© by Éditions Gallimard, 1938 © 2015 da tradução by Rita Braga Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite. EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Rua Nova Jerusalém, 345 — Bonsucesso — 21042-235 Rio de Janeiro — RJ — Brasil Tel.: (21) 3882-8200 — Fax: (21) 3882-8212/8313 CIP-Brasil. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S261n Sartre, Jean-Paul, 1905-1980 A náusea / Jean-Paul Sartre ; tradução Rita Braga. — [Ed. especial] — Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2015. (Coleção 50 anos) Tradução de: La Nausée ISBN 978-85-209-2276-7 1. Romance francês. I. Braga, Rita. II. Título. III. Série. CDD: 843 CDU: 821.133.1-3 Ao Castor “É um rapaz sem importância coletiva; é apenas um indivíduo.” L.-F. Céline L’Église Nota dos editores Esses cadernos foram encontrados entre os papéis de Antoine Roquentin, e estão sendo publicados sem nenhuma alteração. A primeira página não está datada, mas temos boas razões para supor que ela antecede de algumas semanas o início do diário propriamente dito. Teria então sido escrita, o mais tardar, por volta do início de janeiro de 1932. Nessa época, Antoine Roquentin, após haver viajado pela Europa central, África do Norte e Extremo Oriente, tinha se fixado havia três anos em Bouville para aí concluir suas pesquisas históricas sobre o marquês de Rollebon. Folha sem data O melhor seria anotar os acontecimentos dia a dia. Manter um diário para que possam ser percebidos com clareza. Não deixar escapar as nuanças, os pequenos fatos, ainda quando pareçam insignificantes, e sobretudo classificá-los. É preciso que diga como vejo esta mesa, a rua, as pessoas, meu pacote de fumo, já que foi isso que mudou. É preciso determinar exatamente a extensão e a natureza desta mudança. Por exemplo, eis aqui um estojo de papelão que contém meu frasco de tinta. Seria preciso tentar dizer como o via antes e como atualmente eu o .[1] Pois bem, é um paralelepípedo retangular, destaca-se sobre — é tolo, não há o que dizer a respeito. É isso que tem que ser evitado; é preciso não colocar estranheza onde não existe nada. Creio que é esse o perigo, quando se faz um diário: exagera-se tudo, vive-se à espreita, força-se constantemente a verdade. Por outro lado, é certo que posso, de um momento para o outro — e precisamente em relação a este estojo ou a qualquer outro objeto —, reencontrar a impressão de anteontem. Tenho que estar sempre pronto; do contrário, ela mais uma vez me escorregaria por entre os dedos. É preciso nada [2] mas anotar cuidadosamente, e com a maior minúcia, tudo o que ocorre. Naturalmente, já não posso escrever nada de preciso sobre aquelas histórias de sábado e de anteontem, já estou muito distanciado delas; só posso dizer que, tanto num caso como no outro, não houve nada do que se chama comumente um acontecimento. Sábado, os meninos brincavam com pedras, fazendo-as ricochetear, e eu queria imitá-los e jogar uma no mar. Nesse momento, detive-me, deixei cair a pedra e fui embora. É provável que eu parecesse perdido, já que os meninos riram quando lhes dei as costas. É isso, quanto ao exterior. O que ocorreu em mim não deixou vestígios claros. Havia algo que vi e que me desagradou, mas já não sei se estava olhando para o mar ou para o seixo. O seixo era achatado, seco de um lado, úmido e lamacento do outro. Eu o segurava pelas bordas, com os dedos muito afastados, para não me sujar. Anteontem foi muito mais complicado. E houve também essa sequência de coincidências, de quiproquós que não consigo entender. Mas não vou me distrair colocando tudo isso no papel. Enfim, é certo que tive medo ou algum sentimento do gênero. Se pelo menos soubesse do que tive medo, já teria dado um grande passo. O curioso é que absolutamente não me sinto inclinado a me considerar louco e vejo até, com toda evidência, que não estou louco: todas essas mudanças dizem respeito aos objetos. Pelo menos é disso que gostaria de ter certeza. Dez e meia[3] É bem possível, afinal, que se trate de uma pequena crise de loucura. Já não há vestígios dela. Meus estranhos sentimentos da outra semana me parecem hoje bastante ridículos: já não me identifico com eles. Essa noite, estou muito à vontade, burguesmente instalado no mundo. Esse é meu quarto, virado para o nordeste. Embaixo, a rua dos Mutilés e o canteiro de obras da nova estação. De minha janela, na esquina do bulevar Victor-Noir, vejo a flâmula vermelha e branca do Rendez-vous des Cheminots. O trem de Paris acaba de chegar. As pessoas saem da antiga estação e espalham-se pelas ruas. Ouço passos e vozes. Muita gente espera o último bonde. Devem formar um grupinho triste em torno do lampião de gás, bem embaixo de minha janela. Ainda terão que esperar alguns minutos: o bonde não passa antes das 22h45. Tomara que não cheguem caixeiros-viajantes essa noite: desejo tanto dormir e estou com o sono tão atrasado!... Com uma noite bem-dormida, uma só, todas essas histórias seriam varridas de minha cabeça. Quinze para as onze: nada mais a temer, eles já teriam chegado, se fosse o caso. A não ser que seja o dia do senhor de Rouen. Vem todas as semanas, reservam-lhe o quarto nº 2, no primeiro andar, o que tem um bidê. Ainda pode chegar: muitas vezes toma um chope no Rendez-vous des Cheminots antes de ir se deitar. Aliás, ele não faz muito barulho. É baixinho e muito asseado, com bigodes pretos encerados e uma peruca. Aí está ele. Pois bem, quando o ouvi subindo a escada, meu coração bateu mais forte, tal a tranquilidade que isso me proporcionava: o que se pode temer num mundo tão regular? Creio que estou curado. E eis o bonde 7, Abattoirs-Grands Bassins. Chega com a barulheira de suas ferragens. Torna a partir. Agora, carregado de malas e de crianças adormecidas, desaparece na escuridão do leste, em direção aos Grands Bassins, em direção às fábricas. É o penúltimo bonde; o último passará dentro de uma hora. Vou me deitar. Estou curado, desisto de escrever minhas impressões dia a dia, como as meninas, num bonito caderno novo. Somente num caso poderia ser interessante fazer um diário: seria se[4]