Dissertação de Mestrado Ainore Boe egore: um estudo descritivo da língua bororo e conseqüências para a teoria de caso e concordância. autor: Rafael Bezerra Nonato orientadora: Maria Filomena Spatti Sandalo agência financiadora: FAPESP IEL - UNICAMP Campinas, 27 de janeiro de 2008 1 Agradecimentos Agradecer deveria antes de tudo ser um ato espontâneo, não uma formalidade. Vou tentar alcançar esse ideal, mas nunca é fácil distinguir a linha tênue entre o falso agradecimento e o esquecimento injusto. Devo começar agradecendo a esse algo que, impossibilitados de definir, os homens vêm tentando agarrar com palavras desde que aprenderam a falar. Numa dissertação de lingüística, talvez caiba a falsa humildade de não lhe pôr nome. Agradeço-lhe por atravessar meus olhos com aquela interessantíssima palavra, “Language”, na capa de um livrinho esquecido na biblioteca do Instituto Tecnológico de Aeronáutica. Foi a leitura dessa pequena grande obra de Edward Sapir que me despertou para uma carreira cuja mera possibilidade eu desconhecia. Como se não bastasse, devo agradecer-lhe por ter cruzado por atalhos tortuosos o meu caminho com o de todas as pessoas sem as quais esse trabalho não existiria. Consigo agora me recordar de apenas algumas delas, e menos em ordem de importância que de lembrança: Os bororo da aldeia de Córrego Grande, que me permitiram entrar nas suas vidas e conhecer suas palavras e, em particular, Dario Brame, que teve a paciência de responder as minhas perguntas infinitas e me ajudou a entender as suas narrativas e as dos anciões José Kadagare, José Upe e Joaquim Cabeça. Os motoristas da FUNASA, Reinaldo e Roberto, que me deram carona de Rondonópolis até a aldeia de Córrego Grande durante todos esses anos. E todo o pessoal da FUNAI, que nunca impôs entraves à minha pesquisa. A minha orientadora Filomena Sandalo e os professores Jairo Nunes, Sonia Cyrino, Andrew Nevins e Cilene Rodrigues, que tantas vezes leram esse trabalho. Devem ter sonhos em que vêem 2 essas palavras coladas no dorso de suas pálpebras. Eles fizeram sugestões valiosas e enriqueceram a mediocridade do meu texto hermitão. Os membros da minha banca, que me deram bastante trabalho de última hora. Luciana Storto descobriu todos os deslizes e incoerências do meu texto. Nunca imaginei que poderia ter cometido tantos erros de concordância e trocas de palavras por antônimos. Bruna Franchetto puxou a minha orelha nas questões etnográficas e Sonia Cyrino sugeriu idéias que para explorar completamente precisaria dobrar o tamanho da dissertação. Os membros da minha família. É truísmo dizer que devo tudo a eles. Sobretudo, sem o ambiente que me deram nos meses de escrita, teriam sido tempos árduos. Os amigos todos, em particular os Sá Moraes, que, no momento da redação das partes finais do texto, me receberam de laptop embaixo do braço em sua casa e me atrapalharam o suficiente para que o solilóquio com a dissertação não se transformasse em solidão. Se fosse obrigado a estar num ambiente silencioso e tranqüilo, não teria sido fácil terminar. Todo o pessoal da FAPESP, CNPq e Foundation for Endangered Languages, que acreditaram no meu projeto e me sustentaram enquanto fazia a pesquisa. E tantos outros que não lembrei agora. Valeu. 3 Resumo A língua bororo tem cerca de 700 falantes, distribuídos em cinco aldeias na região de Rondonópolis, MT. O bororo é a última língua viva da família Bororo (as outras, de acordo com Kaufman (1994) eram o umutina, cujo último falante morreu recentemente, o otuké, e um suposto dialeto chamado bororo ocidental). Essa dissertação começa com uma breve introdução (seção 1) e um sumário das atividades realizadas em campo (seção 2). Em seguida, debruça-se sobre seus dois principais assuntos: na primeira parte (seção 3), é uma gramática descritiva da língua bororo e, na segunda (seção 4), propõe um modelo teórico com base nos dados da língua. Por último, inclui três apêndices: um léxico bororo-português (Apêndice 1), as sentenças elicitadas em trabalho de campo (Apêndice 2) e as narrativas coletadas em campo e analisadas (Apêndice 3). A gramática da seção 3 emprega sobretudo os termos provenientes da tradição gramatical que vem dos gregos. A simbologia da gramática de linha gerativa foi usada somente em alguns pontos que ela permitia apresentar de forma mais elegante e precisa. O modelo apresentado na segunda parte dessa dissertação se baseia na teoria delineada em Chomsky (2000, 2001). Dadas as evidências de que essa teoria não é capaz de explicar os fenômenos de caso, concordância e movimento da língua bororo, são propostas revisões que, em essência, resgatam à sintaxe o movimento dos núcleos verbais (o qual fora relegado ao componente fonológico em Chomsky 2001), ligando-o explicativamente aos fenômenos de caso e concordância e movimento de argumentos. Além de dar conta dos dados de uma língua ergativa ativa como bororo, esse modelo é estendido para outros sistemas de caso e concordância (ergativos e acusativos) e explica a Generalização de Holmberg. 4 Summary Bororo has around 700 speakers, living in five villages in the region of Rondonópolis, MT. It is the last living language of the Bororoan family (the others, according to Kaufman (1994) were Umutina, whose last speaker died recently, Otuké, and a supposed dialect called West Bororo). This dissertation begins with a brief introduction (section 1) and a summary of the activities developed in the field (section 2). After that, it concentrates on its two main subjects: in the first part (section 3), it is a descriptive grammar of Bororo and, in the second (section 4), it proposes a theoretical model based on the data from this language. At last, it includes three appendixes: a Bororo-Portuguese lexicon (Appendix 1), the sentences elicited in the field (Appendix 2) and the stories collected and analyzed (Appendix 3). The grammar in section 3 employs mostly the terms from the grammar tradition that comes from the Greeks. Symbolism of the generative grammar is used only in some parts that it allowed to present in a more elegant a precise way. The model presented in the second part of this dissertation is based on the theory sketched in Chomsky (2000, 2001). Given the evidence that this theory doesn't account for the phenomena of case, agreement and movement of Bororo, some revisions are proposed in order to, essentially, rescue head movement to the syntax (head movement had been left to PF by Chomsky 2001), linking it explicatively to the phenomena of case and agreement and argument movement. Besides accounting for the data of an ergative active language as Bororo, this model is extended to other systems of case and agreement (ergative and accusative alike) and explains Holmberg Generalization. 5 Índice 1 Introdução.........................................................................................................................................................12 2 Trabalho de Campo.........................................................................................................................................15 3 Gramática..........................................................................................................................................................16 3.1 Fonética e fonologia.................................................................................................................................16 3.1.1 Antecedentes bibliográficos............................................................................................................17 3.1.2 Sistema consonantal.........................................................................................................................19 3.1.3 Sistema vocálico................................................................................................................................23 3.1.4 Padrão silábico e acentual do bororo............................................................................................28 3.1.5 Ortografia...........................................................................................................................................31 3.2 Morfossintaxe...........................................................................................................................................34 3.2.1 Classes de palavras...........................................................................................................................34 3.2.2 Morfologia de concordância...........................................................................................................34 3.2.2.1 Alterações morfo-fonológicas.................................................................................................44 3.2.3 Morfossintaxe nominal....................................................................................................................49 3.2.3.1 Classes nominais.......................................................................................................................49 3.2.3.2 Morfologia nominal..................................................................................................................51 3.2.3.2.1 Sufixos.................................................................................................................................51 3.2.3.2.1.1 Plural -doge (e alomorfes)........................................................................................51 3.2.3.2.1.2 Singular -dü................................................................................................................54 3.2.3.2.1.3 Diminutivo -rogu.......................................................................................................54 3.2.3.2.1.4 Feminino -do..............................................................................................................55 6 3.2.3.2.2 Prefixos................................................................................................................................56 3.2.3.3 Modificadores nominais..........................................................................................................57 3.2.3.3.1 Demonstrativos..................................................................................................................59 3.2.3.3.2 Artigo indefinido...............................................................................................................59 3.2.3.3.3 Marcadores de posse alienável.......................................................................................60 3.2.3.3.4 Possuidor inalienável........................................................................................................63 3.2.3.3.5 Qualificativo restritivo.....................................................................................................64 3.2.3.4 Pronomes pessoais....................................................................................................................64 3.2.4 Morfossintaxe verbal.......................................................................................................................67 3.2.4.1 Classes verbais...........................................................................................................................67 3.2.4.2 Morfologia verbal.....................................................................................................................69 3.2.4.2.1 Sufixos.................................................................................................................................69 3.2.4.2.1.1 Detransitivizador –dü...............................................................................................69 3.2.4.2.1.2 Incoativo –gödü.........................................................................................................70 3.2.4.2.1.3 Superlativo -rai..........................................................................................................71 3.2.4.2.2 Prefixos................................................................................................................................71 3.2.4.3 Sujeito..........................................................................................................................................72 3.2.4.4 Objeto..........................................................................................................................................75 3.2.5 Conjunções........................................................................................................................................75 3.2.6 Adjuntos adverbiais.........................................................................................................................77 3.2.6.1 Advérbios...................................................................................................................................78 3.2.6.2 Sintagmas posposicionais........................................................................................................79 3.2.6.2.1 posposição ae (kae) ‘a’......................................................................................................81 7 3.2.6.2.2 posposição ai ‘para’ (benefactivo)..................................................................................83 3.2.6.2.3 posposição apo (tabo) ‘com’............................................................................................84 3.2.6.2.4 posposição bagai ‘propósito'............................................................................................87 3.2.6.2.5 posposição biagai ‘audição’.............................................................................................89 3.2.6.2.6 posposição ce 'transformação'.........................................................................................89 3.2.6.2.7 posposição ji 'tema'...........................................................................................................92 3.2.6.2.8 posposição kajeje ‘ao redor’............................................................................................95 3.2.6.2.9 posposição keje ‘sobre’.....................................................................................................96 3.2.6.2.10 posposição kodi ‘porque’...............................................................................................98 3.2.6.2.11 posposição koia ‘por causa’...........................................................................................99 3.2.6.2.12 posposição kori ‘comparação’.....................................................................................100 3.2.6.2.13 posposição küda ‘debaixo de’.....................................................................................103 3.2.6.2.14 posposição piji ‘de dentro de’.....................................................................................104 3.2.6.2.15 posposição tada ‘dentro’..............................................................................................105 3.2.6.2.16 posposição to ‘em/até em’............................................................................................106 3.2.6.3 Adjunção a nomes..................................................................................................................108 3.3 Sintaxe da oração e do período............................................................................................................109 3.3.1 Oração principal (sujeito, objeto, morfemas TNM, adjuntos, tópico)..................................109 3.3.1.1 Ordem........................................................................................................................................109 3.3.1.2 Morfemas TNM.......................................................................................................................111 3.3.1.2.1 Tempo................................................................................................................................112 3.3.1.2.2 Negação.............................................................................................................................112 3.3.1.2.3 Modo..................................................................................................................................113 8 3.3.1.2.3.1 Modo assertivo.........................................................................................................113 3.3.1.2.3.2 Modo reportativo.....................................................................................................114 3.3.1.2.3.3 Modo desiderativo...................................................................................................116 3.3.1.2.3.4 Modo infinitivo........................................................................................................117 3.3.1.3 Verbos leves.............................................................................................................................118 3.3.1.3.1 Causativo dö.....................................................................................................................118 3.3.1.3.2 Marcador de aspecto progressivo nu...........................................................................123 3.3.1.3.3 Marcador de aspecto habitual kigodü.........................................................................125 3.3.1.4 Verbos estativos......................................................................................................................127 3.3.1.4.1 Negação enfática bokwa................................................................................................131 3.3.1.5 Reduplicação verbal................................................................................................................134 3.3.1.6 Deslocamento..........................................................................................................................135 3.3.1.6.1 Formação de perguntas..................................................................................................135 3.3.1.6.2 Topicalização....................................................................................................................142 3.3.2 Oração subordinada.......................................................................................................................144 3.3.2.1 Oração relativa........................................................................................................................144 3.3.2.2 Oração subordinada nominal...............................................................................................147 3.3.2.2.1 Oração subordinada nominal diminuída....................................................................148 3.3.2.3 Argumento sentencial............................................................................................................150 3.3.3 Oração existencial e cópula..........................................................................................................152 3.3.4 Coordenação....................................................................................................................................155 4 Caso, movimento e concordância...............................................................................................................157 4.1 Resenha teórica.......................................................................................................................................157 9 4.1.1 Teorias da Ergatividade................................................................................................................158 4.1.1.1 Bittner & Hale (1996).............................................................................................................158 4.1.1.2 Bobaljik (1993).........................................................................................................................160 4.1.1.3 Woolford (1997).......................................................................................................................161 4.1.1.4 Legate (2006)............................................................................................................................162 4.1.1.5 Minha teoria.............................................................................................................................163 4.1.2 Uma tipologia das teorias de ergatividade................................................................................164 4.2 Teoria geral de caso, concordância e movimento............................................................................165 4.2.1 Introdução........................................................................................................................................165 4.2.2 Os dados de bororo.........................................................................................................................167 4.2.2.1 Verbos Intransitivos...............................................................................................................167 4.2.2.2 Verbos Transitivos..................................................................................................................168 4.2.2.3 A estrutura frasal das orações intransitivas......................................................................170 4.2.2.3.1 Teste de Inacusatividade................................................................................................170 4.2.2.3.2 Contra uma determinação semântica tendenciosa dos verbos inacusativos.......174 4.2.2.3.3 E... os verbos inergativos?.............................................................................................177 4.2.3 A Análise Sintática.........................................................................................................................179 4.2.3.1 Sentenças Intransitivas Inacusativas..................................................................................179 4.2.3.2 Sentenças Transitivas e Inergativas....................................................................................180 4.2.3.3 Um modelamento baseado em affix hopping....................................................................181 4.2.4 Qual é o tipo de sistema de caso do bororo?.............................................................................185 4.2.5 A explicação do MIDP...................................................................................................................188 4.2.6 Como dar conta do movimento verbal.......................................................................................191 10