Claudio Thomâs Bomstein A REFORMA AGRÁRIA NA NICARÃGUA centenário de morteiro lobato (;hpyrz'gÀr© Claudio Thomás Bomstein (;apa : 123 (antigo 27) Artistas Gráficos Revüão : José W. S. Morais Orlando Parolini ÍNDICE Introdução 7 Alguns problemas gerais de uma reforma agrâ- rta 12 Situação na Nicarágua antes do triunfo 25 Primeiras medidas 36 Idéias básicas da reforma agrária na Nicarâgua 52 A lei de reforma agrária 76 Indicações para leitura 88 gF 8 jgu editora brasiliense s.a. 01223 -- r. general jardim, 160 são paulo -= brasil INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é apresentar algumas idéias e características da reforma agrária na Nica- râgua. Pelo fato de esta representaru m processo relativamente recente, nada definitivo, nenhuma con- clusão final pode ser feita. Cabe lembrar que, em- bora já houvesse desapropriações e resoluções ante- riores, a lei de reforma agrária surge tão-somente em julho de 1981, isto é, pouco tempo passou-se desde o seu aparecimento. O fato de a reforma agrária na Nicarâgua repre- sentar um processo relativamente recente tem, no entanto, a grande vantagem de trazer à tona uma série de discussões, de problemas básicos, de ques- tões de princípio e dúvidas gerais, que provavelmente jâ não surgiriam num estágio mais avançado. Estas ,4 Wz'/ma, Mera e Pedra que, dúvidas, problemas e discussões,j ustamente pela sua cada qual à sua maneira, contri- buíram decisivamentpea ra a rea- generalidade, pelo que têm de básico, transcendem bastante o âmbito nacional, sendo de interesse para lização deste trabalho. 8 Claudio Tramas Bornstein .4 R(:forma .4grárfa pza. Nlcarágua 9 todo o continente latino-americano. Em maior ou declarações,d iscursos, entrevistase outros escritos menor grau, e, ressalvando questões específicas, de- de integrantes do governo sandinista, bem como em paramo-nos com problemas semelhantes também no documentoso ficiais. Evitamos, sempre que possível, Brasil. Justifica-se assim o interesse de uma analise l argumentar em cima de uma experiência pessoal, do processo nicaragüense de reforma agrária, jâ nes- por acreditarmos que esta teve um âmbito limitado, ta etapa inicial. bem como evitamos o recolhimento de depoimentos Este trabalho se originou a partir de uma visita à não escritos, não oficiais, por temermos que estes Nicarágua de novembro de 1981 a fevereiro de 1982, possam transmitir uma visão particular e individual visita esta que teve como finalidade principal minis- do processo em curso na Nicarâgua. Como poderá trar um curso sobre modelosm atemáticose m pla- ser verificado, grande parte do material escrito ba- nejamento agrícola na Universidade Nacional Au- seia-see m declaraçõesd o ministro da Agricultura, tónoma da Nicarâgua (UNAN). Nesta visita, além J. Wheelock Român, que, além de profundo conhe- dos inúmeros contatos feitos, experiênciase ma- cedor da situaçãon o campo, é um dos principais terial recolhido, foi possível participar em Maná- teóricos da revolução sandinista. gua do Encontro Continental de Reforma Agrária O presente trabalho não se detém mais ampla- e MovimentosC amponeses.E ste encontro, que teve mente na discussão teórica da importância de uma a duração de uma semana, reuniu representantes de reforma agrária, nem analisa as razões que tornam movimentos camponeses, sindicalistas, bem como imperiosa uma profunda transformação das estru- pesquisadores e cientistas de praticamente toda a turas no campo Pressupõe-se que o leitor esteja con- América (incluindo os EUA), tendo sido profunda e vencido destas necessidades. Muito mais do que uma exaustivamente discutidos os problemas associados a discussãod as justificativas de uma reforma agrária, uma reforma agrária. Foi a partir destee vento, que uma descrição do longo caminho que a antecedeu, ou lamentavelmente não contou com a participação de re- então, uma profunda análise teórica sobre a situação presentantes de movimentos camponeses do Brasil, no campo, este texto visa apresentar um processo de que surgiu a ideia da importância de se tentar transmi- ímp/ablação e concrerüação de uma reforma agrá- tir ao leitor brasileiro algumas das experiências de re- ria, seus objetivos, suas dificuldades e seus sucessos. forma agrária na América Latina (Cuba, Nicarâgua, Por outro lado ele possibilita também um con- Peru, Bolívia,C hild, Méxicoe tc.), algumasm ais, tato com o atual processo revolucionário nicaragüen- outras menos bem-sucedidas. se, permitindo assim um melhor conhecimentod este Como pode ser verificado pela bibliografia, para importante movimento na América Central . escrever este texto baseamo-nos em grande parte em Para encerrar estai ntroduçãoc abe uma impor- 10 Claudio Tramas BoT'7tstein .4 Peão/ma .4grána Ha Nicarágua 11 tante observação, que visa advertir o leitor contra Esperamos, através da analise da experiência conclusões apressadas. Evidentemente esta analise nicaragüense,t er contribuído de alguma forma para da reforma agrária tem como ponto de referência a uma discussãod a questãoa grária no Brasil. E des- Nicarâgua de hoje. A maneira de implantar esta necessário frisar a importância que a agricultura de- reforma, seus objetivos, seus mecanismos, sua estra- ve ter em qualquer prometod e emancipação, em qual- tégia, rêfletem o direcionamento atual da revolução quer proposta que diminua a dependência externa do sandinista. Dentro de uma dinâmica própria de to- Brasil. E evidentementea reforma agrária tem um dos os processos revolucionários, nada obriga que papel relevante em qualquer prometoo u proposta au- esta direção seja mantida durante os próximos tem- têntica desse tipo. pos. Pode haver guinadas mais ou menos violentas, assim como uma radicalização ou um abrandamen- to. O processo pode ser acelerado, aprofundado ou não, tudo isto até como consequência de circunstân- cias externas ao país. Evidentemente todas estas mu- danças poderão refletir-se mais ou menos radical- mente sobre a situação no campo, podendo vir a alterar mais ou menos significativamentei mportan- tes aspectos da presente analise. Por exemplo, o lei- tor notara ao longo deste texto a preocupação que o processo anuald e reforma agrária tem em não afastar a iniciativa privada, ou seja, em não afastar a figura do empresárior ural. Este fato é coerentec om o objetivo atual de se implantar um regime de econo- mia mista no país. Ê evidente que alterações neste prometoq, ue podem inclusive ser causadas por um aprofundamento do processo revolucionário, podem afetar decisivamente o papel desempenhado por esta iniciativa privada. Neste trabalho nos atamos estri- tamente a uma analise da situação atual, dando na- turalmente alguns dados acerca do passado. Evita- mos aqui qualquer especulação futurológica. ,4 Re:forma .Agrária zza. Nlcarágua 13 políticas específicas de cada região. Como exemplo da importância da adequação da reforma agrária a cada caso específico examinemos o caso da grande plantação de carâter sazonal, agroex- portador. Na Nicarâgua estas características são as- sumidas principalmente pelo cultivo do algodão e da cana-de-açúcar. Para estes cultivos as unidades pro- dutoras são bastante tecnificadas, utUizando alta densidaded e capital, maquinas, e fazendo usa inten- ALGUNS PROBLEMAS GERAIS sivo de insumos, como fertilizantes, defensivos etc. A DE UMA REFORMA AGRÁRIA sazonalidaded o produto faz com que ocorram picos de demanda de mão-de-obra na época da safra. As- sim, a maior parte dos trabalhadoresn ão é mão-de- obra permanente, provindo, principalmente antes da O objetivo desta seção é analisar alguns pro- revolução, das cidades e de minifúndios improdu- blemas, algumas dificuldades encontradas ao se fa- tivos. Estes trabalhadores não permanentes, que são geralmentep agos por tarefa ou por jornada, têm um zer uma reforma agrária. Não pretendemos aqui fa- zer uma longa análise teórica, nem esgotar o assunto. regime de trabalho que se aproxima muito mais do Meramente, analisando alguns casos concretos que- operariado do que do camponês. Suas reivindicações são basicamente salariais, e poucos têm reivindica- remos mostrar os cuidados necessários, bem como ção por terras. citar alguns problemas que podem ser encontrados. É fácil ver que uma reforma agrária baseada na Uma primeira consideração diz respeito à im- portância da especificidade da reforma agrária para repartição das terras seria, neste caso, extremamente cada país, para cada região, isto é, a importância de improdutiva. Além de não atender às reivindicações mais importantesd os trabalhadores, ela poderia o processo levar em conta caracteríscas particulares e mostrar-se contraproducente em termos de divisão especiais de cada setor. Não existe uma receita uni- social do trabalho, levando a formas mais individua- versal, um método geral para fazer uma reforma listas de produção. Este último fato pode representar agrária. Universal e geral é somenteo fato de que um maior atraso não só em termos políticos, como uma reforma agrária será tanto mais perfeita quanto também em termos de produtividade. Cabe lembrar menos universal e geral ela for, isto é, quanto mais se adaptar a condições sócio-económicas, a condições que a divisão social do trabalho e formas coletivas de 14 Claudio Tramas Bomstein .4 Rlláorma .Agrária na Nicarágua 15 produção levam normalmente a uma maior eficiência relações de produção pré-capitalistas, muitas vezes e maior rentabilidade. estruturas praticamente feudais. Não que a explo- Wheelock, atual ministro da Agricultura, cita ração do trabalhador Soja menor, mas indubitavel- um caso bastante interessante que se passou durante mente, a organização e as formas de administração a luta revolucionária na Nicarágua. Trata-se de uma são mais modernas e mais aperfeiçoadas, a rentabi- fazenda de algodão de alta produtividadeq ue foi lidade e produtividade são maiores, devido a um desapropriada e entregue a uma comunidade de emprego intensivo de insumos e técnicas modernas, camponeses. Pouco tempo depois os camponeses es- devidoa uma maior mecanização e emprego de má- tavam plantando milho em vez de algodão, o que quinas e equipamentose graças a uma maior espe- implicou um grave dano económico. Várias razões cialização de cada trabalhador nas diversas tarefas, ou podem ser dadas para esta situação. Uma delas po- sqa, graças a uma maior divisão social do trabalho. deria ser o fato de o camponês ser extremamente Ê fácil notar que uma reforma agrária baseada averso ao risco. E é fácil perceber-se que o milho, que numa visão simplista de partilha de terras pode com- serve basicamente para o autoconsumo, não estando prometer definitivamente todas estas formas moder- tão sujeito quanto o algodão a flutuações de preço e nas de organizaçãoe administração,m uitas vezes de demanda, representau m investimentom ais se- tornando inviável a aplicação de técnicas e insumos guro, embora talvez menos rentável. Além disso, ao modernos, dificultando o processo de mecanização camponês, pelo menos num estágio mais primitivo da agricultura. A própria especializaçãod o traba- do seu desenvolvimento, é mais simpática a idéia de lhador em uma determinada tarefa, que é indubita- produzir para o seu consumo, garantindo assim pelo velmente uma conquista em termos de produtivi- menos a sua subsistência, como é o caso do milho, do dade, pode ser posta a perder se fracionarmos uma que a ideia, jâ bem mais abstrata, de produzir para a fazenda, onde jâ foram atingidas formas coletivas de comercialização. trabalho, em uma quantidade grande de pequenos Para verificar com mais detalhe a importância produtores isolados. da adequaçãod a reforma agrária a condiçõess ócio- Vejamos um outro exemplo dos cuidados que econõmicas específicas de cada região, examinemos devem ser tomados para não afetar a rentabilidade mais a fundo a grande plantação moderna de caráter da grande plantação de carãter sazonal, que desem- sazonal e agroexportador.E stas empresass ão regi- penha na Nicarâgua papel relevante, gerando divisas das por uma estrutura mais nitidamente capitalista, e recursos valiosos. E sabido que através da entrega o que representa, sem dúvida, um avanço em rela- de terras, formação de cooperativas, facilitando o ção a outras empresas agrícolas, onde predominam crédito ou dando acesso a técnicas mais modernas de Claudio Thomás Bornstein 16 .4 Rl:forma .4gr(iria zza ]Vlcarágua 17 produção, esta-se contribuindo decisivamente para um processo mais global de desenvolvimentod a socie- fixar o homem à terra que ele trabalha, pelo fato de dade. se melhorars uas condiçõesd e vida e de trabalho. Cabe lembrar que a partilha das terras tem sido Com isto, no entanto, esta-see liminandou ma fonte utilizada com os fins mais escusos. Frequentemente é de mão-de-obra que justamente atendia à grande empregada como meio capaz de aliviar tensões so- plantação na época da safra. Os picos de mão-de- ciais, ou então, como maneira demagógicad e conse- obra que surgiam na colheita do algodão ou na época guir um apoio fácil no meio rural. Até mesmo So- do corte da cana eram justamente satisfeitosp ela moza, na costa atlântica da Nicarâgua, fez a sua massa de desempregados e subempregados do campo ''reforma agrária'' , entregando terras às famílias da e da cidade. Uma vez que através de uma reforma sua Guarda Nacional. Estas medidas se fazem sentir agrária esta massa deixa de existir ou diminui sensi- até hoje, pois, contribuíram sensivelmentep ara criar velmente, torna-se necessário criar outras alterna- na região uma oposição à revolução sandinista. E tivas para satisfazer a esta demanda de mão-de-obra. fácil perceber-se que estas famílias de pequenos pro- Importante numa reforma agrária também é prietários, muitas delas vivendo em situação de ex- procurar favorecer a associatividade do homem do trema miséria, se tornam presa fácil de agentes con- campo, dando, na medida do possível, preferência a tra-revolucionários que divulgam informações falsas formas coletivas de produção. Não somente porque acerca da revolução sandinista, infundindo nos cam- as formas mais individualistas de produção, como, poneses o medo de perderem a sua propriedade. por exemplo, a propriedadef amiliar ou o minifún- Medidas destinadas a favorecer a associativi- dio, costumam ter baixa produtividade, por impossi- dade do homem no campo, bem como a ênfase dada bilitar a utilização de meios de produção mais mo- a formas coletivas de produção, esbarram em uma dernos, por tornar mais difícil a mecanização, como série de dificuldades, das quais uma das mais graves também por favorecer a formação de uma mentali- consiste no carâter individualista, personalista, do dade individualista no camponês, que atenta contra camponês minifundiârio, acostumado, por tradição, qualquer prometom ais progressista de desenvolvi- a um processo produtivo individual (unifamiliar). mento social. Santos de Morais faz uma analise bastante deta- O simples processo de partilha das terras pode, lhada do seu comportamento ideológico e o classifica além de dar origem a uma grande quantidaded e como sendo de tipo artesanal. Realmente, este cam- minifúndios improdutivos, contribuir para a forma- ponês, assim como o artesão, desconhece a divisão ção de uma mentalidade de pequeno proprietário social do trabalho. Ê ele que sozinho, ou com sua no camponês, o que pode representar um freio para família, começae termina o processop rodutivo. E 18 19 Ctaudio Thom&s Bornstein .4 Rí:forma .Agrária na .Nlcarágtia ele quem limpa, ara a terra, semeia, colhe e muitas mos modernos, são em grande parte importados, vezesc onsomea produção. Tal comportamento.c a- cabe, por outro lado, tomar cuidado para evitar uma racterizado pela auto-suficiência, pelo isolamento e excessiva dependência em relação ao exterior. pelo individualismo, muitas vezes dá origem a uma Como exemplo adicional da importância de se aversão, a uma reação contra formas associativas. considerar aspectos típicos de cada região e cada sejam elas sindicatos, cooperativas etc. situação cabe mais uma vez citar um caso mencio- Santos de Morais desenvolveu uma série de cur- nado pelo ministro da Agricultura, Wheelock, relativo ao norte da Nicarâgua. Nesta região predominam as sos, constituindo o ''Laboratório Experimental'', que visam auxiliar o camponês a superar a sua ''menta- fazendas de café, coexistindo no entanto com outras lidade artesanal'' pequenas e médias propriedades rurais. Um outro fator que necessariamentet em de ser As relações de produção nesta região corres- lembrado numa reforma agrária, é que esta freqüen- pondem a uma estrutura pré-capitalista, incluindo temente implica mudanças radicais na estrutura pro- formas praticamente feudais. As formas de produção dutiva de uma determinada região, que muitas vezes incluem a parceria, regimep elo qual o proprietário entregau ma parte das suas terras ao camponêse m resultam totalmente inúteis se.não forem acompanha- das das respectivasa daptaçõese melhoramentosn a troca de uma parcela da produção. Outra prática sua infra-estrutura. Wheelock cita um caso na costa comum na região consiste no arrendamento de ter- atlântica onde os camponeses, que, em média, tinham ras, pratica esta muitas vezes utilizada pelo pequeno 0, 2 hectare, receberam para cultivo aproximadamente proprietário, que já não tendo mais condições de 2 hectares. A ausência de estudas, meios de trans- subsistir às custas de sua própria terra, seja pela falta porte adequados, bem como as deficiências na estru- dos meios de produção necessários, seja pela pe- tura de armazenagem na região, que em grande par- quena extensão da terra, arrenda-a a um agricultor te se assemelha à nossa selva amazónica, tornaram de maior poder económico, indo muitas vezes traba- totalmente infrutíferos estes esforços, havendo como lhar para este último. Ou sela, não só Ihe vende os conseqüência uma perda de 80%o da produção. meios de produção, no caso a terra, como Ihe vende a Uma reforma agrária implica portanto, tam- própria força de trabalho. bém, melhorar a infra-estrutura no campo: construir Ê fácil ver as consequências ruinosas que teria a uma rede de estudas, silos e armazéns, melhorar a aplicação cega e inflexível de regras simplistas como comercialização, dar assistência técnica, crédito, fa- ''a terra a quem a trabalha''. No último caso exami- cilitar o acesso a insumos modernos, implementar as nado, isto significaria transferir a propriedade do mi- técnicas de produção etc. Como estas técnicas, insu- nifundiário, impossibilitadod e trabalhar sua própria