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A Teia do Fato: Uma proposta de estudo sobre a memória histórica PDF

106 Pages·1997·20.462 MB·Portuguese
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Carlos Alberto Vesentini c .4-J c A TEIA DO FATO Q) V) ~ ê Q) ..0 Acervo Projeto Memória • FFLCH/CAPH <( Carlos Alberto Vesentini foi professor de História da rede oV) estadual de ensino em São Paulo e do Departamento de "'C História da FFLCH da USP, no período de 1976 (Instrutor ro u Voluntário) a 1990, ano de· sua morte. Foi um intelectual rebelde que questionou as assertivas dos procedimentos pedagógicos e do conhecimento histórico. Escreveu A Revo ~ lução do Vencedor, em colaboração com Edgard De Decca, A Figuração Recorrente, em 1977, O Problema do Sujeito Polí ~ tico, em 1978 (inédito) e Maria Quitéria de Jesus: História e o Cinema, que se transformou em roteiro para um filme his tórico. Guardou grande parte de seus esforços acadêmi o cos para os temas referentes aos currículos de história e à análise da prática do professor: <( EDITORA HUCITEC ISBN 85·271·0391·5 EDITORA HUCITEC ,9 u s HISTÓRIA SOCIAL USP HISTÓRIA SOCIAL p CARLOS ALBERTO VESENTINI UN;vsRSJ0.·\08 osSAo l)·.tLO Reitor: Prof. Or. Flávio Fava de Moraes Vice-ReitOr<l: Profa . Ora. Myria,m )({asilchik fACULDADB DE" fiLOSOFIA, lETRAS. I! CU~''CJASHIJMA.NAS Dire-tor: Prof. Dr. Joao Baptista Borg~ PE,!teira Vicc·Diretor: Prof. Dr. Frtancis H~nrik Au~rt Dt:.rARTAMEil\'TO Ofl HISTÓRIA A TEIA DO FATO Chefe: Profa. Ora. Maria Lígia Coelho Prado Vice-Chefe: P·rofa. Dra. Ilana Blaj Uma proposta de estudo PROGM.'IA DE Pós·GRAOUAÇAO EM HISTORIA SociAt Coordenadora: Prof a. Dra. Zilda Mó reia Grlroli Iokoi sobre a Memória Histórica Vice-Coorden.ador: Pro(. D'r. José Carlos Sebé Bo1n Méihy EDITORA HUCITEC HISTORIA SOCOAL, USP São Paulo, 1997 • SUMÁRIO Apresentaçdo da Coleção 7 Agradecimentos 9 Apresentação 15 Parte 1-O IMPÉRIO DO FATO Capítulo 1. A obra da transubstanciação e as nuanças do rememorar 23 Capitulo 2. Momento e drama da interpretação 65 Parte LI- A U\ISTITU!ÇÃO DA MEMÓRIA Cnpltulo 3. A apropriação da idéia 127 Ctlpltulo 4. Revolução ou Rept\blica 163 Pontes c Bibliografia 215 Sumlrlo I IJ APRESENTAÇÃO Com que critério um hislo!iador fala das lutas e a.gentes de. uma época que nlla.é 1\..."Wl!l A interrogação ganha amplitude quando lembramos que essa época ainda projeta sua força, suas categorias sobre o presente c sobre quem a historia. ) O saber consagrado e a objetividade da ciência têm-se consli· tufdo nas armas à disposiç~o do historiador. No entanto, essa pos tura já nllo tem conseguido convencer-me, apesar de ter sido seu defensor. Não afasto a constatação do peso intelectual de uma for mação determinada, que me orienta a uma leitura da história, a)\ uma prática de trabalho cujas exigências têm que ver com esse sa ber lnstitufdo. Não posso, simplesmente, aceitar a compartimentação e a divi I são do trabalho que deram esse lugar e essa forma ao meu conhe· cer serem suficientes para projetar-me acima c além de ngentes e \ suas práticas, dotando-me, com a armadura da ciência, de uma superioridade sobre aqueles que, em outro lugar demarcado pela mesma divisão e compartimentação do saber, lutaram cm uma so ciedade muito próxima da nossa. Não é possível esquecer que a presente socicdndc resultou, entre outros desdobramentos, daque· las prátkns passadas. De outro lado, ao tocar na memória de uma luta traduzida como revolução, poderia o historiador proceder de maneira a não se con tagiar de simpatia pela idéia de rCllclução no presente, e sem ne nhum grau de vinculação ao que foi perseguido no passado? Refletir sobre revolução implica uma predisposição emotivá<Íue se coloca antes que o pensamento se debruce sobre a análise e a 1 argumentação lógica. A cfetivação da idéia de revolução como pro- jcto coletivo confundm-se, também para mim mesmo, com a per Decca). O balanço do material até <.>ntão trabalhado nos le\'Ou a cepção de que a própria realização individual ar S<' completava pensar o ângulo da memória histórica projetada pelo )'enredo.;, base Curiosamente, a objetividade da ciência e simpatia por aquela idéia de reflexão teórica do artigo. coexistiam em hamlonla, à medida que revolução podia ser toma] As possibilidades intelectuais oriundas deste artigo-balanço da como forma necessária de realização coletiva da história. O doJ abriram caminho para novos núcleos de pesquisa c rencxão, a rnínio da emoção e da simpatia ia cedendo lugar à obra da ciência, cobrarem seu aprofluldamento na continuidade dcss" trajetória. tornada como instrumento cr[tico de valor analítico e desmis Questões como n revisfio da periodização, pel~ critica do marco tificador. periodizador da história da República; a substituição e Integração , O movimento Pt!l.dula r entre paixão e desamor pelo tema inl· .,. desse m.lrco pela percepção da existência de um processo revolu- ""',,~.,., • brica no..E!:~esso de transformaçao da minha própr~ cónSCíencia.l <f ~/ cionário que o marco tradicional elidia; memória c critérios de i-\..,, Nesse caminhar, esmaece lentamente a atração pela 1déia de revo- ) periodização revistos, a noção de f,,to histórko tornou-se também\.,...,;>\~ v c.. lução. A eficiência dos instrumentos metodológicos, base inques- ' ~ ,/' passivei de negaçAo. A partir daqui, o ano de 1930, como fato, tion ada de minhas prlmeiras propostas de trabalho, passam a so-1. ~.ri ir" transparecia como idéia componente da memória do vencedor. Fi- frcr permanentes transformações, a incidir diretamente na compo-1 ';) nalmente, mudava a qualidade da documentaçAo compulsada: de sição do meu tema, a ponto de se tomar sua razão de ser. materia] "neull'O" passava a se constituir num agente ativo de or- Inicialmente, minha proposta de trabalho residiu na elaboração ganização da memória. de um estudo da noç~o de "projetos de reordenaç~o social" em um Ainda com Edgar de Decca escrevi um n0\'0 artigo: "O Momen momento chave da história do Brasil: 1930·34. Pretendendo-se nova to doÊ-o Momento da História". Estava em questão reexaminar como problemática de análise, a noção de "projeto" n~o se desgar os "projetas de rnordcnação social" com base na problemática da rava, no entanto, dos parâmetros da bibliografia corrente. memória histórica como componentes do processo revolucionário Delimitados à região de S.'lo Paulo, como pólo capitalista dinâ elidido pela constmçfio do vencedor. Tais projetos eram pretendi mico do pais, esses "projetos" puderam ser pensados, no decorrer dos valendo-se de propostas, ou conjw1to de propostas, engendra da pesquisa, como um movimento progressivo de realizaç<'io do das no processo de luta, e capazes de assumir um caráter geral, processo histórico. Suas possibilidades seriam dadas pela conjun pretendendo confundir-se com a nação, realizando-se progressiva ção de 1929 e 1930, quando da quebra da hegemonia do setor ca mente como o próprio "sendo" da lüstória, !I medida que lhe im feeiro, acompanhando assim as passadas teóricas de Francisco C. primja um sentido. Localizamos, em 1928, dois projctos: o da revo Weffort e de Boris Fausto. Nessa perspectiva, 1930 era tomado como lução democrático-burguesa e, por oposição, um projeto autoritá marco periodizador e Estado de Compromisso com a natureza rio de industrialização, gerado desde a constituiçfio do Cicsp. mesma do Estado. Um novo momento de reflexão, consubstanciado no artigo "A Para essa etapa de trabalhos encetamos amplo levantamento Fulguração Recorrente", facultou a percepção de como a memória documél\tAI, cujas fontes fizeram referência ao bloco hegemónico pode set Ç!lllStanternente apror-riada e reelaborada ~lo poder em paulista e ao movimento tenentista, já superando uma classifica momentos históricos diversos, Vencedor e poder, identificados, rei ção inicial pautada em cafeicultores e tenentes. No primeiro caso, teram o mesmo procedimento de <'xclusão. visávamos englobar frações diversificadas de classe c até mesmo Ao encaminhar para a elaboração da presente tese essa ampla outras classes aliadas, caso dos industriais. No segundo caso, pre indicação de reflexões feitas, pensando em integrá-las e avançar tendfamosacentuar a pluralidade, a falta de wüdade e transforma com elas, persistiu em meu pensamento a necessidade de apontar ções no tempo do que em tal época era tornado como grupo. e enfrentar a capaci<h1de de sobrevivência e a coerência desta am Um momento de quebra real nesta trajetória c de questionamento pla construção a compor a memória, desde sua projeção inicial pe profundo de seus referenciais ocorreu durante a elaboração do ar los vencedores. Como COI\jullto ela resiste às evidências, como fa tigo "A Revolução do Vencedor" (em co-autoria com Edgar de tos e documentos, e as absorve, e por melo delas interrogamos o Apresentação I 17 1 passado. Fatos e documentos constantemente ampliados, e tradu Quís marcar este ponto: para os ''encidos, ~jam agentes, sejam Lidos pela acumulação da bibliografia sobre o tema, cujas interpre possibilidades históricas, surge como grande desafio saber localizar tações, entretanto, n~o se libertam das malltas da coerência e indi onde refletir e repensar problemas e lutas já. colocadas, o momento cações ddyu~l~ <vnjunto, definido pelos vencedores. cm que cfetivamcntc existiram e tentamm definir o movimento da t'tf!l Como elaboração, <$S.1 obra se organiza de tal forma que dela história. A capacida~c de a memória imp~>di-lo paracc fluir, cm boa . \ parece fluir uma determinada lógica, a permear o que se constitui parte, da fot-ça aufel'ida por se localizar em um fato-memórii\ e R~,/':1 como uma grandeexplicaç~o abrangente. Emaís: com uma capaci fatQ$.l!_n!mt1obrevive~1do ag_uela e0 esse movimento, ela deci.d!L\l' <)- 1 dade tal de atração, seja pot·colltar com pólos indica liv os para exa onde as interrogações serão postas" da mesma forma que excilli âl'l--.1-'1 me, seja pela possibilidade de integrar novos elementos, que are gulas onde sua coerência poderia ser colocada cm questão. flexão continua prt:.'Sa cm seu interior. Essa lógica coerente opera Procurei fazer o :>ossívcl nesta elaboração para que esse ponto· ainda de maneira a, quando o exame se faz pela via do (ato herda chave alcançado nc decorrer do meu próprio trajcto não se impu· do, ou então pela análise de documentos, eles já são,n pnori, pensa sesse, no papel de orientador do trabalho, como uma afirmação dos nela, isto é, seus lineamentos gerais já mmandam o estudo. absolut,1 desde o IT.omento inicial. Quís que transparecesse, pelo ~· I /-r~ Nesse sentido, entender a história como Jma memória e perce menos em parte, como ponto de chegada, com base em uma dís .,. ,.-1 ber a integração que ocorre de maneira contínua entre a herança cussão aqui travada, facilitando ao leitor caminhar comigo e por > ,r recebida e projetada até nós, e a reflexão a debruçar-se sobre esse meio do material elegido e da seqüê11cia de t•efJcxõcs,com os quais pns.sndo, eonstiluiu·:,~ cm tJuesta.o e pareceu-me J'Cievante para a fui imprimindo o rumo da discussão. aproximação do que é tomado tão-somente por historiografia. Assim, quanto ao fato, não pressupus desde o início sua relação Esta poderia deixar ao leitor menos avis.1dc a percepção de que o com o vencedor. Minha intenção foi, ao contrário, mostrar o papei objeto mesmo sobre o qual ela se debruça-temas, (a tos, agentes do fato como ponte de localização de significacões e lugar onde é ar colocados- tem exísténcia objetiva independentemente do seu entrevista a rcalizaçlo da história, mesmo levando-se em conta uma cngendramento no processo de luta e da (orça de sua projeção e perspectiva temporal ampla. Da mesma forma que pretendi subli recuperação, como tema, em cada momento especifico que o reto nhar o peso de certos fatos na rememoração posterior até para os ma e o refaz. B é esse movimento e esse {az.~r a serem aqui consi que poderiam indicar outros momentos e instantes cruciais na de dNados. finição dessa efetivaçllo, diminuindo o peso social da idéia de que Fato, documentos c essa lógica de explicação herdada podem essa realização histórica ocorre em um único lugar determinado. ser relacionados à questi!o da objetividade e detem1h1ações orilm A seguir, umo outrn seqüência de considerações apontou para o das de fatores puramente econômicos-ca~o da crise do café. Es· aparato e as instituições mediante os quais alguns fatos são difun sas considerações não se ausentavam daquela lógica i ntcgrante da didos, impondo-se ~o conjunto do social antes da possibilidade de memôria; no inv~e, rcccbiarn suas indk,,çõ.es. Pt.:tt.dJl nao ser sufi qualquer reflexao especifica voltar-se para seu exame. Isto foi en· ciente tomar o fato como mero ponto sob o qual transcorria esse !revisto como nec~sidade a Ugar·sc diretamcnte às considerações imenso iceberg das determinações de outra oxlem. 81J2...EL~ anteriores sobre o fato, ao lembrarmos que klCali?.amos significa se unem e sugerem àquelas determinações pontos de clivagem. ções hístóricas com expressiva capacidade de identificação coleti Dessa forma, a relação entre o fato e o conjunto da memória va nos fatos em geral, dotados de uma determinada lógica, e trans transpareceu-me questfio-chave, a insístir, afastando igualmente a mitidos também por meio dos mesmos canais. díscussão sobre periodização e seus cortes mais adequados (por Nesse sentido, e levando em conta a relnçllo anterior, é que in e)(emplo: 1922, sob ótica de revolucionários; 1924, pela operação troduzi na discussll' um ângulo bem mais próximo, o de examinar de Mauricio de Lacerda procurando uni-los a um universo liberal; o próprio trabalho do historiador nessa teia, e o de it1quirir a re\5l. 1927/1928, pela ótíca da t-e\•olução democrático-burguesa e do BOC; ção de pro~~ c 'll~bclccemos com .\Ú!l.\2· Desenvolvi par 1930, pelos dispositivos dos vencedores). teaesse esforço cm um ângulo preciso: o vinculo a lmir a reflexão 18 I Aprete<>taçio "1b1<• ,, P•''S.ldo herdado a nossas próprins lutas, e em que a von· t.•d~ de liberdade e de comando sobre esse passado pode encon· tr.lr·sc com aquele ponto localizado, a transparecer, por sua vez, como dotado de uma força de indicaç~o e definição sobre a análise. Parte I Somente assinl, tendo deixado visível a existência c peso de um fe>co inkial de projeção e localização em um dado fato -1930-, O IMPÉRIO DO FATO como significações da vida da história, c o foco do qual fluem, con tinuamente, indicações-chave para a análise- é que encaminhei a discussão do fato herdado para a memória do vencedor. Visei cap· tM as operações pelas quais o poder vigente, ao cabo de um proces so de luta, e em condições ainda de disputa ent•·e vencedores, con "'Este livro ê um pedaço da história, da hist6rln tal cO•l\O cu '-' vi. Nao pcctel\dc s(!gue estabelecer aquele fato como ampla iMia, por intermédio da ser sen~o \I ln relato pormenoriudo da Revoluçlio de: Outubro, isto é, daqueles dias cm q\•e os bold\eviques, à (rente dos oper.irlos e soldttdos da Rússia, tomaram o qual talltO o exercício do poder político quanto a temporalidade a poder e o depuseram nas miiOS dos soviete:;."' caracterizar a história se unem no mesmo movimento. Daqui a ló· Jclm Rud gica c a coerência entrevistas nessa memória saem e impõem-se, ao conformarem a noção de tempo. Elas são capazes de unir-se às pró· "'.t uma obra que eu gostaria de ver publicada 0\0S milhões de <!'Xe:mplates, prias operações com as quais revemos o passado. tradudda para todas as Jínguas, pol!i traça um quadro exato e extraordh\ariatnente Considerando a reapropriação e reelaboraç3o dessa memória \1ivo dos acontecimentos. .. "' em outros momentos pelo poder vigente, a\•ancei para outra ques tão: como entender o porquê de participantes e de sujeitos coleti vos saldos do próprio processo de luta nao parecerem libertar-se do conjunto dessa memória, opondo-lhe outro foco de reflexão? levei em conta, de um lado, o caráter fragmentário deixado pela memória de momentos vencidos, e a possibilidade de sua atração pela construção do vencedor. De outro lado, transparecclt-me cmcial levanta•· outro viés: um sujeito concreto, que lutou em um dado momento, manteria continuidade e perccpç~o do conjunto de sua p•·át ica cm condições de opor-se a essa memória? Procurei destacar a constataç~o de essa reflexão não incidir sobre problemas essen ciais desse passado, entendendo ser este o ponto pelo qual a pró· prla reflexão de participantes coletivos não chega a opor outras quc:>stõcs ao fato do vencedor, por onde se percebeda que possibili dade diversa de efetivação histórica estaria realmente cm jogo. lO I Ap•·esenuçto Capitulo I A OBRA DA TRANSUBSTANCIAÇÃO EAS NUANÇAS DO REMEMORAR Eu nao vivi 30, nem observei o impacto de Outubro por aqueles anos. Deixarei falar, por alguns momentos, essa vivência: "Medeiros Lima- Como não temos seguido uma ordem crono lógica em nossas convcn;.1s, deixamos em aberto um longo perío do, embora a ele tenhamos feito referências ocasionais em função de certos episódios evocados pelo senhor. Refiro-me aos anos de 1930 a 1945, que coincidem com a revolução llberal de Vargas, a imphmtaç:lo do Estado Novo e a guerra." "Alce11 Amoroso Lima - Antes de responder a sua pergunta, dei xeque lhecontecomo eu vi morrer a República Velha. Encontrava me no sítio mais perigoso do Rio, naquela manhã de 24 de outubro de 1930: o gabinete do Chefe de Polícia. .. "Cláudio Gmms combinou encontrar-se comigo na Chefatura de Polkia, onde eu 111e sentia no dever de ficar nessa hora junto a Pedro de Olil'<'i1 'n Ribeiro. O ambiente já cm ali sombrio, e bastante deser to, qunn.: •• subimos a seu gabinete. Pedro nos informou que, real mente, as noticias não cmm nada animadoras ... "Safmos todos em seguida. Na rua já havia um carnaval. Soube mais tarde que, mal t!nhamos saído, uma multidão desenfreada subira as csc«dns e invadira o gabinete. Perdi Pedro de vista ... "Foi assim que vi morrer de perto a Primeira República, a que muitos ainda chamam de 'Belleépoque brasileira'. Não eu, que não sofro de nostalgia ..." ' 1 LIMA. Cláudio Medeiros. Alct11 Amoroso Limn. Memórias improsirx>dhS: "Da história tal como eu a vi" - esta evocação pode possuir contra a revolução de 1930, que coíncidiu ·com o começo do meu espessura inesperada. No texto acima a preocupação c<lnl o amigo apostolndo católico. Durante o trágico mês de outubro daquele ano, ordena o relato. Coexiste uma vaga lembrança de festa e depreda tendo, como já disse, conhecimento, através de informações segu ções. A recordação, ao debruçar-se sobre o passado, entendendo-o ras, de que o Governo Federal não dispunha de meios para enfren· como história, refer~ncia-se pelo conjunto de acontecimentos em tar as forças revolucionárias, fiz questão de dar de público o meu que esse eu pa.rticipou. O pensamento traduziu a revolução liberal testemunho de desaprovação a um movínwJ'lto que me pareciacon- de Vargas, até certo ponto, por morte da República Velha ou Pri • trário aos interesses nacionais. Achava estranho que partidos tra meixa República. Confundiram-se com um dia, to.rnaram-sc sua dicionalmente conservadores, como o Partido Republicano Minei manhã, em que essa morte se localiza. E tal fim pôde ser entrevisto ro e o Partido Republicano Rio-Grandense, que durru1te o governo de perto, pela pessoa que o observou, dessa forma, nesse dia. Bernardes haviam aprovado todos os a tos de arbitrariedades então Um dia, uma manhã-nestes a morte de uma reptíblica, a ins pr<1ticados, se apresentassem como revolucionários e ínovadores tauração dle uma revolução. A aparente simplicidade do cotidianÇ>, dos nossos costumes políticos e sociais. .. de outras Jnanhãs, foi quebrada por um conjunto de ações que o "Como disse, discordei da revolução de 1930 porque o método abalaram. Esta. quebra da rotina diária, forte o bastante para impe revolucionário, a meu ver, é um método ínadequado. Devo dizer dir o olvido, parece dotada da capacidade singular de unir o eu e o que continuo ainda hoje, e cada vez mais, evolucionista. Mas o Es além dele, com a grandeza supostamente associada ao evento his tado Novo, com a Revolução de 30, que o antecedeu, apeS<Ir do seu tórico. pecado original, do seu centralismo e autoritarismo político, Irou· Esta face do episódio, quando ele ultrapassa sua significação xe duas contribuições importantes à vida do país. A primeira delas puramente pessoal e atinge uma abrru1gência maior, apresentan· foi a de ter permitido que a Igreja desenvolvesse com liberdade a do-se como geral, é aqui reivindicada para esse 24 de outubro. Por sua colaboração no sentido da evolução social. A segunda contri isso a fuga do amigo ixnplica muito mais, ela associa-se a um vín buição traduziu-se pelas leis sociais, incentivru1do a promoção do culo entre o pessoal e o geral, coexiste com a morte e o ínício, com proletariado, embora isto fosse feito de uma forma que considerei fato histórico. Este trru1sparece no encerran\e.r\to de algo-Repú Ucgitima, já que sustentávamos a liberdade sindical, ao passo que blica Velha-sem dúvida geral e amplo. Agora, como tal significa· o tipo oficial do síndicalismo getuliano era de caráter corporativo do pode situar-se em práticas vivas, c nos episódios de um ünico e, portanto, urútário, centralizado. Éramos, como ainda hoje, favo dia, de maneira a poder ser observado, como o foi, exige do eu um níveis à promoção das classes trabalhadoras, através de uma parti esforço para apresentar essa relação, essa abrangência a envolvê cipação crescente na responsabilidade do Estado, na vida econô lo, e a todos os demais. Existe aqui uma espécie de obrigação, a mica e social das ínstituições. .. "'. necessidade de explicitar esse vinculo comum. Vejamos a resposta Que o Autor posicionava-se, lá, fica bem claro. Que aquele dia do Autor à questão, ou melhor, ao pedido de Medeiros Lima: representa uma existência outra, de eco ampliado, Revolução de "Depois dessa digressão em torno desses pequenos fatos que 30, também. A pressão de wn problema, qual um aríete, de amplas me ocorreram de repente, passemos à sua pergunta. dimensões sociais, é visível. A penas seu tratamento, pelos que o "A partir de 1940 senti-me restituído a mim mesmo, olhando os sugeriam, incomodava-os: estava marcado pela ínadequação do acontccín1<mtos de nosso tempo com maior amplitude de visão. Fui método, e pela falsidade dos participantes. Assim o eu do autor chegou àquela manhã de 24 já bastante posicionado quanto ao pro blema, quru1to à forma de encaminhá-lo, quanto aos personagens diálogos com Cláudio Medeiros Uma. Prefácio de Antônio Houaiss. Petropólis: Vozes, 1973. Os trechos dtados encontram-se, respectiva mc.ntc, às páginas 213, 214,215. ' Idem. lbidem, p. 217 e 220. 24 I A obra da transubstanciação e as noanças do ~emorar A obra da transubstanciação e as nuanças do rememonr 1 25 énvolvidos. M<1s com que f<)rça os episódios então decorridos, para isso com tal força diante das práticas sociais que soa como se fosse todos, CQ!'~!ll>~m_pcsar, tornan~e tão relevantes, e o.próprio au apenas este- o fato- responsável por todas essas implicações e to~ só percebe, "com maior amplitude de visão", em torno de 1940? decorrências capazes de anular todos os outros dias, como se estes Ele lembra seu interesse e seu envolvimento na ''promoção das fossem rea~nente compostos por uma rotina da qual a criação políti· dasses trabalhadoras através de uma participação crescente", e é case ausenta. neste ponto no qual dois itens parecem ter·se desenvolvido. Um Medeiros Lin1a, por meio do diálogo, apontou os parâmetros, os deles traduz-se no papel p·ermitido à Igreja, à sua atuação, e o ou referenciais, para o entendin1ento histórico. E indicou Estado Novo tro substantiva-se pela presença da legislação social. Ambos ocor como tais. O amigo aceita tu.do aquilo que constitui percepção co· rem depois. Ambos possuem a ca racteristka do" posteri<>ri, do que mum, como mostra a diferença, n:a interpretação, quando esta oco r· foi cumprido. re. A perspectiva do tempo parece dotada de um direito peculiar: Como, no exercício do rememorar. pode o eu localizar tais im ela permjte uma revisão do passado, en1 que, aparentemente, a plicações em ocorrências definidil?? Como, dentre esses ''peque paixão perdeu seu donllnio e a calma da matu.ridade transparece, nos fatos", aparecem episódios capazes de unir sua vida diária, fala, isenta de quaisquer interesses imediatos. Mas, trata-se apenas abalada e modifkada nesses dias, com decorrências que U1e pa de isenção? Ou na verdade a percepção posterior, vencedora, inibe recem cfcrtos? É ev1dente que o 24 de outubro, em seu pensamento, nuanças e possibilidadt'S que ainda estavam lá, as quais, agora, lem transubst<mcia-se em revolução de 1930 e esta, juntamente com o bram, sugerem apenas velhas paixões em definitivo derrogadas? Estado Novo, responde pela legislação citada e pela facilidade que República VeU1a pode ser subsumida em um fato? Seu conteúdo o autor admite'. pode $er identificado de tal forma que o situemos tão claramente e, . Realizar um balanço, recordando, permitiu-lhe rever aquele "trá· mais, o encerremos com outro fato? No diálogo conto amjgo, Amo gKOm ês de ()utubro". Permitiu·Ule ampliar sua significação. já não roso Lima deixa entrever que seu fim, ao menos, pode. E 24 de outu s~ ~ata de verificar se realmente ''nossos CO$tumes políticos c so bro traduz mais iortemen'te que "Revolução Liberal de Vargas". Esta Ciats" foran1 movados. Sua posição, de recusa da hipocrisia parece não pode ser, uma vez que ele opõe à sua significação o "centralismo 1 p~sar menos. Em que monumto ela foi ullrnpasSllda, permitindo-lhe c autoritarismo". E também parte da obra, considerada quanto à sua observar algo mais? Por que aquele 24 não ttan.sparece apenas como forma-o síndicalismo sob urn -'"caráter corporativo", "unitário c queda do govemo, em nome de falsas posições, estilo nada incomum? centralizado" - recebe a tnesma recusa madura. A ressalva não 1\pesardo "pecado original" cresce o peso daquelas duas contribui advém do seu agora, o autor mostra seu peso anterior, no momento ções. Assinl, o "trágico mês" purifica-se em parte, deixa de o ser tan· decisivo. A recusa retém posjcões do passado, erocurando manter lo, abandona esse caráter. Sua projeção amplia-se incrivelmente e_ uma linha d:;e:.c;;o;;:e:"r'ê.,J'l"c:;:ioa;o.e;;,c;;.o;;.n:.:!.imlJsiade,_!!'~ em si, como oq)et~ida­ a recordação liga-o a todo um novo conjunto de relações que só pos õe';'tcansi&fec_e c ga!:\b.<tdominio uma realidade, a_percepção do rea teriormente teria existido. Pela obrª d.a.ll:ru.lsubstansiJl~ão.uma enor lízãêi'õ;e' este é aceito cómQ,yál)qo. me gama de significações pode ser alocada aos episódios de um dia, Elide-se toda uma gama de outras ações, a sere! h pensadas como de tun mês, convertidos em fato histórico-revolução de ~930. E dotadas da mesma significação social. Reina o fato, um fato, e nes· te, somente nele, imbrica gigantesca quantidade de implicações, as quais pressupõem outro mundo de prátic<1S específicas, rotineiras 3 Oexameda obra, como tal, não se cOnstitui um foco de análise aqui. O ou não, e por meio das quais a obra que aparece como decorrência epsotdued soe dr o" p'~atpoeelm d aR OIgMreAjaN eO a,s R coobnedritçoõ.e Bsr ansaisl: qIguraeijsa ecos1t1a1 ora aEcsellHldao e( cargítei 1 poderia surgir como aquilo que realmente é, ação e criação. A per· ca no ~PPII!ISnto C.'/16/ico}. São Paulo: Kairós, 1979, p. 143-54; quanto à cepção tida por madura, por objetiva, vista segundo esse ler o re pa l'tJClpaçao o autor, tndependente do r~memorar~ ela não está em causa sultado e julgá-lo, em si, vê morte- fim da Repüblica Velha-e •qui. Conferir sua obra: LIMA, Alceu Amoroso. ludicaçiks políticas: da revolução de 30 juntos, como o fato, podendo situar nesse ponto o Reuoluçào à Cousliluiçtio. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1936. lugar onde a criação política existe. Ela mata e ela põe. Não deixa 26 I A obra da transubsta.ndaç5o e as nuanças do rememorar A. obra da ttansubstanda.çlo c as nu:u-;ças do rcm~morar 1 27

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