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A odisséia dialógica de Platão: as aventuras e desventuras da dialética socrática PDF

338 Pages·2004·1.753 MB·Portuguese
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A odisséia dialógica de Platão: as aventuras e desventuras da dialética socrática do Parmênides ao Crátilo, ou o percurso de Sócrates de 450 a 399 livro segundo da tetralogia dramática do pensar 2 PRÓLOGO A SACERDOTISA E A ORDEM DAS FOLHAS DO DESTINO Verás no imo rochedo a vate insana Que os fados canta, letras, nomes versos Grava e encomenda as folhas e os numera. Na gruta eles fechados não se bolem, Em ordem se mantem; mas, se uma aragem Da porta os gonzos vira, encana e as tenras Folhas baralha, avoejar a virgem Pela caverna os deixa, nem mais cura De os colher e dispôr; e os inconsultos Vam-se, a cova e a Sibila esconjurando. (Virgílio, Eneida, III, 439 e seguintes*) Nessa passagem acima da Eneida, conta-se a respeito de uma sacerdotisa que escreve o destino dos homens em pequenas folhas. Essas folhas soltas são ordenadas e dispostas, cuidadosamente, pela sibila. Ali estariam reveladas as coisas futuras, o devir de nós, seres efêmeros. Quando um pobre mortal, porém, chega à caverna da profetisa, no próprio momento em que o portal se entreabre e penetra uma primeira rajada de ar, as folhas do destino, imediatamente, são desordenadas pelo vento e aquele que lá chega não conseguirá vislumbrar nenhuma das verdades ali inscritas. Acreditando que nada existe a ser descoberto naquelas folhas desordenadas, os mortais que ali chegam, impacientes, se retiram sem perceberem que acabaram de dar as costas à revelação clara do seu próprio futuro. Conhecendo os segredos dessa caverna, um velho sábio recomenda a Enéias, o herói do poema, que, quando lá chegue, não seja afoito e não se retire de maneira tão apressada da contemplação daquelas folhas esvoaçantes: “dali não partas, sem que a teus rogos ela a voz desprenda e oráculos resolva” (III, 451-453). A verdade profética assim ressurgirá se, pacientemente, rogarmos à sibila a revelação da ordem originária * Tradução de Manuel Odorico Mendes. 3 das folhas. Somente possuindo tal tranqüila paciência o herói se apossará do caminho para a realização do seu melhor futuro. Acreditamos que esse episódio é paradigmático para pensarmos o que ocorreu e o que ocorre com o destino de muitas obras filosóficas. Conforme o ordenamento (ou desordenamento) das folhas de um autor, se nos desvelará ou não a ação material de dizer (lexis) que estaria inscrita originariamente em suas palavras. Quantas obras filosóficas não foram embaralhadas (e, assim, veladas) por cortes artificiosos e ordens externamente sobrepostas? Ordenamentos cronológicos ou histórico-biográficos, ordenamentos doutrinários ou conceituais, disposições estruturais das mais diversas, não são formas múltiplas de abrir o portal da caverna, submeter as folhas ao vento e embaralhar a materialidade da lexis, ação de dizer originária presente em qualquer emissão discursiva? Se isto é verdade para todo ato material do dizer, torna-se particularmente importante na leitura de textos filosóficos e, mais ainda, no decifrar daqueles textos que, eles próprios, postulam (e jogam) com a ordem e desordem das suas próprias palavras. Este é o caso dos Diálogos de Platão. Durante séculos os Diálogos foram submetidos a múltiplas rajadas de vento que entram (na caverna) com os passos (e olhos) silenciosos de cada intérprete. As suas páginas, como as folhas do destino, foram desordenadas pelo vento dos séculos e não conseguimos mais reencontra-las, na sua inscrição material, na sua disposição originária. Seria possível reler os Diálogos a partir apenas da observação dos sinais deixados, como lexis, pelo seu demiurgo-autor, Platão? Seria possível assim reencontrar, desta maneira, uma certa disposição ( diatáxis) gravada ali na própria ação de dizer ou lexis? Procuramos nesta obra seguir esse caminho: fechar cuidadosamente a caverna, impedir a entrada das correntes externas de ar e reordenar as folhas, guiados apenas pelos sinais deixados pela benevolência da nossa única sacerdotisa, a lexis, única sibila fiel à palavra do deus-autor. Mas, por isso mesmo, este livro, em certo sentido, não passa de uma mera repetição, cópia ou resumo dos Diálogos de Platão. Segundo o caminho 4 de leitura escolhido, nestas páginas, em grande parte, apenas reproduzo quase literalmente os textos do autor. Junto à monotonia das paráfrases, apenas intercalo uma ou outra questão que surge do próprio texto e que, em geral, é respondida, a seguir, pela própria seqüência dialógica. Quanto ao ordenamento dos Diálogos, sobretudo, nada de externo foi proposto ou sobreposto. Seguindo aquele sábio conselheiro do herói antigo, pacientemente, re-dispomos as palavras desordenadas pelo vento dos séculos, e procuramos a ordem imanente de apresentação dos Diálogos, uma ordem inscrita ali, internamente, na sua própria lexis originária. Simplificando bastante, podemos dizer que a nossa leitura segue a ordem dita “dramática”, ou seja, a temporalidade dramática inscrita na própria cena dialógica. Desta maneira, este livro é assim quase um mero resumo dos Diálogos na sua ordem dramático-originária, reconstituída através dos sinais, aqui e ali, deixados pelo autor. Por isso mesmo, este livro, pela sua simplicidade, pode ser lido pelo público não especializado em Filosofia Antiga até como uma obra introdutória a Platão. Posso dizer que não acrescento quase nada às palavras inscritas, ali, nos manuscritos de Platão. Apenas contemplo essas inscrições simbólicas com os meus próprios olhos e as reproduzo tautagoricamente. De maneira paradoxal, porém, esta absoluta modéstia metodológica torna-se logo contraditória com as interpretações dominantes. Pois, este livro, apesar de ser uma mera reprodução do texto de Platão, altera totalmente a interpretação tradicional dos Diálogos e, se levado a sério, seria uma mudança de paradigma na hermenêutica de Platão e, conseqüentemente, naquela do platonismo e da história da metafísica ocidental. Os historiadores da Filosofia e, particularmente, os platonistas perceberão que este Platão gerado da quase monótona repetição literal dos Diálogos, faz desaparecer o Platão tradicional ensinado na disciplina História da Filosofia, suas doutrinas há muito ensinadas, e desaparece até o próprio autor Platão, como e enquanto sujeito soberano de sua obra. Estes especialistas, porém, talvez, nem sequer tenham a paciência de ler o ‘meu’ texto, sobretudo, porque já o conhecem, afinal, é a mera repetição daquele ‘de’ Platão, um texto que tantas vezes leram e comentaram, mas, 5 acrescento, se o conhecem, se o leram e o comentaram, não foi nesta ordem e nem sob esta disposição das suas temporalidades. A ordem imanente da temporalidade da lexis, quando radicalmente seguida, altera as outras temporalidades pressupostas em qualquer discurso e altera radicalmente o jogo geral da significação, transmutando, assim, o sentido que aprendemos a ler naquelas palavras (des-ordenadas lexicalmente). Por isso, peço a estes leitores (platonistas) que tenham a paciência de reler as mesmas palavras, nesta ordem imanente. Certamente, reconhecerão que apesar da monótona fidelidade o resultado, em termos de conteúdo, é radicalmente diferente das leituras construídas pelas mais diversas correntes interpretativas da tradição. Voltando aos leitores não especializados, imagino que eles poderão ler este texto e se apaixonarem com as páginas dramáticas dos Diálogos, agora redescobertas enquanto uma longa aventura secreta ou, conforme o nosso título, enquanto a odisséia dialógica de Platão. Veremos como se mostra tragicamente dramática a aventura do pensar. Acredito, assim, que um dos resultados desta abordagem metodológica é restituir movimento, mistério e vida a um texto que há muito se achava envolvido em abstratas discussões de detalhes e já de significação meramente erudita. Penso, nessa direção, que, independentemente da validade acadêmica deste livro (e, assim, do seu valor de verdade institucional), escrevi o que eu sempre quis escrever: um romance filosófico a partir de Platão, ou melhor, talvez, uma colagem filosófica com as palavras dos Diálogos “de” Platão. Neste sentido, realizei um forte desejo (filosófico) que se arrastou por mais de vinte anos: reencontrar um pouco a força sensível e corporal do pensamento. Trata-se, é verdade, não de um desejo (exclusivamente) subjetivo, mas, muito mais, a repetição de um gesto que perpassa secularmente a reflexão filosófica ocidental: encontrar alguma forma ou talvez algum estilo no qual o sensível não seja antagônico ao conceito e sim, ao contrário, a sua forma suprema de expressão. Mas, para isto, ainda aqui, talvez, nada mais faço que, mais uma vez, parafrasear a Platão, ou melhor, o lógos, sujeito sensível e corporal que nos Diálogos fala por ele e através dele. Assim, repetimos sempre durante a nossa leitura as palavras epigráficas: 6 “...onde o lógos como um sopro nos levar ali é preciso ir...” Caso esta aventura do próprio lógos venha a ser bem sucedida, talvez, possamos ao fim dela sonhar que a sibila da lexis nos tenha ensinado realmente a magia da disposição originária das palavras platônicas. Nesse caso, ainda que fosse apenas por alguns instantes, como na forma arcaica de dizer alétheia, encontraríamos a força para fundamentar, sustentar e anunciar revelando: pelo caminho da lexis dos Diálogos é possível chegar ao próprio método (dialético) de superação da fragmentação (metafísica) das temporalidades contidas em todo discurso filosófico. Nesse sentido, partindo da temporalidade da léxis (ação de dizer), de forma imanente, poder-se-ia chegar à temporalidade conceitual da nóesis (ação de pensar), desta chegar-se-ia à temporalidade da gênesis (ação da origem, gênese do tempo conceitual, gênese histórica de um saber, de uma época e gênese do percurso vivido, sobretudo, o percurso biográfico do próprio autor da lexis), da temporalidade da gênesis chegar-se-ia, por sua vez, à temporalidade da poíesis, ou a ação material de produzir uma obra, e a partir desta temporalidade compreender-se-ia, ao menos em grande parte, como se constituiu a própria lexis da obra examinada. Teríamos, assim, o fim do processo de leitura como interpretação, sobreposição e fragmentação das temporalidades do discurso. Tentamos, nesta nossa leitura dos Diálogos, dentro do possível, percorrer este círculo imanente das temporalidades – lexis-nóesis-gênesis- poíesis-lexis. Pensamos, no entanto, haver cumprido, razoavelmente, apenas os dois primeiros momentos (léxis-nóesis), tarefa que já se mostrou longa e exaustiva. Quanto aos momentos seguintes (gênesis-póiesis-), permaneceram apenas esboçados na conclusão do livro, ainda que, ao serem metodologicamente postos entre parênteses durante toda a leitura, enquanto pressupostos, estiveram sempre presentes. De qualquer forma, assim, este livro permaneceu, de alguma maneira, declaradamente inacabado. Este caráter de viagem inconclusa, porém, justifica-se por diversas razões (inclusive, algumas, objetivamente postas) e, talvez, insuperáveis, vinculadas à distância temporal que nos separa de Platão. Por exemplo, a própria impossibilidade de conhecer, 7 com precisão, em relação aos Diálogos, muitos acontecimentos que envolvem as temporalidades da gênesis e da poíesis. Provavelmente, o mesmo método aplicado a um autor moderno poderia percorrer a totalidade do círculo. Em nenhum autor, porém, como em Platão, talvez se desenhem de forma tão clara e privilegiada a temporalidade da lexis e aquela da nóesis, a tal ponto que pela lexis somos conduzidos, sem esforço, de forma imanente ao tempo lógico ou ação de pensar. Como se viu, na primeira parte desta tetralogia, Em busca da odisséia dialógica, lá sentimos a obrigação de realizar alguns passos preparatórios indispensáveis. Estes movimentos já cumpridos, a seguir, então, efetivamente damos a palavra e a autonomia à própria imanência contraditória da lexis. Deusa nascida de Zeus, de algum ponto nos conta o que queiras. (Homero, Odisséia, I, 10) São Paulo, 1 de março de 2004. 8 AS AVENTURAS E DESVENTURAS DA DIALÉTICA SOCRÁTICA “Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas de Tróia; muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus costumes, como no mar padeceu sofrimentos inúmeros na alma, para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta.” (Odisséia, I, 1-4) 9 SEÇÃO I O CAMINHO SUBJETIVO DO JOVEM SÓCRATES CAPÍTULO I À PROCURA DA VERDADE ESQUECIDA: AS IDEÍAS § 1. Da história da physis ao sonho das idéias Em 399, na prisão, no seu último diálogo, pouco antes de beber a cicuta, Sócrates, cercado pelos seus mais fiéis amigos e discípulos, recorda a sua juventude e os seus primeiros estudos. "Escuta, então", diz ele a Cébes, " o que vou contar"(Fédon, 96a5). Narra Sócrates, a seguir, que nas suas primeiras indagações, acompanhando os filósofos da época, dirigira uma grande atenção a pesquisas sobre a natureza (physis) : "quando eu era jovem, com grande curiosidade e espanto, apaixonei-me por esta sabedoria que chamam 'história da natureza' (peri; fuvsew" iJstorivan)"(Fédon, a6-7). Esta ciência parecia-lhe extremamente esplendorosa, "conhecendo as causas de cada coisa, porque cada coisa nasce, porque perece e através do que participa do ser"(a8-9). Examinava então das mais diversas formas as múltiplas questões que surgiam: "Seria pelo efeito da putrefação, da qual participam o quente e o frio que, como muitos pretendem, se constituem os animais?"(96b1-2). Perguntava-se ainda: "seria o sangue que faz que pensemos, ou o ar, ou o fogo? Ou ainda, nenhuma destas 10

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