quando este ocasião pode fazer um ladrão, conforme o ditado popular, só encontra, para decifrar em seu horóscopo pessoal, moti- daí não resulta, necessariamente, que a alegria, assim obti- I ,~ 12 13 CLÉMENT ROSSET ALEGRIA: AFORÇA MAIOR da, se esgote na feliz circunstância que aprovocou. Pois, no dem, quando a ocasião se oferece, fazê-Ia eclodir -, a ale- caso, a causa é inferior ao efeito que ela suscita: um pouco gria aparece sempre como uma maneira de gratificação, e como nas brigas de família, em que as razões confessadas até mesmo como osuplemento de felicidade, do qual fala o de hostilidade, que provocam uma crise, por exemplo, uma Evangelho, a propósito das alegrias terrestres concedidas contestação de herança, põem apenas às claras um acúmulo como prêmio àqueles que astenham desdenhado para apos- de ódio que preexiste ao afrontamento direto e,sem oqual, tar tudo no além: "Todo o resto te será dado por acrésci- preservada pelas gentilezas e pelos protestos de amizade, mo", terás ao mesmo tempo o céu e aterra. No que me diz continuaria a existir. Diz-se então comumente: passaram a respeito, contentar-me-ei aqui em observar, que há na ex- se detestar por questões de dinheiro; mas averdade é ain- periência da alegria alguma coisa que ultrapassa todas as versa: passaram a brigar por questões de dinheiro, porque considerações que dela pretendessem dar conta, privile- se detestavam. Não é oproblema de dinheiro que provoca giando apenas seu "conteúdo". Nenhum objeto poderia, ~or oódio, mas oódio que provoca oproblema de dinheiro. Do si só, alegrar, ou melhor, certamente acontece a um objeto mesmo modo oacúmulo de amor em que consiste a alegria alegrar, mas a sina paradoxal de tal objeto ea de dar então é,no fundo, alheio atodas as causas que oprovocam, mes- mais do que, efetivamente, ele tem para dar, mais do que mo se lhe acontece de só se tornar manifesto por ocasião ele possui "objetivamente". Diz-se que a mulher mais bela dessa ou daquela satisfação particular, Por isso pode-se fa- do mundo não pode dar senão o que tem, entendendo com lar aqui, embora a expressão pareça ferir a lógica, de causa isso que é inútil esperar da realidade mais do que ela po~e inferior a seu efeito: a causa sendo, se se pode dizer, não dar. Ditado seguramente justo, mas só até certo ponto; pOlS produtora mas mera reveladora de um "efeito", ou melhor, , desmentido pela alegria que realiza, cotidianamente, essa de um fato aelapreexistente. Éinevitável aceitar, sobre esse performance aparentemente impossível: não que ela peça à ponto, o que diz Espinoza na Ética: a única afeição é a ale- realidade mais do que esta pode oferecer, e sim por obter gria (eseu contrário, atristeza); qualquer outra afeição não mais mãos do que podia racionalmente esperar dela. Para é mais que uma modificação dessa afeição primeira, por- ilustrar este ponto, invocarei mais uma vez a figura enig- quanto esta está submetida às eventualidades do acaso eda mática do Auriga de Delfos, vencedor da corrida de carros sorte. Assim o amor por uma pessoa, que Espinoza define dos jogos píticos. Seu sorriso éeloqüente, mas também bas- como uma simples interferência da alegria e do outro: "o tante complexo: há nele, seguramente, muita felicidade, mas, amor éa alegria acompanhada da idéia de uma causa exte- ao mesmo tempo, há qualquer coisa de contido e de come- rior". Do mesmo modo, como se sabe, o ódio é a tristeza dido na expressão que reflete outra coisa além do mero pra- acompanhada da idéia de uma causa exterior. zer de ter ganhado. Pode-se, naturalmente, interpretar essa Desse modo, a alegria aparece como independente de reserva de várias maneiras. Interpretação psicológica, au- qualquer circunstância própria aprovocá-Ia (como também tomática mas pouco convincente: trata-se de um jovem bem é independente de qualquer circunstância própria a I ducado, que tem o pudor de minimizar seu triunfo, tanto contrariá-Ia). Com relação a qualquer motivo de satisfação, aos olhos do público, que assim ficará ainda mais admira- - inclusive, mais uma vez, o conjunto de motivos que po- do com o vencedor, quanto diante dos vencidos, cujo des- L 14 CLÉMENT ROSSET 15 ALEGRIA: AFORÇA MAIOR peito, aliás, ele assim aumentará. Interpretação hegeliana: diametralmente opostas asque eu mesmo tiro - discerniram a serenidade grega jamais atinge a perfeita satisfação, sen- profundamente na alegria sexual um regozijo que excede tindo sempre uma nostalgia secreta por dever se contentar em todos os sentidos os interesses do indivíduo, da pessoa com seu próprio "ser-aí", o qual se mostra impotente a ter tanto moral quanto física: com isso, aprimeira sempre per- totalmente a seu encargo, segundo Hegel, os destinos espi- deu e a segundo nunca ganhou nada. Assim, a alegria se- rituais do homem. No que me conceme, optarei por uma xual é um efeito que escapa à sua causa, um benefício que interpretação bem diferente, do sorriso do Auriga: vendo escapa aseu suposto beneficiário. Daí uma eventual desilu- nele agravidade própria da alegria, talcomo, muitas vezes, a são por parte daquele que nela seinvestiu: desilusão de não escultura grega clássica a exprimiu; e mais particularmente, ganhar nada com isso. Mas também um júbilo supremo de no caso do Auriga, a emoção de um homem que, tendo se encontrar muito mais do que investira. Podemos aqui nos preparado à eventualidade de certa felicidade, encontra-se valer da experiência mais comum: o prazer sexual sempre subitamente confrontado a algo muito diferente e também revela uma defasagem notável entre o prazer esperado e o mais intenso. Não somente sua satisfação não é imperfeita, prazer obtido; defasagem inscrita, aliás, na linguagem cor- como elaganha, emperfeição, de qualquer previsão. Eudiria rente que declara de bom grado ejustamente, que oprazer de bom grado que o cinzel do escultor captou o olhar do sexual transporta, quer dizer, efetua um "transporte", um Auriga no instante preciso em que este deixa de pensar na deslocamento. Ao gozo esperado se substitui um gozo não felicidade de ter ganhado, para pensar em algo bem dife- somente mais intenso, mas também e sobretudo, de outra rente: na alegria geral que consiste em viver, lembrando-se ordem; pois não é mais um certo corpo que aparece então que o mundo existe e que se faz parte dele. como fonte de gozo, e sim, indistintamente, todos os cor- Essa passagem do particular ao geral, de uma felicidade pos, e mesmo o fato da existência em geral, subitamente simples auma espécie de bem-estar cósmico, émuito sensí- sentida como universalmente desejável. O que se realiza no vel naquilo que, por excelência, é o regozijo das espécies momento do orgasmo pode ser descrito como uma passa- vivas: a sexualidade. No caso do prazer sexual, ena alegria gem do singular ao geral, passagem da busca de um prazer dele indiscernível, torna-se manifesto - embora esta obser- particular para a obtenção de um gozo, se não universal, vação valha para toda forma de regozijo, ainda que talvez pelo menos sentido como tal. E é sabido que, no fundo, há em um grau menor - que oprazer não se esgota no benefí- pouca coisa de um aoutro, pois oprazer sexual, exatamente cio que dele retiram seus protagonistas, nem mesmo seu como oprazer estético - talcomo Kant oanalisa na Crítica do único herói, em se tratando de prazer solitário. Há sempre juízo - ecomo, aliás, oprazer tido com qualquer coisa, impli- uma terceira instância sobre quem essa alegria recai: não ca opensamento de uma pretensão legítima aum reconheci- somente o interesse da espécie, ligado a certas condições mento universal, mesmo seessa unanimidade não tenha qual- favoráveis de acasalamento, mas também o interesse geral quer chance de um dia se realizar concretamente. da existência, tal como oprazer sexual o sente, em todas as O que digo do regozijo sexual se aplica apenas, é óbvio, suas formas. Georges Bataille, e antes dele Schopenhauer - aos casos de orgasmo consumado e "bem-sucedido". Pois se bem que cada um deles tira desse fato conseqüências freqüentemente acontece, como todos sabem, de o prazer 16 CLÉMENT ROSSET 17 ÁLEGRIA: AFORÇA MAIOR sexual, longe de conduzir a um regozijo geral, ser, ao con- ta,embora há dois séculos apresentado como eminentemen- trário, sentido como decepcionante e levar àquela tristeza teliberal eprogressista, segundo o qual os homens são "se- característica, que o adágio latino testemunha e segundo o melhantes" uns aos outros. Nada mais desagradável, com qual, todo animal acabrunha-se com arealização do ato se- efeito, nem, aliás, mais perigoso para aqueles que são seus xual: post coiium omne animal triste. Esse acabrunhamento se aparentes beneficiários, do que esta confissão de similitude toma possível pelo fato de'a consumação sexual não trazer ede fraternidade universais: pois, de que esse homem deva automaticamente consigo aconsumação da sexualidade, no ser considerado meu semelhante, segue-se, necessariamen- sentido mais amplo emais exultante do termo. O orgasmo te, que ele deva pensar o que eu penso, achar bom o que em si é somente uma condição necessária, mas não sufi- acho bom; e se ele se recusa, farão com que osaiba à força. ciente, da alegria sexual. Por isso Freud tem razão de sem- Por isso ofato de reconhecer no outro seu semelhante cons- pre distinguir entre sexualidade e ato sexual, como no arti- titui sempre menos um favor do que uma coação e uma go de 1910:"Usamos apalavra 'sexualidade' no mesmo sen- violência. Por isso também, qualquer manifestação de tido compreensivo que aquele em que alíngua alemã usa a humanismo é virtualmente terrorista; como a Declaração palavra lieben [amar]. Sabemos há muito tempo, também, dos Direitos do Homem e outros Princípios Imortais que que a ausência de satisfação psíquica, com todas as suas tiveram o campo livre, desde que foram proclamados, para conseqüências, pode existir mesmo quando não há falta de demonstrar que, se não eram, talvez, com o correr do tem- relações sexuais normais. Ecomo terapeutas devemos sem- po, imortais, podiam pelo menos se revelar, quando usa- pre ter em mente que as tendências sexuais insatisfeitas dos, ena falta de coisa melhor, um tanto homicidas. Mas é (cujas satisfações substitutivas na forma de sintomas ner- evidente que esse vício inerente ao totalitarismo, em todas vosos nós combatemos) podem amiúde encontrar apenas as suas formas, é completamente alheio à generalidade da uma derivação muito inadequada no coito ou outros atos alegria. O que distingue, em profundidade, o totalitarismo sexuais." comum do "totalitarismo" da alegria é que o primeiro, di- Uma terceira objeção, aparentemente mais preocupante ferentemente da alegria, que se contenta com sua própria do que as duas precedentes, pode ser feita à definição da faculdade aprovadora, existe apenas sob a condição e pelo alegria como regozijo universal: a idéia mesma de passa- requerimento de uma incessante aprovação por parte do gem ao universal sendo por essência suspeita; pois outro. Esta diferença se explica, essencialmente, pelo fato assimilável ao processo de fanatismo e de proselitismo, se- de que acrença defendida pelo totalitarismo é,ao contrário gundo oqual uma crença só éreivindicada pelo fiel se está, da alegria, nela mesma, bem pouco consistente. O objeto segundo ele, em estado de coagir, num único lance, o con- extremamente vago ao qual ela adere com todas as suas for- junto dos homens. Que um sentimento qualquer só possa ças, não pode ter consistência séria senão pelo intermédio ser validado por aquele que osente com acondição de inte- de um assentimento geral, ou tido como tal, o único que ressar, quer queira quer não, todos os que não o sentem, é pode dar a ela uma aparência de credibilidade, para não esta, é sabido, a eterna regra do fanatismo; fanatismo que dizer uma aparência de existência; e justamente por isso se nutre, nota-se, do pensamento eminentemente terroris- que o totalitarismo não recua diante de meio algum para 18 CLÉMENT ROSSET 19 ÁI.EGRIA: AFORÇA MAIOR forçar esse assentimento: este sendo para ele, estritamente tiram, desde sempre, como verdadeira, apóia-se no pensa- falando, uma questão de vida ou morte, ainstância que deve mente que não há nenhum objeto existente que possa ser decidir, em definitivo, de seu ser ou de seu não-ser. O que o onsiderado "objetivamente" desejável, como foiacima lem- totalitarismo espera do veredicto popular é, deste modo, brado. A conseqüência disto parece ser que aalegria, se ela menos um testemunho de verdade do que um testemunho nãoconsiste num regozijo ilusório elogo contradito por seu de existência - portanto, não somente uma fórmula do gê- próprio objeto, só poderia consistir numa experiência de nero: já que todo mundo acredita nisso, é porque é verda- ordem mística ou metafísica que, aliás, determinado teólo- de; mas também e mais profundamente: já que todo mun- go ou filósofo descreveu muito bem, como Pascal ou do acredita nisso, éporque aquilo em que eu acredito éal- Heidegger, ou ainda Platão, em Fédon, assimilando o grito guma coisa. Em suma, a doutrina da qual se vale o totalita- do cisne agonizante a um canto de alegria e de libertação. rismo é como um espaço vazio que somente um reconheci- Muito geralmente, tal alegria aparece como uma escapató- mento geral, nunca perfeitamente realizado, por parte de riaaopresente emprol deuma "presença" permanente, uma outrem, pode preencher e "mobiliar": enquanto a alegria é escapatória à existência fugidia em prol de um ser eterno. um pleno que basta a si mesmo e não precisa para ser de O que se pode dizer aqui, não contra essa tese, cuja perti- nenhuma contribuição exterior. nência não posso discutir, mas em favor da alegria de viver Uma última observação antes de chegar à questão mais e de sua própria pertinência, se resume a dois grandes ti- crucial: a alegria, aqui tratada, não se distingue, de modo pos de argumento, sendo que o primeiro, correntemente algum, da alegria de viver, do simples prazer de existir enunciado, aparece bastante especioso, enquanto que o se- (mesmo se a análise deste revela nele um regozijo bastante gundo, que se ouve formular com menos freqüência, apa- complexo: um prazer tido mais com ofato de que haja exis- rece muito sólido eaté mesmo decisivo. Primeiro argumen- tência em geral, do que com ofato de sua existência pessoal). to:a alegria de viver consiste em uma acomodação à vida, Há decerto nisso uma confusão, mas uma confusão volun- pela qual ela renuncia a qualquer pretensão de duração em tária edeliberada, fundada na idéia que não há, efetivamen- contrapartida das alegrias efêmeras que pode obter da exis- te, diferença alguma entre a alegria e a alegria de viver, e tência. Ela é,portanto, apenas um sucedâneo da verdadeira mesmo que não existe sinal mais certo da alegria que o de alegria: exatamente como o amor dos corpos, se se acredita ela coincidir com a alegria de viver. Sabe-se que uma longa em Platão, no Banquete, é apenas um sucedâneo do simples tradição filosófica, de Platão a Heidegger, decidiu de outro amor; eaperpetuação da espécie humana, que ele autoriza, modo sobre este ponto, considerando, ao contrário, que não apenas um tipo de imortalidade barata, um sucedâneo da há alegria verdadeiramente acessível ao homem senão atra- eternidade do ser. Percebe-se imediatamente a fraqueza vés de um "ultrapassamento" da simples alegria de viver e deste argumento em favor da alegria de viver: já que este, de um distanciamento em relação a qualquer objeto situa- compondo, em suma, com o adversário, a ponto de admi- do na existência, por mais regozijador que ele possa ser. tir, logo de saída, todas as suas conclusões, situa a alegria Essa tese, da qual seria ridículo dizer que éerrada, simples- de viver no registro da resignação e na falta de coisa me- mente devido ao número eaqualidade daqueles que asen- lhor. Argumento, portanto, inaceitável, para não dizer sui- 20 21 CLÉMENT ROSSET ALEGRIA: AFORÇA MAIOR cida; mas também, argumento falso eque, no mesmo lance, outono. Por isso Ulisses opõe várias vezes, na Odisséia, o entrega, para ser denunciada, a substância do segundo e vigor da existência, fosse ela a mais fugidia e miserável, à único argumento em favor da alegria de viver: pois aanáli- palidez e à inconsistência da imortalidade, fosse ela a mais semostra, claramente, que oque esta menos visa éaestabi- gloriosa; imortalidade que Calypso lhe oferece desde o iní- lidade e a perenidade de um ser imperecível e inalterável. cio da epopéia, mas que ele recusará incessantemente, do Muito pelo contrário: elasótem facilidade em respirar numa mesmo modo que, apenas por cortesia, ele exaltará a imor- existência efêmera, perecível, sempre mutável edesejada como talidade póstuma deAquiles, encontrado casualmente numa tal. Esta facilidade pode, é óbvio, ser considerada parado- visita à terra dos mortos e que o interrompe desde o pri- xal, suspeita até mesmo de exprimir uma espécie de loucu- meiro cumprimento: "Ora não venhas, nobre Ulisses, con- ra heróica ou masoquista. Acredito, entretanto, que não é solar-me da morte, pois preferiria viver empregado em tra- assim, e que a experiência mais corrente da alegria teste- balhos do .campo sob um senhor sem recursos, ou mesmo munha em favor desse regozijo habitual ebem terrestre. O de parcos haveres, a dominar deste modo nos mortos aqui sabor da existência éodo tempo que passa emuda, do não- consumidos." - Em suma: o simples fato de viver épor ele fixo, do jamais certo nem acabado; aliás, a melhor e mais mesmo recusa erefutação do ser ede seus atributos ontoló- certa "permanência" da vida consiste nessa mobilidade. Ter gicos, imortalidade ou eternidade. Mas, dessa incompatibi- gosto por isso implica, necessariamente, se ficar alegre, pre- lidade entre avida eo ser, não se segue, naturalmente, que cisamente, com o fato de ela ser por essência, indistinta- a alegria de viver se confunde com a alegria. Para chegar a mente, perecível e renovável, e de modo algum deplorar esta equação final, preciso acrescentar este terceiro argu- uma ausência de estabilidade e de perenidade. O charme mento, tirado de Espinoza, que há mais "perfeição" - ou do outono, por exemplo, se deve menos ao fato de ele ser seja,mais realidade - na alegria de viver do que na simples outono do que ao fato de ele modificar overão antes de ser, alegria (considerando esta como visada ou visão de um por sua vez, modificado pelo inverno; eseu ser próprio con- ser que excede toda forma de existência): aprimeira sendo siste, justamente, nessa modificação que ele opera. Vemos atual e completa, a segunda virtual e esperando sua pró- mal, porém, em que poderia consistir o charme do outono pria completude, para não dizer seu próprio conteúdo. Por "em-si", tal como um discípulo de Platão poderia tentar isso toda alegria perfeita consiste, a meu ver, na alegria de imaginar. E acrescentarei a seguinte observação: que um viver e somente nela. outono em-si, de qualquer modo que ofiguremos, seria, em Que a simples existência seja nela mesma uma fonte de primeiro lugar e sobretudo, muito pouco "outonal". Digo regozijo, ainda que, por vezes, ignorada por seus próprios isto para fazer entender que o charme da existência, longe beneficiários, que na hora nele não reparam, é o que teste- de ser apreciado proporcionalmente a uma problemática munha, por outras vias, a observação de um fato muito ba- participação na eternidade, se mede, ao contrário, propor- nal e cotidiano, tão difundido que pode ser considerado cionalmente à sua estranheza ao ser tal como é concebido exemplar. Quero falar do extremo interesse que a maioria pelos ontologistas e metafísicos - exatamente como o ou- dos homens tem pela evocação de suas lembranças, mais tono que só existe, se e somente se, não houver "ser" do precisamente, da preocupação de exatidão que manifestam

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