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A evolução da tecnologia PDF

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r Colecção História e Filosofia da Ciência A Evolucão I I da Tecnologia George Basalla Coordenação da Colecção e Revisão Científica Ana Simões e Henrique Leitão ~ PORTO EDITORA · Sumário Prefácio IV I. Diversidade, necessidade e evolução 2. Continuidade e descontinuidade 27 3. Inovação (1): factores psicológicos e intelectuais 67 4. Inovação (2): factores socioeconómicos e culturais 109 5. Selecção (1): factores económicos e militares 143 6. Selecção (2): factores sociais e culturais 179 7. Conclusão: evolução e progresso 219 Título A Evolução da Tecnologia Autor George Basalla Ensaio bibliográfico Tradu~o Sérgio Duarte Silva 231 Coordenação da Colecção Ana Simões e Henrique Leitão Índice remissivo Revisores Cientificas Ana Simões e Henrique Leitão 246 Capa Eduardo Aires Editora Porto Editora Titulo original The Evolution ofTechnology Edição original ISBN 0-521-22855-7 Editado pela primeira vez por The Syndicate of the Press of the University of Cambridge Copyright © Cambridge University Press, 1988 © PORTO EDITORA, LDA-2001 R. da Restauração, 365 4099-023 PORTO -PORTUGAL Reservados todos os direitos. Esta publicaçáo nao pode ser reproduzida nem transmitida. no todo ou em parte. por qualqller processo electrónico, mecanico. fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorizaçtio escrita da Editora. i/i# PORTO EDITORA Rua da Restauracão, 365 4099-023 PORTO· PORTUGAL www.portoediLora.pt E-mait [email protected] Telefone 1351)226088300 Fax 1351) 22 608 83 01 DEZ/2003 ISBN 972-0·45083·5 Execução gráfica• Btoco Gráfico, Lda. • R. da Restauração, 387 4050-506 PORTO • PORTUGAL j j IV 1 A EVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA PREFÁCIO IV Prefácio po~er-se-á c~ncluir que qualquer sociedade, em qualquer época, possui ma1s potencial de evolução tecnológica do que alguma vez poderá ter esperança de explorar. Este livro apresenta uma teoria da evolução tecnológica baseada em estudos acadêmicos recentes sobre a história da tecnologia e em docu Dado que apenas uma pequena parcela das novas possibilidades tec mentos da história económica e da antropologia. A organização e o nológicas é suficientemente desenvolvida para se tornar parte da vida conteúdo dos capítulos foram determinados pela natureza da analogia material de um povo, tem de ser feita uma selecção entre os novos arte evolutiva e não pela necessidade de apresentar uma descrição cronoló factos competidores. Em última instância, a selecção é feita de acordo gica dos acontecimentos da história da tecnologia. Contudo, visto tra com os valores e necessidades da sociedade e em harmonia com a sua con tar-se principalmente de um estudo histórico, e não de um exercício de cepção de "vida boa" num dado momento. O Capítulo 5 e o Capítulo 6 filosofia ou de sociologia da tecnologia, serão apresentados exemplos exploram o processo de selecção e as forças que o impulsionam. históricos que elucidam e apoiamo quadro teórico. Os principais desen Em jeito de conclusão, o Capítulo 7 é dedicado à questão do pro volvimentos da história da tecnologia, como a invenção da máquina a gresso tecnológico e do melhoramento humano. É posto em evidência vapor ou o advento do sistema de iluminação eléctrica, são apresenta que a concepção tradicional de progresso revela falhas internas e é dos em simultâneo com a exposição de uma explicação evolutiva da incompatível com a evolução tecnológica. Contudo, é possível redefi mudança tecnológica. nir progresso de modo a não entrar em conflito com uma perspectiva evolutiva. O capítulo 1 desta obra apresenta três temas que voltarão a ser abor dados em capítulos posterio;res: diversidade-o reconhecimento do ele Desejo expressar a minha gratidão aos autores listados na bibliogra vado número de diferentes tipos de artefactos, ou coisas feitas, que se fia, porque uma obra desta envergadura não poderia ter sido escrita sem encontra há muito disponível; necessidade-a crença de que os seres as investigações acadêmicas levadas a cabo por historiadores da tecno humanos são levados a inventar artefactos para satisfazer necessidades logia ao longo das últimas décadas. Um reconhecimento especial para biológicas básicas; e evolução tecnológica - uma analogia orgânica que George Kubler e Nathan Rosenberg, pois utilizei com frequência ideias e conceitos po:r eles desenvolvidos. explica tanto o apareciment9 como a selecção desses novos artefactos. Uma observação mais atenta destes temas revela que a diversidade é um Es~ou particularmente grato a dois amigos: William Coleman, que facto da cultura material, a necessidade é uma explicação popular, mas compilou comigo a Cambridge History ofScience Series e me ajudou na errónea, da diversidade, e a evolução tecnológica é uma forma de expli questão da analogia evolutiva; e Eugene S. Ferguson, meu colega na car a diversidade sem recorrer à ideia de necessidade biológica. Universidade de Delaware, que me aconselhou em todos os aspectos deste livro. Não é exagero afirmar que este livro não teria sido possível A explanação formal da teoria da evolução tecnológica começa no sem os seus contributos. Capítulo 2, onde se afirma que o artefacto é o principal objecto de estudo da tecnologia e que no universo das coisas feitas prevalece a continui Por fim, desejo agradecer a Catherine E. Hut~hins do Winterthur dade. A existência de continuidade pressupõe que os novos artefactos Portfolio pela revisão do texto, a Marie B. Perrone por dactilografar o têm origem em artefactos anteriores-que os novos tipos de artefactos manuscrito, a Kenneth Marchionno pelas ilustrações e à minha mulher nunca são uma pura criação da teoria, do engenho ou do gosto. e família pelo apoio constante. Para a tecnologia evoluir tem de haver inovação no seio da conti nuidade. O Capítulo 3 e o Capítulo 4 destacam as várias fontes da ino vação-a imaginação humana, as forças socioeconómicas e culturais, a difusão da tecnologia, o avanço da ciência-tcinto em culturas primiti vas como nas modernas nações industrializadas. Desta abordagem L r li DIVERSIDADE, NECESSIDADE E EVOLUÇÃO 1 1. Diversidade, necessidade e evolução Diversidade Dt.:rante séculos, a rica e espantosa diversidade de formas de vida que habitam a Terra intrigou a humanidade. Por que razão as coisas vivas surgiam como paramécias e colibris, como sequóias e girafas? Durante muitos séculos a resposta foi dada pelo Criacionismo. Segundo esta doutrina, a diversidade da vida é o resultado e a expressão da natureza generosa de Deus: na imensi dão do Seu poder e amor, Deus escolheu criar a maravilhosa diversidade de <oisas vivas que se encontra no planeta. ~m meados do século XIX, e particularmente após a publicação da Origem das Espécies de Charles Darwin em 1859, a explicação religiosa da diversidade fui posta em causa por uma explicação científica. Segundo esta nova interpre tação, tanto a diversificação da vida num determinado momento como o apa recimento de novas formas de vida através dos tempos resultavam de um pro cesso ey-olutivo. Apoiando as teorias de Darwin, os biólogos levaram a cabo a identificação e catalogação de mais de 1,5 milhões de espécies de flora e fauna e explicaram esta diversidade com o conceito de variabilidade reprodutiva e selecção natural . .H ouve, contudo, um outro exemplo de diversidade de formas que foi esquecido, ou tomado como certo, de forma demasiado célere - a diversidade das coisas produzidas pela mão humana. A esta categoria pertence «o vasto universo de objectos utilizados pela humanidade para ser bem sucedida no mundo fisico, para facilitar as suas relações sociais, para satisfazer os seus gos tos e para criar símbolos com significado". 1 Uma vez .que entre o conjunto de objectos manufacturados pelo homem não é possível identificar com precisão categorias distintas_, é difícil conseguir ema enumeração precisa dos diferentes tipos de artefactos. É possível faze~ nma aproximação, ainda que grosseira, a esse número, utilizando o número G.e patentes concedidas como indicador da diversidade do mundo construído. Só nos Estados Unidos da Améri~ foram emitidas mais de 4,7 milhões de patent<!s desde 1790. Se considerarmos que cada uma destas patentes é equi valente a uma espécie orgânica, é possível afirmar que o mundo tecnológico 1 ThorruEl Schlereth, Material culture studies in Americ:a (Nashville, 1982), p. 2. i I r 21 A EVOLUÇAO DA TECNOLOGIA DIVERSIDADE, NECESSIDADE E EVOLUÇÃO 13 possui uma diversidade três vezes superior à do mundo orgânico. Apesar de i1 outro é resultado de um processo natural aleatório. Um produz um objecto algumas lacunas, esta tentativa de medir a diversidade através de uma análise 'l físico estéril, o outro um ser vivo, ele próprio capaz de se reproduzir. Devo comparativa sugere que a diversidade do mundo tecnológico se aproxima da ,I salientar que não pretendo fazer uma correspondência minuciosa entre estes do mundo orgânico. domínios marcadamente diferentes. Na narrativa e análise que se seguem, uti A variedade de coisas feitas é tão espantosa como a variedade de coisas lizo a metáfora ou analogia evolutiva sempre que considero oportuno esclare vivas. Veja-se a distância que vai. dos utensílios de pedra aos microchips, dos cer aspectos, de outro modo inacessíveis, da história da tecnologia. moinhos hidráulicos às naves espaciais, das tachas de desenho aos arranha-céus. A natureza da metáfora e o seu papel neste livro requerem um esclareci Em 1867, Karl Marx ficou surpreendido ao saber que em Binningham, Ingla mento adicional. As metáforas não são ornamentos arbitrariamente inseridos terra, se produziam quinhentos tipos diferentes de martelo, cada um adap no discurso com finalidades poéticas. As metáforas, ou analogias, são fulcrais tado a uma função específica na indústria ou nos ofícios (figura 1.1.). Que para o pensamento analítico e para o juízo critico. Sem metáforas, a literatura forças conduziram à proliferação de tantas variações desta antiga e vulgar fer seria estéril, a ciência e a filosofia dificilmente existiriam e a história estaria reduzida a uma crônica de acontecimentos. ramenta? Ou, numa abordagem mais geral, porque existem tantos tipos dife Os historiadores utilizam há muito tempo metáforas na interpretação do rentes de coisas? passado, especialmente metáforas orgânicas que invoquem nascimento, cres As nossas tentativas para compreender a diversidade no mundo cons cimento, desenvolvimento, maturidade, saúde, doença, senilidade e morte. truído, ou mesmo para apreciar a sua riqueza, têm sido condicionadas pelo Nos últimos cem anos, aqueles que se dedicam ao estudo da história da ciên pressuposto de que as coisas que fazemos são apenas instrumentos que nos cia e da tecnologia têm invocado regularmente uma forte metáfora política, a permitem lidar com o ambiente natural e satisfazer necessidades vitais. O de revolução, para explicar os acontecimentos nessas áreas. Assim, ao utilizar saber tradicional acerca da natureza da tecnologia salienta a importância da a teoria da evolução para tornar a mudança tecnológica mais compreensível, necessidade e da utilidade. É como ouvirmos dizer que, a.través dos tempos, não estou a introduzir a metáfora num domínio a que o conceito era total os técnicos proporcionaram aos seres humanos objectos úteis e estruturas mente alheio, mas a sugerir uma nova metáfora e a afirmar que as suas impli necessárias à sobrevivência. cações mais vastas devem ser seriamente analisadas. A necessidade e a utilidade não podem, isoladamente, explicar a diversi Peço aos leitores a mesma indulgência concedida aos que escreveram dade e a inovação dos artefactos produzidos pelo Homem, por isso, torna-se sobre as revoluções científicas e industriais. Do mesmo modo que os historia necessário procurar outras explicações, em especial as que incluam os pressu dores da ciência e da tecnologia não são considerados responsáveis por todos postos mais gerais acerca do significado e objectivos da vida. Esta procura os pontos de semelhança entre a revolta política e a mudança radical da ciên pode ser facilitada pela aplicação da teoria da evolução orgânica ao mundo cia, tecnologia e indústria, também não devo ser culpabilizado se não estabe tecnológico. lecer paralelos entre todas as características do mundo das coisas construídas A melhor forma de compreender a história da tecnologia, uma disciplina e o mundo orgânico. centrada na invenção, produção e utilização de artefactos materiais, é através Há wn aspecto em que o uso que faço da metáfora difere do da maior da aplicação de uma analogia. Uma teoria que explique a diversidade do parte dos historiadores: eles utilizam metáforas implicita e frequentemente de mundo orgânico pode ajudar a explicar a variedade de coisas feitas. Contudo, forma inconsciente; neste livro, dou-lhe um uso explícito e consciente. Apesar este projecto tem os seus. perigos, como avisa o poeta e. e. cummings: «Um de a nossa escolha, e abordagem, das metáforas poder divergir, partilhamoS mundo de construções não é um mundo de nascimentos."2 um objectivo comum: dar sentido ao passado. A metáfora evolutiva deve ser ~bordada com cautela porque existem gran Necessidade des diferenças entre o mundo das coisas construídas e o mundo das coisas nascidas. Um resulta da actividade humana com um propósito definido, o Há uma fábula de Esopo que é especialmente relevante para a discussão da tecnologia, diversidade e necessidade. Era uma vez, escreveu o fabulista grego, j 1e. e. cummings, «pitythisbusy monstermanunkimL>. in Poems, 1923-1954 (Nova Iorque, 1954), p. 397. uma gralha prestes a morrer à sede que encontrou um balde parcialmente 1 IS 4[ A EVOLUçAO DA TECNOLOGIA DIVERSIDADE, NECESSIDADE E EVOLUÇAO ffi==-----J ® ® ® ® ® o o ' ' ® 0 ® 0 Figura 1.1. A diversidade de artefactos refle<:tida na forma dos marteks utilizados pelos artífices de dois ângulos). 11: A-cabeça de martelo com unha utilizado para arrancar pregos; B-cinzel de ingleses. I: A, 8, C, D, E-martelos de pedreiro utilizados para partir, cortar, quadrar e ornam~­ assentador de ardósia; C-machadinha de ripas; D -enxó de pregar de tanoeiro utilizado em anéis tlaizra ad ap epdarraa·' pF; oGteg-emr aa rstueploe rdfíec ciea rdpai nmtaeidreoi rcao amo ceasbpeeçtaar r uefmor pçraedgao; ;H r--mcaabreteçlao c pmarvaa t draeb malahrotes lgoe uratiis dbien baaçrãroil ;d Ee m-paertqeuleon eo p braorvriald doer m dea nqtueeigijao ;u tGili-zamdaor ptealroa aambroirl aed feocrhea arf cinasacdoosr d dee m searnrtae;i gHa;- Fm-acrotemlo em madeira; K-martelo de pena direita de ferreiro; L-martelo de pena de bola, martelo para ~ra­ de estofador ou albardeiro; J, K-martelos de sapateiro. Fonte: PercyW. Blandford, Countrycraft balhos gerais em metal; M-martelo de construtor de cadeiras; N-martelo de ferrar cavalos (vtsto tools (Newton Abbot, 1974) pp. 49, 55. 61 DIVERSIDADE, NECESSIDADE E EVOLUÇÃO j7 A EVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA cavalos. Os lideres nacionais, os pensadores influentes e os escritores não esta cheio de água. Tentou vezes sem conta beber, dobrando e esticando o pes coço, mas o seu bico curto não conseguia alcançar a superfície da água. vam a apelar à substituição do cavalo, nem os cidadãos comuns estavam Quando também falhou na tentativa de virar o pesado recipiente, o animal ansiosamente à espera que uns inventores preenchessem com urgência uma ficou desesperado pensando que nunca iria satisfazer a sua sede. Foi então grave lacuna pessoal e social de transporte motorizado. Na realidade, durante que teve uma ideia brilhante. Vendo, por perto, calhaus soltos, a gralha come a primeira década da sua existência, 1895-1905, o automóvel foi um brin çou a deitá-los no balde. À medida que as pedras eram colocadas, o nível da quedo para aqueles que tinham possibilidade de comprar um. água começou a subir e a gralha conseguiu beber. Moral: a necessidade é mãe O camião a motor teve uma aceitação ainda mais lenta do que o automó do engenho. Alguns críticos modernos recordam esta mensagem para louvar vel. O êxito do transporte em camiões militares durante a Primeira Guerra os indivíduos que, em vez de desesperarem face a um problema, usam a saga Mundial, combinado com um intensivo esforço conjunto dos fabricantes de cidade e o engenho para inventar novos utensílios e máquinas que resolvam camiões e do exército após a guerra, resultou no afastamento do transporte de dilemas, satisfaçam necessidades biológicas básicas e contribuam para o pro tracção animal e, mais tarde, do caminho-de-ferro. Mas o camião a motor gresso material. não foi criado para superar quaisquer deficiências óbvias da tracção animal A crença de que a necessidade aguça o esforço inventiva tem sido invo I ou a vapor. Tal como com os automóveis, a necessidade de camiões apenas cada constantemente para explicar a maior parte da actividade tecnológica. surgiu após, não antes, serem inventados. Por outras palavras, a invenç~o dos Os seres humanos necessitam de água, por isso, cavam poços, constroem veículos movidos por motores de combustão interna deu origem à necessidade J diques nos rios e nos ribeiros e desenvolvem tecnologia hidráulica. Precisam l de transporte motorizado. de abrigo e defesa, portanto, constroem casas, fortalezas, cidades e máqui Os carros e camiões a motor surgiram no final de um século marcado por nas militares. Necessitam de alimento, por isso, cultivam plantas e criam uma intensa actividade tecnológica, por isso, podem ser considerados maus animais. Precisam de se deslocar com facilidade, por isso, inventam navios, I exemplos para ilustrar a necessidade que está por detrás de uma qualquer quadrigas, carroças, carruagens, bicicletas, automóveis, aviões e naves espa invenção. Talvez se se conseguisse identificar uma invenção mais antiga, uma ciais. Em cada uma destas situações, os seres humanos, tal como a gralha da que não coincidisse nem com a inovação tecnológica deliberada e dissemi história de Esopo, utilizam a tecnologia para satisfazer uma necessidade nada nem com a crença no progresso material que a acompanha, fosse possí premente e imediata. vel isolar mais facilmente a necessidade que lhe deu origem. A roda promete Se a tecnologia existe sobretudo para satisfazer as necessidades mais bási ser esse tipo de invenção. cas do ser humano, devemos então determinar com precisão quais são essas necessidades e que grau de complexidade deve ter uma tecnologia que as A roda satisfaça. Qualquer complexidade que vá além da estrita satisfação dessas necessidades deve ser considerada supérflua e deve ser explicada por outras razões que não a necessidade. Reconhecida como uma das mais antigas e mais importantes invenções na Ao analisar as necessidades e as técnicas essenciais aos seres humanos, um história da humanidade, a roda é, a par com o fogo, citada como um dos crítico moderno poderia perguntar: Precisamos de automóveis? Dizem-nos, maiores êxitos técnicos da Idade da Pedra. Na banda desenhada e nos dese com frequência, que os automóveis são absolutamente essenciais, porém os nhos animados, as rodas de pedra e o fogo são retratados como criaçQes cOn automóveis têm pouco mais de um século. Os homens e as mulheres tinham juntas dos homens das cavernas pré-históricos. Este retrato familiar, que sur vidas felizes e preenchidas antes de, em 1876, Nikolaus A. Otto ter inventado giu pela primeira vez nos· finais. do século XIX, tem como exemplo actual a o motor de combustão interna a quatro tempos. banda desenhada B. C.* Uma pesquisa às origens do automóvel de motor a gasolina revela que não foi a necessidade que inspirou os seus inventores. O automóvel não foi desen • (Nota dos coordenadores} B. C.-banda desenhada muito popular nos Estados Unidos, com persona· volvido em resposta a uma crise internacional de cavalos ou a uma escassez de gens da época pré-histórica. 19 SI DIVERSIDADE, NECESSIDADE E EVOLUÇÃO A EVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA Aqueles que têm um conhecimento mais profundo da história antiga da As primeiras ilustrações mostram-nos esses veículos a serem utilizados para cultura humana sabem que o fogo e a roda não tiveram origem na mesma tfansporte de efígies de divindades ou de personalidades importantes. Os mais altura. O fogo é utilizado há pelo menos 1,5 milhões de anos, ao passo que a antigos vestígios de veículos com rodas foram encontrados em túmulos; esses roda tem pouco mais de 5000 anos. Contudo, mesmo a este nível de com veículos, enterrados com o cadáver como parte de uma cerimônia funerária preensão histórica, há uma tendência para emparelhar as duas invenções religiosa, foram encontrados em vários locais do Próximo Oriente e da Europa colocando-as numa categoria especial acima e para alé:n de todas as outras Os veículos enterrados com os mortos eram geralmente do tipo utilizado realizações humanas. Por exemplo, quando o distinto h:Storiador económico no campo de batalha. Assim, os usos rituais e cerimoniais da roda estavam David S. Landes avaliou o significado do relógio mecânico, concluiu que este intimamente relacioriados·com a sua utilização na guerra. As exigências mili "não estava na classe do fogo e da roda" e que merecia, por isso, uma classifi tares exerceram uma forte influência no subsequente desenvolvimento dos cação mais baixa.3 veículos com rodas. Por exemplo, as provas pictóricas e físicas apoiam a ideia Seja qual for o grau de sofisticação histórica, a maior parte das pessoas de que os "vagões de batalha" de quatro rodas e os "carros de montar" de duas acredita que a utilização do transporte com rodas é um sinal de civilização. O rodas (um veículo semelhante à quadriga) da Mesopotâmia eram, inicialmente, transporte e a roda estão de tal forma interligados que o progresso de uma utilizados como plataformas móveis, das quais podiam ser lançados dardos. A cultura tem sido avaliado pelo seu desenvolvimento no transporte com rodas. inovadora roda radiada, que exigiu um elevado grau de perícia artesanal, foi Por este padrão, a ausência total de roda é suficiente para separar uma cultun,1 pela prim~!ra vez utilizada em carros de guerra no segundo milénio a. C. para do mundo civilizado. . criar veícUlos leves e rápidos que pudessem ser facilmente manobrados no. Para procurar a~ origens desta maravilhosa invenção não é necessário pes campo de batalha. quisar os reinos da natureza. Exceptuando um pequeno número de microrga Para além dos usos rituais e militares, a roda também foi utilizada para o nismos, não há nenhum animal que se desloque por mei.o de um conjunto de transporte de mercadorias. Apesar de esta terceira função não se encontrar rodas orgânicas girando livremente nos eixos. A origem da roda deve ser pro claramente registada nos mais antigos achados arqueológicos, pressupomos curada entre as coisas feitas. que os veículos podiam ser, e foram, utilizados com fins mais mundanos. O Antes do advento da roda, os objectos pesados e de grandes dimensões primeim documento que refere o uso de vagões para transportar produtos de eram deslocados em trenós-plataformas de madeira com ou sem corredou uma quinta, como feno, cebolas, juncos, data de 2375 a 2000 a. C., cerca de ras. Eram utilizados rolos cilíndricos (toros polidos) CQlocados debaixo do mil anos após o aparecimento inicial da roda. Contudo, este hiato de tempo veículo para facilitar a deslocação dos trenós, e pensa-se que foram estes rolos pode simplesmente reflectir a natureza ritual, cerimonial e militar de muitos que inspiraram a invenção da roda. dos achados arqueológicos. Apesar· da ausência de provas fortes que atestem a Qualquer que tenha sido a fonte de inspiração, as rodas surgiram pela pri utilização de veículos com rodas para fins de transporte num período mais meira vez no quarto milênio a. C., numa vasta área que se estende do rio antigo, é possível defender que o aspecto utilitário foi primordial e que a Tigre ao Reno. Os achados arqueológicos sugerem que os veículos com rodas necessidade de transporte dos produtos agrícolas esteve na origem da inven tenham sido inventados na Mesopotâmia e que daí se tenham espalhado rapi ção do vagão e da carroça. damente até ao Noroeste da Europa. As primeiras rodas eram sólidos discos A nossa discussão sobre~ roda e os seus usos tem-se confinado a uma área de madeira cortados de uma única tábua ou modelos tripartidos, um con geográfica relativamente pequena. A história da roda no resto do mundo cOn junto de três pranchas de madeira aparada e ligadas por grampos. tinua por contar. Os veículos com rodas surgiram na índia no terceiro milé Uma leitura mais atenta dos registos arqueológicos revela que os primei nio e no Egipto e na China no segundo milénio a. C. Os povos do Sudeste ros veículos com rodas foram utilizados com finalidades rituais e cerimoniais. Asiático, África a Sul do Sara, Australásia, Polinésia, América do Norte e Amérka do Sul conseguiram sobreviver e, em muitos casos, prosperar sem o auxílio da roda. Os veículos com rodas, para fins de transporte, só foram 3 David S. Landes, Revolution in rime: clocks and the making of the modem world (Cambridge, Mass., introduzidos nestas zonas nos tempos modernos. 1983), p. 6. 10 I A EVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA DIVERSIDADE, NECESSIDADE E EVOLUÇÃO 111 Especialmente interessante é o caso da Mesoaméiica (aproximadamente o A resposta às questões acima formuladas é simples. Os Mesoamericanos México e a América Central). Embora desconhecessem os transportes com não usaram a roda porque não era viável fazê-lo por causa das características rodas antes da chegada dos Espanhóis, os mesoamericanos.fabricavam minia topográficas do território e por não disporem de tracção animal apropriada. turas de objectos com rodas. Entre os séculos IV e XV d. C., as figuras de O transporte sobre rodas está dependente de vias adequadas, uma exigência barro de diversos animais tinham eixos e rodas para as tornarem móveis difícil de satisfazer numa região caracterizada por densas selvas e terreno (figura 1.2.). Desconhece-se se estas figuras eram brinquedos ou objectos de montanhoso. Também eram necessários grandes animais de tracção capazes culto ou votivos; contudo, independentemente da sua finalidade, mostram de puxar pesados veículos de madeira, mas os Mesoamericanos não tinham que o principio mecânico da roda era bem compreendido e aplicado por domesticado quaisquer animais que pudessem utilizar para esse fim. Os povos que nunca o usaram no transporte de mercadorias. homens e as mulheres do México e da América Central viajavam por trilhos e Como podemos explicar esta falta de exploração de uma invenção unani por terrenos irregulares com cargas às costas. Não era necessário construir memente considerada como uma das duas maiores realizações técnicas de estradas para estes carregadores humanos. todos os tempos? Se partirmos do pressuposto que estamos a falar de um :E: possível usar um argumento ainda mais persuasivo contra a superiori povo cujo desenvolvimento intelectual é tão reduzido que foi incapaz de dar dade universal e a aplicabilidade da roda, voltando ao seu lugar de origem no um uso prático à roda, como poderemos explicar o facto de ter sido capaz de Próximo Oriente. Entre os séculos III e VII d. C., as civilizações do Próximo inventar a roda? E como explicar as florescentes culturas Azeteca e Maia, com Oriente e do Norte da África desistiram dos veículos com rodas como meio as suas múltiplas realizações nas artes e ·na ciência? de transporte e adoptaram uma forma mais eficaz e veloz de transportar pes soas e mercadorias: substituíram o vagão e a carroça pelo camelo. Este delibe rado abandono da roda, na sua própria região de origem, durou mais de mil anos e só terminou quando as principais potências europeias, impondo os seus esquemas imperialistas ao Próximo Oriente, reintroduziram a roda. O camelo foi preferido como animal de carga em detrimento dos veículos com rodas por razões que se tornam óbvias quando se compara o camelo com o típico veículo _puxado por bois. Comparado com o boi, o camelo é mais resistente, pode transportar mais mercadorias e deslocar-se mais depressa, consumindo menos comida e água. Os camelos de carga não precisam de estradas ou pontes, podem atravessar terrenos irregulares e rios, e a sua força é totalmente concentrada no transporte da carga, em lugar de ser desperdi çada a puxar o peso morto de um vagão. Depois desta comparação, interrogamo-nos por que razão a roda foi alguma vez adaptada na região. Uma grande parte dos transportes de merca dorias no Próximo Oriente foi~sempre feita por animais de carga. Foi uma sobrevalorização da roda que.levou os académicos ocidentais a subestimarem a utilidade dos animais de carga e a atribuírem um valor demasiado elevado ao contributo dos veículos com rgdas nos anos que antecederam a substitui ção da roda pelo camelo. Figura 1, 2. Figura de barro com rodas fabricada pelos Azetecas (México). É possível encontrar por toda a Mesoamérica figuras de animais que tinham eixos e rodas. Datam de cerca de 300 d. C. Quanto mais sabemos acerca da roda, mais claro se torna que a sua his até à chegada dos Espanhóis, no século XVI, período em que não havia transportes com rodas na tória e influência foram distorcidas pela extraordinária atenção que lhe é região. Fome: Stuart Piggott, TheeJtrliest wheded transport (Ithaca, N.Y., 1983), p.15. Neg. n.0 326744; cortesia do Departamento de Serviços da Biblioteca, American Museum ofNatural History. dada na Europa e nos Estados Unidos. A ideia ocidental de que a roda é CHFC-ET-01 121 A EVOLUÇÃO DA TECNOLOGIA DIVERSIDADE, NECESSIDADE E EVOLUÇÃO 113 uma necessidade universal (tão essencial à vida como o fogo) é de origem Segundo os antropólogos e os sociobiólogos funcionalistas, todos os recente. A preciosa dádiva que Prometeu roubou aos deuses e ofereceu à aspectos da cultura, materiais e imateriais, podem ser relacionados com a humanidade foi o fogo, não a roda. Do· mesmo modo~ foi o fogo, e não a satisfação de uma necessidade básica. De acordo com este ponto de vista, a roda, que apareceu tradicionalmente retratado como o grande agente civiliza cultura não é mais do que a resposta humana à satisfação das suas necessida cional na literatura e nas artes visuais da cultura ocidental. Só nos finais do des de nutrição, reprodução, defesa e higiene. Contudo, os críticos da teoria século XIX é que os escritores populares sobre tecnologia elevaram a roda ao biológica lançaram vários contra-argumentos fortes. Alguns afirmaram que lugar de destaque que hoje tem. os fenómenos mais importantes da cultura, como a arte, a religião e a ciência, A história da roda que aqui se apresentou teve como propósito inicial pro possuem ligações muito ténues com a sobrevivência humana. De igual modo, curar um avanço tecnológico significativo produzido para dar resposta a uma a agricultura e a arquitectura, que deveriam estar relacionadas com as necessi necessidade humana universal. No final, a roda acabou por ser considerada dades de alimentação e abrigo, manifestam-se de modos que só remotamente uma invenção ligada a uma cultura, cujo significa~o e impacto têm sido exa podem ser explicados por uma necessidade biológica. A produção agrícola gerados no Ocidente. Embora não tenha por objectivo desvaloriza: a impor moderna, por exemplo, tem muitos outros motivos para além da preocupa tância real da roda na tecnologia moderna, esta critica levanta sérias dúvidas ção em fornecer alimento aos seres humanos e um arranha-céus não é sim sobre o seu uso como-critério de avaliação de outras culturas. plesmente uma estrutura para proteger as pessoas da intempérie. Ao colocarmos o transporte sobre rodas numa perspectiva cultural, histó Alguns académicos afirmam que a linguagem é a característica mais rica e geográfica mais vasta, há três pontos importantes que se salientam: pri importante da cultura e que é a linguagem, e não a biologia, que determina a meiro, os veículoS de ro4as não foram necessariamente inventados Para facili definição daquilo que o ser humano considera ser necessáriO ou útil. Segundo tar 6 transporte de _mercadorias; segundO, a civilização ocidental é uma civili estes estudiosos, a necessidade não é algo imposto ao homem pela natureza, zação centrada na roda e leyou o transporte sobre rodas a um elevadíssimo mas uma categoria conceptual criada por escolha cultural Estas perspectivas estádio de desenvolvimento; e, terceiro, a roda não é uma invenção mecânica reconhecem a existência de condicionalismos materiais externos à cultura; única, necessária, ou útil, para todas as pessoas em qualquer época. contudo, esses condicionalismos são considerados remotos e de pouca impor tância em comparação com a imensa gama de possibilidades culturais abertas Necessidades fundamentais à humanidade. A necessidade biológica funciona negativamente e em limites A nossa pesquisa sobre necessidade e invenção revelou que necessidade é extremos. Decreta o que é impossível, não o que é possível. um termo relativo. Uma necessidade para um povo, geração ou classe social Uma outra abordagem crítica das teorias da cultura baseadas em necessi pode não ter valor utilitário, ou ser um luxo dispensável para outro povo, dades fundamentais preexistentes avalia o papel da tecnologia no reino ani geração, ou classe social. Ao mesmo tempO que na Europa se desenvolvia de mal. Os sel.!S proponentes concluem que não é necessário qualquer tipo de forma enérgica o transporte sobre rodas, no Próximo Oriente. abandonava-se tecnologia para satisfazer as necessidades dos animais. A prova desta afirma o uso da roda, e na Mesoamérica a roda era adaptada-a figuras de barro. A ção é obtida observando o reino animal onde se procura satisfazer as necessi análise comparativa da aceitação e do uso da roda poderia ser repetida para dades vitais sem intervenção da tecnologia. Ao contrário da gralha da fábula todas as chamadas necessidades da vida moderna. Longe de satisfazerem de Esopo, as aves reais não obtêm água recorrendo a complexos estratagema~ necessidades universais, elas adquirem a s11-a importância num contexto cul tecnológicos. As aves, e os outros animais, não escavam poços, nem cons tural ou sistema de valores específico. troem canais, aquedutos ou canalizações. A natureza fornece-lhes directa Esta ilação levanta a possibilidade de determinar um núcleo de necessida mente água, comida e abrigo, sem intervenção de estruturas construídas. des fundamentais, aplicável ao ser humano em qualquer tempo -e local, se Claro que alguns animais usam paus e pedras como ferramentas rudimenta separássemos as falsas necessidades e as triviais a que nos fomos acostu res para recolherem comida, ou como armas para se defenderem, mas o com mando. Estas necessidades universais constituiriam uma base sólida para a portamento animal relativamente aos utensüios é tão rudimentar e limitado compreensão da cultura, incluindo a tecnologia. que não pode ser comparado à tecnologia das mais simples culturas humanas.

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