Coordenação Editorial Irmã Jacinta T\irolo Garcia Coordènação Administrativa IrnMTcrcsáAna Soflatti . Assessoria Administrativa Irmã Adeiir Weber A Revolução Coordenação da Coleção Históriã Luiz Eugênio Véscio Coordenação Executiva, em debate Luzia Bianchi Comitê Editorial Acadêmico Irmã Jacinta Türoio Garcia - Presidente José Jobson de Andrade ^uda Luiz Eugênio Véscio Marcos Virmond Newton Aquiies von Zuben François Furet HI$TÓRiA e d i5^c Un,versit)adp dr, Sayradn ao Edtton da Univaraldida do Sagrado Corafdq em debate F983r Fiiret, François. , . A Revolução em debate / François FuTet; tradução de Regina Célia Bicalho Frates e Silva ; revisão técnica de Mareia Mansor D'Alessio. - Bauru, SP: EDUSC, 2001. 150 p.; 21 cm. -- (Coleção História). ISBN 85-7460-110-1 Não inclui bibliografia. . Inclui úidice onomástico. François Furet IVadução de: La Révolution en débat. ) 1. França - História - Revolução, 1789-1799. I. Título, n. Série. Tradução de < - CDD. 944.04 Regina Célia Bicalho Frates e Silva ISBN 2-O7-040784-5 (original) Revisão técnica de Mareia Mansor D'Alessio Copyright © Éditions âaOinürd, 1999 Copyright © de tradução: EDUSC, 2001 Tradução realizada a partir da edição de 1999 Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para ò Brasil adquiridos pela Z^infta ^Mjiafjiávef <^iSficteea EDITORA DA UNIVERSmADE DO SAGRADO CORAÇÃO Rua IrmãArminda, 10-50 CEP 17011-160 - Bauru - SP Fone (14) 3235-7111 - Fax (14) 3235-7219 Editora da Univaraidada do Sagrado Cdraçio e-mail: [email protected] APRESENTAÇÃO SUMÁRIO ' AKRBS!Étm.ÇÃO , / ■ Este pequeno livro, que reúne seis artigos sobre a Revolução Franeesa entregues a Debate por François ' ^' Prefácio '^'v ^ ’ Furet no decorrer dos anos, pode ser lido como uma 15 ^ A compreensão do políticò ! introdução ao seu trabalho de historiador. Constante- mente perpassado pelas preocupações do presente, ■- CARfiuiiO 1 : V não trata somente do objeto "Revolução Francesa". 23 A RcVolução sem 0 Tenror? ^ debate dos Ele reúne os dois conjuntos de sua obra, o que é Con- t ' historiadores do sécuío XIX ; x.' 'f- sagrado à Revolução Francesa e o que é consagrado à ' ‘ , , ■' . .. J.' '' ■ - í, ' .. ■ Revolução Soviética, oferecendo, desse modo, uma -CAriTüi,0.:2 ' , 'X""''. interpretação global das paixões revolucionárias. í. 55 A Revolução no imaginário político francês O texto qué abre a coletânea, "A Inteligência do ' ■ ' j, y ' < ■ "■ ' /, ■ Político" - e que é também o primeiro que Frànçoís . Capítulo 3 " V , Furet escreveu, para o número inaugural de Debate - 71 4 francesa da Reyoiução ■ V mostra isso muito bem. O problema aí abordado é pri- meiramente saber por que a derivação rápida da Re- ■ Capítulo 4- ; . \ t volução Soviética para o totalitarismo levou tanto 93 Burke ou o fim de urna só história da .Buropà tempo para ser admitida e, pior ainda, percebida pela esquerda intelectual francesa, ocupada durante cin- CAi7rULO-5'-; ■ V ^ X, ' ‘ , qüenta anos com uma febril atividade defensiva de 115 m 9-19l7; ida e volta í . justificação, que a esterilizou por muito tempo. Forte- mente convencida de que o regime soviético havia, 143 PomEis DOS CAPíruLOS ’ ' , ‘ substituído pela igualdade real a igualdade formal dos - ■ ■ ■ , ,X. ' ' - , . ' revolucionários franceses, ela não quis nem pensar so- 145 MOJCB ONOMÁSTICO ' V' ♦ bre o Terror, nem refletir sobre os laços que podem unir as revoluções e o despotismo. Para vencer a ce- gueira mostrada em relação a esses problemas - que surgiram, no entanto, desde a Revolução Francesa -, '1 ", . 7 '/.í' A Revolução em debate Apresentação François Furet prescreve um remédio ao mesmo tem- luta pelo poder, apoiada no controle de um aparelho po modesto e soberano: o retorno a análises desco- de militantes e o manejo de uma ortodoxia sisuda, nhecidas ou negligenciadas por demasiado tempo. Os não deixa de celebrar o heroísmo dos soldados recru- textos do século XIX, que uma historiografia arrogan- tados para a salvação da pátria. O segundo, porque só te prefere julgar ultrapassados, estão lá para mostrar dissocia o Terror da Revolução para melhor associá-lo que os intérpretes da Revolução Francesa não haviam á um pesado passado antiliberal e vê-lo como a infe- licidade repetitiva e monótona de uma história da permanecido alheios ao questionamento de um acon- França, que volta sem cessar a seu leito absolutista. tecimento que estava, então, ainda próximo deles. E Hopve, pois, no século'XIX, uma historiografia sua meditação é profunda o bastante para sugerir que ao mesmo tempo rica e conflituosa, dividida, no es- eles teriam tido menos dificuldade do que os intelec- sencial, entre quatre-vingt-neuvistes e quatre-vingt-trei- tuais do século seguinte para compreender e concei- zistes:* para os primeiros, uma Revolução cujo impulr tuar a experiência comunista. so foi desviado e traído; para os segundos, uma dinâ- A prova âisso é fornecida por "A Revolução sem mica que se realizou num episódio libertador e porta- o Terror?", artigo consagrado ao grande problema que dor de uma promessa. Duas histórias antagônicas, atravessa e divide a historiografia da Revolução Fran- que se encontram, entretanto, em ura aspecto: jun- cesa no século XIX: pode-se dissociar da Revolução o tas, elas compõem o quadro de "A Revolução no ima- episódio terrorista? Não, diz Joseph de Maistre, inven- ginário político francês", ao mesmo tempo imagens, tor dessa "Revolução-bloco" de tão brilhante futuro. lembranças, paixões, idéias. Reencontrando essa ma- Sim, dizem em coro Constant, Staél, Guizot, Mignet, triz de nossa paisagem política, François Furet vê a unidos, para além da variedade de suas análises, na França como essa nação revolucionária que conjuga vontade de devolver a Revolução à sua verdade de duas crenças: aquela que dá a um povo a força para 1789, e de subtrair dela as conseqüências incompatí- se desprender de seu passado, e aquela que põe a veis com a idéia de liberdade, Robespierre e Bonapar- chave da mudança nas mãos do Estado. Mas essa na- te associados no mesmo opróbrio. Não, dizem por sua ção é também aquela que oscila permanentemente vez os historiadores socialistas, que retomam à sua maneira o refrão do "bloco": não é que eles aceitem entre o imperativo de terminar a Revolução e o de re- todo o Terror (como Louis Blanc), mas eles vêem no começá-la, e não chega a enraizar os princípios que ano U, preso em sua necessária extensão terrorista, a professa em instituições estáveis: a Revolução pode revelação do verdadeiro sentido da Revolução e o muito bem, com efeito, inventar uma sociedade , anúncio das' revoluções futuras. Nem socialistas, nem nova, mas não inventa uma Constituição. Ela trans- contra-revolucionários, nem liberais, difíceis de recru- fere para-o político as esperanças outrora ligadas ao tar sob uma bandeira partidária, os republicanos: Mi- religioso, mas abre um durável e dramático conflito chelet e Quinet. Ambos partilham com a esquerda li- com a Igreja. Enfim, ela inaugura um vertiginoso re- beral a repugnância em celebrar a ditadura terrqrista pertório político que, ao longo de todo um século, e, no entanto, se mantêm um pouco afastados de sua interpretação do ano II. O primeiro, porque mesmo * Partidários do espírito de 1789 e 1793, respectiva- denunciando no Jacobinismo uma forma inédita de mente. (N.R.T.) A Revolução em debate Apresentação "reapresenta", como se faria no teatro, as formas po- profética do historiador inglês. Burke vê claramente líticas ensaiadas durante a Revolução, umas e outras que a questão central colocada pqr 1789 é a da rela- portadoras de interpretações opostas. . ção dos franceses com sua própria história, a negação O que faz a estranheza do que Furet batiza de que fazem da longa sedimentação dos séculos, e a "A idéia francesa da Revolução", feita de um consen- vontade de instaurar o corpo social apenas sobre a ra- so escondido sobre o Estado e de um conflito político zão. E como essa ambição fundadora lhe parece ao evidente, constantemente reativado, pode ser melhor mesmo tempo extravagante e nefasta, ele explora, apreciado se, ao retorno feito através do tempo pelas com um sentido extraordinário de antecipação, seu historiografías, acrescentarmos o retomo através do possível desvio despótico, fruto, a seus olhos, da abs- espaço. Nada na Revolução Francesa - exceto um epi- tração democrática. Desde 1789, bem antes do Terror, sódio monárquico, logo sancionado pela derrota - Burke compreendeu que os indivíduos tornados, gra- lembra a idéia e a prática inglesas de um compromis- ças à Revolução, ao mesmo tempo particulares e so entre duas soberanías: a Revolução Francesa não é iguais só foram emancipados em aparência. Sua liber- jamais moderada e, mais ainda, só tem desprezo pelo tação da autoridade tradicioilal implica, pelo contrá- equilíbrio de poderes. Quanto à versão americana da rio, no deslocamento e alargamento dela, sob a forma Revolução, a viagem transatlântica permitiu aos ame- de um Estado investido da soberania do povo e peri- ricanos viver a ruptura, não como um salto vertigino- gosamente exaltado. so para um futuro indeterminado, mas como a volta , François Furet reencontra aqui a relação entre uma vez que o estado social aristocrático foi deixado 1789 e 1793, que tanto o preocupou, mas também a bem para trás, a mna história original. Essa compara- relação entre 1793 e 1917, que constitui a outra ver- ção permite compreender melhor qual foi a natureza tente de sua obra e à qual dedica o último artigo des- da idéia francesa de Revolução e qual foi seu destino. te livro, "1789-1917: idà e volta". Pois na medida em De um lado, seu sucesso: como ela se abre para um fu- que 1793 representou, para toda uma tradição socia- turo indefinido, cada geração pode colocar nela uma lista, a complementação da Revolução abortada de nova esperança, capaz de sobreviver a todas as expe- 1789, compreende-se que a familiaridade com á idéia riências. De outro, sua derrota: ela vive da ilusão de de uma revolução que recomeça a partir de uma ex- uma ruptura, embora nenhum povo possa romper periência inacabada pode alimentar as simpatias da com seu passado, como mostram bem os desmentidos esquerda intelectual por 1917; visto no espelho do que lhe inflige o curso da história. ano n, os Jacobinos franceses representam os ances- Dessa derrota, ninguém foi melhor intérprete trais dos bolcheviques russos. Essa simpatia, comum do que Burke, provavelmente porque ele vem de aos socialistas e aos comunistas franceses, alimentou- uma história muito antiga, enquanto os revolucioná- se muito menos do marxismo do que da influência da rios franceses pretendem inaugurar uma completa- Revolução Francesa sobre as imaginações, e da idéia mente nova. Em Burke e o fim de uma só história da Eu- profundamente arraigada de que a democracia ábstra- ropa, François Furet põe em evidência a penetração ta dos direitos é fruto do privilégio e da mentira. Ora, 10 .11 A Revolução em debate Apresentação r é essa terra comum que treme na conjuntura de 1989. distância entre as esperanças que suscita e as realiza- As dificrddades da comemoração vieram de suas cir- ções que oferece. Ela é, também, uma idéia sem fim cunstâncias: enquanto desmoronava o sistema comu- previsível, exposta a contra-ofertas e aberta a todos os nista, desacreditado pela história, que ele reivindicava desvios passionais: o que deixa prever que o repertó- como seu único tribunal, apagava-se a referência má- rio democrático está longe do esgotamento em nossas gica de outubro de 1917. E esse desaparecimento dei- sociedades. xa rever plenamente os princípios de 1789, que se tor- É por isso que aquilo que estabelece a relação naram paradoxalmente o futuro de 1917. Assim, a entre os artigos reunidos por O Debate é o sentimento história forneceu uma resposta irônica à questão que de estranheza intacto diante de pm acontecimento, no François Furet havia colocado já no início de seu pri- entanto, tão percorrido, e uma inquietação sempre meiro artigo em Debate. Os intelectuais franceses ha- presente. "Analista inquieto", dizia de si mesmo viam por muito tempo acompanhado o féretro do co- Henry James ao reencontrar, para interpretá-la, a munismo num interminável cortejo revisionista, e América de sua infância. Voltando sem cessar ao gran- agora viam-se obrigados a revisar suas revisões, a de acontecimento de nossa vida nacional, e escavan- romper com seu anti-humanismo, a ver em 1789 o do incansavelmente o rastro aberto desde sua inicia- verdadeiro fundamento do mundo moderno, a reco- ção na pesquisa, François Furet poderia muito bem, nhecer, contra a corrente do itinerário obrigatório, a também ele, definir-se como "o historiador inquieto" democracia burguesa como o horizonte do comunis- das paixões revolucionárias: a essa inquietação ele mo. É, portanto, a um remanejamento completo da deve sua profundidade. ' herança que jios convida este livro. Quer dizer que a idéia revolucionária, uma vez dissipados todos os seus prestígios, desapareceu das Mona Ozouf imaginações? François Furet é um historiador escru- puloso demais, e também demasiadamente angustia- do para afirmar isso. Pois no tempo em que, graças às suas pesquisas, aos historiadores que relia, às compa- rações que praticava, ele explorava as potencialidades despóticas da democracia revolucionária, não negli- genciava as potencialidades utópicas. A democracia, fundada na convicção de que o corpo político é o pro- duto das vontades individuais, está destinada a am- pliar permanentemente os direitos dos indivíduos. Ela força a viver num mundo de indivíduos desiguais, en- quanto colocou como printípio sua igualdade: ela se condena, pois, a tornar cada vez mais insuportável a 12 13 A Revolução eht debate PREFACIO lamente daquilo que chamamos de esquerda, portan- to, marcada, ao mesmo tempo, poí um signo de iden- tidade e de extrema valorização. Revolução que pos- A COMPREENSÃO DO POLÍTICO sui, além do mais, sua própria consciência de si mes- ma, objeto de cuidados meticulosos, que é o marxis- mo-leninismo: ela recebe, a partir daí, o crédito de uma libertação do homem em relação à exploração capitalista, e é liberada das obrigações jurídicas da de- A França política de nossos dias exibe constan- mocracia, pois supõe-se que a emancipação econônii- temente urna dessimetria: superabundáncia de infor- ca implica no exercício, finalmente soberano, dos di- mações, de um lado,' e penuria de meios intelectuais reitos políticos, por intermédio da ditadura do proleta- de interpretação, do outro. Tudo se passa como se a riado. Se a igualdade "real" sucede à igualdade "for- evolução dos dois fenómenos tivesse andado em sen- mal", as liberdades "reais" substituirão as liberdades tido inverso, oferecendo ao cidadão atual cada vez "formais" da democracia burguesa. mais coisas para compreender e cada vez menos ins- Esse esquema, cujos principais elementos se en- trumentos de compreensão. Parece-me que um fran- contram nas polêmicas de Lênin, primeiro contra os cés culto de fins do século XX está menos instrumen- mencheviques, depois contra Kautsky, se acomoda fa- tado para dar um sentido ao espetáculo do mundo do cilmente no interior de uma tradição política e inte- que seu homólogo do sécülo XIX. Pior ainda; é prová- lectual francesa, a do Jacobinismo. Com efeito, se bem vel que este último estivesse intelectualmente menos que efe difira dela peia pretensão científica, divide desprovido diante do mundo em que vivemos hoje. com ela a idéia de que o Estado revolucionário todo- Cem ou cento e cinqüenta anos depois. poderoso é garantia de igualdade e, portanto, de liber- Darei, para ilustrar essa afirmação, o exemplo dade. Além disso, ele tem sobre a ideologia jacobina a da esquerda intelectual francesa frente aos dois gran- superioridade de constituir, pelo menos em aparência, des fenómenos que dominam sua formação e sua his- uma teoria dedutiva, fechada sobre si mesma, imper- tória nos séculos XIX e XX: a Revolução Francesa e a meável ao empírico. A união soviética do marxismo- Revolução Soviética. leninismo é um encaixe de conceitos através do qual Se uma parte importante dessa esquerda demo- o Goulag não é simplesmente inconcebível; ele não rou tanto e teve tanta dificuldade em aceitar a idéia de pode sequer ser percebido. que a Revolução Soviética degenerou rapidamente Além disso, o sistema dispõe, contra as surpre- em regime totalitário, negador das liberdades elemen- sas do histórico, de válvulas de segurança. Primeiro, a tares do cidadão, foi em função de um certo número negação pura e simples. Depois, quando essa negação de convicções intelectuais, cujo inventário é fácil de não é mais sustentável, em razão da dimensão do fazer. No centro do edifício, está a Revolução Soviéti- acontecimento "desviante", a atenuação, concessão ca, herdeira de uma Tradição francesa fundadora jus- que pode sempre ser retomada* quando chegarem 15 16 Prefácio A Revolução em debate dias favoráveis ao sumiço dos fatos revelados. Enfim, produção: era um desvio, ou seja, urna infelicidade se a existência de um fenômeno contraditório com a aleatoria, sem relação com o sistema. interpretação canônica deixa de ser negada, por uma Último "exterior" chamado em socorro, quando ràzáo ou por outra, como é o caso, desde Soljenitsyn, os precedentes não são mais suficientes para assegurar piara os campos de concentração soviéticos, o último uma boa profilaxia: a própria história. As "circunstân- cias" invocadas podem, com efeito, ser anteriores ao recurso é a explicação pelo que é exterior ao sistema. * fenômeno de que é preciso dar contá, e contribuir Explicação que pode ser sincrónica em relação para configurá-lo com o peso que o passado continua a ele, ou deslocada para fora, Ela pode, coiri efeito, a exercer sobre o presente. A "barbárie" do Império ater-se às circunstâpcias que acompanharam o fenô- Russo, em 1917, explica assim a selvageria da repres- meno que deve ser interpretado, e que podem ter al- são estálinista. A historiografia revisionista da União terado seu funcionamento teórico, por razões de so- Soviética tornou-se uma espécie de ilustração desse brevivência prática. Assim, a intensificação da luta de tipo de argumento, sem se dar conta de que instaura, classes era apresentada por Stahn e pelo movimento dessa forma; uma continuidade entre o antigo regime comunista internacional como a razão da vigilância e e o novo, que atinge o próprio sentido da revolução. da repressão na União Soviética dos ano§ 30 ou 50. Se Pois o historiador revisionista não chega nunca a esse o regime não era perfeitamente democrático, é que questionamento. Ele só utiliza o argumento histórico continuava revolucionário, e, como tal, comhatia sem para desculpar a revolução. Se a história é culpada, a cessar uma contra-revolução incrivelmente encarni- revolução fica duplamente justificada: primeiro por çada: fraqueza provisória, securidária, já que lhe era ter tentado por fim a ela, depois por só ter conseguido imposta pelas circunstâncias. E, depois, quando a di- isso parcialmente. mensão e a natureza do mundo centralizador soviéti- Ora, toda essa atividade de racionalização e'de co desqualificaram â exphcação por esse "exterior", a defesa, ao mesmo tempo muito sofisticada e comple- partir do meio dos anos 50, os prepostos da ideologia tamente estéril, que povoa grande parte de nossa vida forneceram soluções de socorro "revisionistas", mas intelectual, reproduz os debates do século XIX sobre a da mesma natureza que a tese ortodoxa dos hons ve- Revolução Francesa, e principalmente sobre o Terror. lhos tempos, pois destinada a desculpar o regime em Pensar o Terror foi, para os republicanos,' desde o co- sua essência. Um dos achados mais interessantes des- meço do século XIX, uiha obsessão política e filosófi- se modo de pensar foi o "culto da personalidade" como explicação do terror de massa: conceito tomado de fora da doutrina marxista, e que não oferecia, por- 1. "Quando preconizamos as necessidades do Terror de tanto, nenhuma qmeaça de erosão pelo comentário 1793, achamos necessário acrescentar que não quere- dos textos, sem relação lógica, aliás, com a questão a mos recomeçá-lo. Essa asserção é pueril. Não ser resolvida, e tirando seu valor justamente dessa es- podemos, assim, convencer o mundo, e o mundo tem razão; pois sabe que ninguém se cura de uma antiga tranheza, pois se trata de conjurar, não de explicar. O incliiiação, a não ser que seja condenado por suas Goulag não estava hgado nem à ditadura política do ações anteriores. Imaginar o contrário é um erro tão partido comunista, à coletivização dos meios de grave em moral como em política". Edgar Quinet, prefácio a La Révolution Ftançaise, edição de 1867, p.30. 17 18 Prefádo A Revolução em debate ca, frente à tradição conservadora e contra-revofuciò- como Tocqueville, mas republicanos e até mesmo re- nária. Os liberais, principalmente os homens de 1830, publicanos avançados, corno Edgar Quinet J Com efei- fizeram dele um desvio do caminho triunfal tomado to, essa questão aparentemente surpreendente, pois pela nação em 1789. Os democratas e os socialistas ab- supõe uma relação entre duas ordetis de fenômenos solveram-no em nome das circunstâncias e da salva- vividas como mutuamente excludentes (mas é justa- ção pública, retomando os próprios termos dos atores mente por isso que ela é científica), é o centro da dis- do ano II. Mas o que impressiona, ao se reler as gran- cussão histórica e política sobre o Terror, em pleno se- des discussões históricas do século XIX sobre a Revo- gundo Império, quando aparece o livro de Edgar Qui- lução Francesa, e ao reportá-las às que envolvem a net (1865). E, diferentemente das imprecações atuais Revolução Russa do século XX, é o quanto o debate sobre o "poder" em geral, ela é colocada em termos ao perdeu hoje sua riqueza filosófica e conceituai. mesmo tempo claros e profundos, comportando, de Os homens do século XIX usavam e abusavam, imediato, a interrogação essencial sobre o sentido e a eles também, da explicação-justificação pelas "cir- natureza do fenômeno revolucionário. cunstâncias", e não se teria dificuldade em mostrar o Tocquevüle perguntou-se por que a Revolução parentesco que existe, nesse particular, entre uma Francesa tevé como principal resultado refazer a obra parte da tradição da esquerda em relação à Revolução da monarquia absoluta, isto é, o Estado administrati- Francesa e a tradição comunista em relação à Revolu- vo centralizado. Em outros termos: por que Bonapár- ção Soviética. No gênero do que se poderia denominar te realiza um sonho de Luís XIV. Ele vê aí a obra de de apologia incondicional ou defesa vergonhosa, uma dialética igualitária, que enfraquece a sociedade Georges Cogniot ou Jean Ellenstein não inventaram em benefício do poder central, da qual a Revolução nada: elas aparecem muito cedo, no século XIX, na exprime uma espécie de apogeu. Quinet acrescenta a historiografia jacobina do Terror. Mas a grapde dife- esse conceito a tomada em consideração do nível políti- rença é que, no século XI?Í, essa historiografia não rei- co stricto settsu: a seus olhós, a Revolução, na sua fase ter- na inconteste sobre os intelectuais republicanos; e principalmente porque ela se choca com uma questão 2. "Será que o futuro da Europa é produzir imensas claramente colocada, ainda antes que TocqueviUe te- democracias servis que gravitarão incessantemente nha feito dela o coração de seu livro célebre: qual é o para o arbítrio de onde saerrí e para o quaFretornam, vínculo que une a Revolução Francesa e a instauração enquanto a verdadeira democracia livre irá expandir- (ou a restauração) de um regime político despótico? se nos vastos desertos desconhecidos da América do Norte? Os fatos de hoje parecem arrastar com eles Questão que os intelectuais franceses exuma- essa conseqüência. Mas é perigoso demais profetizar ram tardiamente, e um poúco histericamente, em a servidão; seria doloroso demais para mim acomo- anos recentes, e cuja genealogia suspeito que não se dar a ela minha linguagem. Tudo o que posso dizer é preocuparam muito em refazer: pois eles teriam des- que, para impedir essa volta ao tipo primitivo, seria coberto que ela tinha sido construída, em termos infi- necessário um cultivo incessante das forças da alma; e, ao contrário, a arte de abafar as almas chega, na nitamente mais elaborados do que hoje, por autores Europa, a uma perfeição que o futuro não ultrapas- liberais do século XIX, não somente conservadores. sará " (Edgar Quinet, op. dt., p.205). 19 20 Prefádo capítulo 1 rorista, retoma, sob o velho pretexto da salvação públi- A REVOLUÇÃO ca, que já servirá muito à monarquia absoluta, a prática arbitrária do Absolutismo. O morto agarra o vivo : Ro- SEM O TERROR? bespierre reencarna Richeüeu. É nessa medida que o exilado do segundo Império escreve realmente, como o DEBATE DOS HISTORIADORES ele pretende, urna historia crítica da Revolução France- DO SÉCULO XIX sa. Ê o que espanta não é que ela choque urna parte dos republicanos da época. O espantoso é que ela acrescen- te uma outra parte e provoque um verdadeiro debate sobre o fundamental do problema. Ao longo de todo o século XIX, os debates sobre Em realidade, um republicano dessa época teria o Jacobinismo exprimem essencialmente as opiniões e tido bem menos dificuldade em conceituar o naufrá- os julgamentos pró ou contra a ditadura do ano II, o gio da experiencia comunista a que assistimos do que governo revolucionário da salvação pública e o exer- um intelectual de esquerda de nossos dias. Escravidão cício do Terror. O Jacobinismo é menos um conceito e democracia nos parecem incompatíveis. Esquece- do que um período, menos um objeto de análise do mos, ou acobertamos, esse conceito de "democracia que um aconteciniento de nossa história: aquele que servil", através do qual os liberais e republicanos do une o culto do Estado e o culto da nação em torno de segundo Império, instruídos pela experiência, que- valores igualitários e da luta pela salvação pública. riam dizer que uma sociedade excessivamente iguali- Essa constelação indistinta permanece o ponto de par- tária e de regime poKtico despótico era não somente tida obrigatório de toda a história do Jacobinismo. concebível, mas verossímil. Por que o esquecemos, Nesse sentido muito geral, ela oferece o motivo pelo. que o acobertamos, poderia ser o tema de uma pelo qual a Revolução Francesa mais atingiu os espíri- história a ser escrita: a Revolução Russa e o marxis- tos, o mistério por excelência de seu radicalismo, seu mo-leninismo teriam nela o papel principal. E, por período de culminação e, portanto, sua imagem clás- outro lado, esse ramó do marxismo que constitui a so- sica: depois do 9 Termidor, a historiografia liberal é cial-democracia revelou-se muito menos agudó na muito naturálmente a primeira a colocar a questão do crítica da política revolucionária do que aquele ramo "Jacobinismo", já que ela pode investir nisso sua rejei- ’da Revolução Francesa representado pelos republica- ção da tirania robespierrista; ela precisa até recons- nos liberais. Temos hoje os resultados: "alto!" ao truir toda a história da Revolução para tornar inteligí- Goulag, mas onde se vê uma análise? vel, ao mesmo tempo que seus benefícios, esse episó- Diante de um mundo que não compreendemos, dio deplorávei. Pois a execução de Robespierre colo- porque acreditamos que ele fosse impossível, sabere- cou o problema do Jacobinismo em termos que vão mos recuperar a compreensão do poKtico? Proponho, dominar por muito tempo, talvez até nós, a reflexão para começar, a volta aos bons autores do século XEX. política e intelectual sobre a Revolução; problema que pode exprimir-se em termos cronológicos sob a forma; 23 21