1 I N V E S T I G A Ç Ã O 2 3 EDIÇÃO A CONSCIÊNCIA Imprensa da Universidade de Coimbra Email: [email protected] URL: http://www.uc.pt/imprensa_uc Vendas online: http://www.livrariadaimprensa.com DE UM IMPÉRIO CONCEÇÃO GRÁFICA PORTUGAL E O SEU MUNDO António Barros (SÉCS. XV-XVII) INFOGRAFIA DA CAPA GIUSEPPE MARCOCCI Carlos Costa PRÉ-IMPRESSÃO Mickael Silva Xavier Gonçalves EXECUÇÃO GRÁFICA www.artipol.net ISBN 978-989-26-0132-8 DEPÓSITO LEGAL 347521/12 IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA COIMBRA UNIVERSITY PRESS © OUTUBRO 2012, IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA 4 5 SUMÁRIO ABREVIATURAS ...................................................................................................................7 AGRADECIMENTOS ...........................................................................................................11 PRÓLOGO – UM IMPÉRIO ESQUECIDO ..................................................................................15 PARTE PRIMEIRA – A VOCAÇÃO IMPERIAL PORTUGUESA ........................................................35 CAPÍTULO 1 – A ESCRAVIDÃO NAS ORIGENS DO IMPÉRIO .......................................................41 CAPÍTULO 2 – PRIMEIRAS IMAGENS OFICIAIS DO IMPÉRIO .....................................................73 CAPÍTULO 3 – A AUTORIDADE DO PAPA, A CONSCIÊNCIA DO REI ..........................................107 PARTE SEGUNDA – A ETIÓPIA, PRISMA DO IMPÉRIO ............................................................145 CAPÍTULO 4 – ARISTÓTELES, OS ETÍOPES E O NOVO MUNDO ................................................151 CAPÍTULO 5 – A ETIÓPIA CENSURADA: O ENCONTRO COM UM REINO IMAGINADO ..................177 CAPÍTULO 6 – O PRESTE JOÃO NÃO EXISTE: OS TEÓLOGOS E O IMPÉRIO ................................213 PARTE TERCEIRA – CONQUISTA, COMÉRCIO, NAVEGAÇÃO: UM SENHORIO DISPUTADO .............245 CAPÍTULO 7 – O MODELO DO IMPÉRIO ROMANO: MAQUIAVEL EM PORTUGAL.........................251 CAPÍTULO 8 – ENTRE GUERRAS JUSTAS E MONOPÓLIOS COMERCIAIS ......................................281 CAPÍTULO 9 – DESCOBRIMENTOS E DOMÍNIO DO MAR: JURISDIÇÕES CONTROVERSAS ..............335 PARTE QUARTA – CONVERSÕES IMPERIAIS: 6 7 PARA UMA SOCIEDADE PORTUGUESA NOS TRÓPICOS? ...................................................367 CAPÍTULO 10 – EXERCÍCIOS MISSIONÁRIOS NA ÍNDIA: DO REINO AO IMPÉRIO ........................373 CAPÍTULO 11 – SILÊNCIOS E ESCRAVIDÃO: OS NEGROS AFRICANOS NO MUNDO PORTUGUÊS ......405 CAPÍTULO 12 – UMA OUTRA HUMANIDADE: OS ÍNDIOS DO BRASIL ........................................429 ABREVIATURAS CONCLUSÃO – O IMPÉRIO LEGITIMADO: FORMAS E HERANÇA ..............................................455 ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa) CC Corpo Cronológico CGSO Conselho Geral do Santo Ofício FONTES MANUSCRITAS ....................................................................................................469 CSV Colecção de São Vicente Gav Gavetas IE Inquisição de Évora FONTES IMPRESSAS .........................................................................................................473 IL Inquisição de Lisboa NA Núcleo Antigo BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................483 ARSI Archivum Romanum Societatis Iesu (Roma) ASV Archivio Segreto Vaticano (Roma) BACL Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa ÍNDICE DE NOMES ..........................................................................................................517 BdA Biblioteca da Ajuda (Lisboa) BGUC Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra BNF Bibliothèque Nationale de France (Paris) BNP Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa) ALLEN Opus Epistolarum Des. Erasmi Roterodami, ed. Percy Stafford Allen, Helen Mary Allen. Oxford: Clarendon Press, 1906- -1958, 12 vols. AP America Pontificia primi saeculi evangelizationis, 1493-1592. Documenta pontificia ex registris et minutis praesertim in Archivo Secreto Vaticano existentibus, ed. Josef Metzler. Città del Vaticano: Libreria editrice vaticana, 1991, 2 vols. APO Arquivo Portuguez-Oriental, ed. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara. New Delhi: Asian Educational Service, 19922, 6 vols. BL MACHADO, Diogo Barbosa – Bibliotheca Lusitana. Coimbra: Atlântica, 1965-19672, 4 vols. CACP HURTADO DE MENDOZA, Lope – Correspondance d’un Ambassadeur Castillan au Portugal dans les années 1530, ed. Aude Viaud. Paris; Lisboa: Centre Culturel Calouste HGCRP SOUSA, António Caetano de – História Genealógica da Casa Gulbenkian; Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. Real Portugueza. Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1735-1749, 12 tomos em 13 vols. Cartas Cartas de Afonso de Albuquerque, seguidas de alguns documentos que as elucidam, ed. Raimundo António de Index Index de l’Inquisition Portugaise. 1547, 1551, 1561, 1564, Bulhão Pato. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1581, ed. J. M. de Bujanda. Sherbrooke; Genève: Centre d’Études 1884-1935, 7 vols. de la Renaissance, Université de Sherbrooke; Droz, 1995. CDP Corpo Diplomatico Portuguez contendo os actos e relações Índices Índices dos livros proibidos em Portugal no século XVI, ed. politicas e diplomaticas de Portugal com as diversas potencias Artur Moreira de Sá. Lisboa: INIC, 1983. do mundo desde o século XVI ate aos nossos dias. Lisboa: Letters of John III Letters of John III, King of Portugal, 1521-1557, ed. Jeremiah Academia das Ciências de Lisboa, 1862-1959, 15 vols. D. M. Ford, Cambridge, Mass.: Harvard UP, 1931. CŒD Conciliorum Œcumenicorum Decreta, ed. Giuseppe Alberigo, Letters of the Court Letters of the Court of John III, King of Portugal, ed. Jeremiah P.-P. Joannou, Claudio Leonardi, Paolo Prodi, cons. Hubert D. M. Ford, Lucius G. Moffatt. Cambridge, Mass.: Harvard Jedin. Basel; Barcelona; Freiburg; Roma; Wien: Herder, 19622. UP, 1933. Collectorio 1596 Collectorio de diversas letras apostolicas, provisões reaes e Litt. Quadr. Litterae Quadrimestres ex universis praeter Indiam et Brasiliam outros papeis, em que se contém a instituyção e primeiro locis, in quibus aliqui de Societate Jesu versabantur, Romam progresso do Sancto Officio em Portugal e varios privilegios missae. Madrid: A. Avrial; Administratio, 1894-1925, 7 vols. que os Summos Pontifices e Reis destes Reynos lhe concederão. Lisboa: nas Casas da Sancta Inquisição, 1596. LSP Lettres des souverains portugais à Charles Quint et à l’impératrice (1528-1532). Conservées au archives de Simancas, ed. Aude CPNPP La correspondance des premiers nonces permanents au Viaud. Paris; Lisboa: Centre Culturel Calouste Gulbenkian; Portugal, 1532-1553, ed. Charles-Martial de Witte. Lisboa: CNCDP, 1994. Academia Portugusa da História, 1980-1986, 2 vols. M Bras Monumenta Brasiliae, ed. Serafim Leite. Roma: Institutum CSL Colecção de São Lourenço, ed. Elaine Sanceau. Lisboa: Centro Historicum Societatis Iesu, 1956-1968, 5 vols. de Estudos Históricos Ultramarinos, 1973- 1983, 3 voll. MH Monumenta Henricina, ed. António Joaquim Dias Dinis. CT Concilium Tridentinum. Diariorum, Actorum, Epistolarum, Lisboa: Comissão Executivas das Comemorações do V Nova Collectio. Freiburg im Breisgau: Herder, 1901- . Centenário da morte do Infante D. Henrique, 1960-1974, 15 DBI Dizionario Biografico degli Italiani. Roma: Istituto della vols. Enciclopedia Italiana, 1960- . MI Epp Monumenta Ignatiana, ex autographis vel ex antiquioribus DHDP Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, dir. exemplis collecta. Serie prima. Sancti Ignatii de Loyola Luís de Albuquerque, coord. Francisco Contente Domingues. Societatis Jesu fundatoris epistoale et instructiones. Madrid: Lisboa: Caminho, 1994, 2 vols. G. López del Horno, 1903-1911, 12 vols. DHMPPO Documentação para a História das Missões do Padroado MMA Monumenta Missionária Africana. África Occidental, ed. Português do Oriente. Índia, ed. António da Silva Rego. António Brásio. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1952- Lisboa: CNCDP, 1991-20002, 13 vols. -1971, 15 vols. DHP Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão. Lisboa: MPUC Memoria Professorum Universitatis Conimbrigensis, vol. 1, Iniciativa, 1963-1971, 6 vols. 1290-1772, ed. Manuel Augusto Rodrigues. Coimbra: Arquivo DHRP Dicionário de História Religiosa de Portugal, dir. Carlos da Universidade de Coimbra, 2003. Moreira Azevedo. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000-2001, 5 OA Ordenações Afonsinas, ed. Mário Júlio de Almeida Costa, vols. Eduardo Borges Nunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, 5 vols. DI Documenta Indica, ed. Josef Wicki, John Gomes. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu, 1948-1988, 18 vols. OF Ordenações Filipinas, ed. Mário Júlio de Almeida Costa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, 3 vols. DP Descobrimentos Portugueses. Documentos para a sua História, ed. João Martins da Silva Marques. Lisboa: INIC, 1944-1971, OM Ordenações Manuelinas, ed. Mário Júlio de Almeida Costa. 3 vols. em 5 tomos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, 5 vols. Epp Xav Epistolae S. Francisci Xaverii aliaque eius scripta, ed. Georg RÆSO Rerum Æthiopicarum Scriptores Occidentales inediti a sæculo Schurhammer, Josef Wicki. Roma: Institutum Historicum XVI ad XIX, ed. Camillo Beccari. Roma: C. de Luigi, 1903- Societatis Iesu,1996, 2 vols. -1917, 15 vols. GTT As Gavetas da Torre do Tombo, ed. António da Silva Rego. Lisboa: Relações Relações de Pero de Alcáçova Carneiro conde da Idanha do Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1960-1977, 13 vols. tempo que êle e seu pai, António Carneiro, serviram de 8 9 secretários (1515 a 1568), ed. Ernesto de Campos de Andrada. Lisboa: Imprensa Nacional 1937. STEGMÜLLER STEGMÜLLER, Friedrich – Filosofia e Teologia nas Universidades de Coimbra e Évora no século XVI, trad. Alexandre Fradique Gomes de Oliveira Morujão. Coimbra: Instituto de Estudos 11 Filosóficos, 1959. AGRADECIMENTOS Publicar um livro na língua da cultura cuja história se estuda tem um gosto especial para um autor estrangeiro. Ainda mais quando ele vivencia pela primeira vez essa experiência. Na minha viagem através do pensa- mento de homens que contribuíram para moldar a configuração do império português no alvorecer da Idade Moderna, tive companheiros preciosos em diversos lugares, de Portugal ao Brasil, de Itália a França, aos Estados Unidos, onde fui procurar fontes, documentos de arquivo, antigos manuscritos, edições raras, por vezes únicas. Não é possível aqui recordá-los todos, mas quero expressar a minha gratidão, pelo menos, a Cátia Antunes, Luca Baldissara, Francisco Bethencourt, Clelia Bettini, Charlotte de Castelnau-L’Estoile, Thomas M. Cohen, Diogo Ramada Curto, Massimo Donattini, Bruno Feitler, Carlo Ginzburg, António Manuel Hespanha, Susana Bastos Mateus, Nicole Reinhardt, Jean-Frédéric Schaub, Stuart B. Schwartz, Evergton Sales Souza, Sanjay Subrahmanyam, José Alberto Tavim, Francesca Trivellato e Ines G. Županov. Conversar com eles foi um privi- légio raro. Cada vez que o fiz, aprendi a reolhar os objectos de pesquisa de uma forma nova. Na origem do livro que o leitor tem nas mãos está a cidade de Pisa e o ambiente da Scuola Normale Superiore, um dos raros espaços de autêntica liberdade académica na Itália de hoje. Foi aí que os primeiros resultados desta investigação vieram à luz, sob a forma de uma tese de doutoramento que defendi em 2008. As críticas e sugestões de colegas e alunos, que tive a sorte de receber em Pisa, foram de imensa utilidade, sobretudo as sempre pontuais e perspicazes de Michele Olivari e Vincenzo Lavenia, com os quais 10 amo passear pela cidade trocando ideias. Aliás, sem o apoio financeiro do o pouco que percorri até agora não constitua um desvio ao seu ensino. Este projecto do Ministério italiano da Educação, Universidade e Pesquisa «Beyond modesto resultado dos meus esforços é-lhe dedicado. the Holy War», de que sou coordenador na Scuola Normale, nunca teria tido a tranquilidade para completar este livro. Lisboa, 9 de Novembro de 2011 No ano académico 2009-2010, tive a inestimável oportunidade de fre- quentar, como bolseiro de pós-doutoramento, o seminário de Serge Gruzinski, na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, onde se aprende, orientado por um verdadeiro mestre, a pensar o mundo. Foi um estímulo extraordinário, num período em que estava a reflectir sobre a estrutura final deste livro. Desejo ainda agradecer a generosa hospitalidade do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, em cujos espaços tive a possibili- dade de transcorrer dois meses magníficos graças à Bolsa Europeia de intercâmbio em Ciências Sociais, e de rever a versão final do livro, discu- tindo com colegas excelentes, entre os quais Pedro Cardim e Mafalda Soares da Cunha. À amabilidade de Ricardo Roque e Filipa Lowndes Vicente devo o convite para submeter partes do presente trabalho ao juízo exigen- te dos seminários que coordenam, onde pude aproveitar de comentários de grande agudeza, nomeadamente por parte de João Paulo Oliveira e Costa e Francisco Contente Domingues. No ICS pude ainda, e sobretudo, aprofundar a amizade e a colaboração intelectual com Ângela Barreto Xavier, com a qual desenvolvi um diálogo que me tem marcado muito. Este livro não existiria sem o calor e o entusiasmo de José Pedro Paiva, um colega, mas sobretudo um verdadeiro amigo, com o qual partilho há mais de dez anos a paixão pelos estudos históricos e não só. Nunca pode- rei compensar a liberalidade com que sempre me acolheu em sua casa em Coimbra e em Santar, bem como a constância com a qual me encorajou perante as dificuldades quer da investigação, quer da vida. A ele devo ain- da a cuidadosa revisão científica da tradução deste livro e o incentivo a publicá-lo na prestigiada Imprensa da Universidade de Coimbra. Finalmente, as minhas últimas palavras são para Adriano Prosperi. Ao seu exemplo de rigor e de inovação no campo historiográfico e de integridade cívica devo quase tudo. Durante os anos da minha formação tive sempre consciência da grandeza do mestre que me indicava o caminho. Espero que 12 13 15 PRÓLOGO UM IMPÉRIO ESQUECIDO «ver este Reyno… tomar sobre os hombros de sua obrigação hum Mundo, não pintado, mas verdadeiro, que ás vezes o podia fazer acurvar com o grão pezo da terra, do mar, do vento, e ardor do Sol, que em si continha: e o que era mais grave, e pezado que estes elementos, a varie- dade de tantas gentes, como nelle habitavam». (João de Barros, Ásia, déc. 1, 6, 1) Passaram quase quatro décadas desde que a palavra «império» deixou de ter um significado de posse para os portugueses. No quadro da relação íntima que uniu as guerras de independência da Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, durante o fim da ditadura salazarista, com a Revolução dos Cravos (25 de Abril de 1974), reflecte-se a centralidade que o conjunto das possessões ultramarinas conservou para Portugal, até ao ocaso da experiência histórica do colonialismo oficial. Sendo o último Estado europeu a abandonar um sistema colonial que principiou a estruturar-se durante os séculos XV e XVI, Portugal foi a primeira monarquia do continente a fundar um império ultramarino moderno, na acepção alargada proposta por Anthony Padgen: «um Estado estendido, no qual um grupo étnico, ou uma tribo, com um ou outro meio, domina sobre diversos outros»1. 1 PAGDEN, Anthony – «Prefazione all’edizione italiana». In Signori del mondo. Ideologie dell’impero in Spagna, Gran Bretagna e Francia, 1500-1800, trad. Vincenzo Lavenia. Bologna: Formas de reivindicação substancial da passada grandeza imperial ca- propostas de uma leitura actualizadora dos maiores teólogos da segunda racterizam ainda hoje instituições públicas e amplos sectores da cultura escolástica em matéria de guerra justa e de direito à conquista. Não faltaram oficial de um país que, não obstante o retorno à democracia, dificilmente tentativas de descobrir semelhanças entre a história da recuperação do mo- se dispõe a iniciar uma revisão do forte mito histórico relativo à «expansão delo da cruzada na cultura europeia, durante os séculos XIX e XX, e a viragem portuguesa no mundo», para glosar o título de uma obra clássica dos anos impressa à política externa dos Estados Unidos depois do 11 de Setembro 30 do século passado2. Factos e acontecimentos já longínquos, cuja memória de 2001. Sobre estas questões abriu-se uma discussão pública intensa, com conserva, no entanto, uma forte carga emotiva. Limitar-me-ei aqui a relem- frequência de alto nível, e que alcançou expressão em importantes revistas brar um episódio da história recente que teve forte eco em Portugal: o acto científicas, nos principais jornais nacionais e entre os volumes à venda nas final das pressões diplomáticas que precederam a deflagração da guerra no livrarias. Depois da queda da União Soviética, a insistência em considerar Iraque – a cimeira dos Açores (15-16 de Março de 2003) –, o qual foi en- os Estados Unidos como os herdeiros dos grandes impérios do passado volto em acesas discussões. Não faltaram ataques às palavras com que, na (da Roma Antiga à Inglaterra victoriana) teve fortes impactos também no ocasião, o primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso sublinhou o facto plano historiográfico. Não se pode compreender, de facto, o florescimento de que uma tal cimeira entre os Estados Unidos, Inglaterra e Espanha ti- internacional dos estudos sobre os impérios ultramarinos do princípio vesse lugar em território português, «a meio caminho entre o continente da Idade Moderna nos últimos vinte anos, se se prescindir das sugestões europeu e o continente americano».3 Nessa escolha, afirmou, não seria de e referências, tiradas daquela história, que circulam nos debates sobre os reconhecer apenas razões de simples oportunidade geográfica mas também, grandes temas da contemporaneidade, dos fenómenos da globalização eco- «um significado político especial»4. Não é fácil declarar até que ponto aque- nómica e homogenização cultural ao retorno a um emprego maciço da força la afirmação possa ter sido influenciada pelo valor simbólico de uma reunião militar como garantia da ordem mundial5. entre os Estados descendentes dos grandes impérios atlânticos do passado Também em Portugal a herança colonial continua a exercitar sobre a (com excepção de França) e a principal potência mundial do presente. historiografia uma influência relevante, que tende, no entanto, a continuar Certo é que se trata de declaração com implicações históricas densas e ricas implícita e, raramente, discutida. Do mesmo modo, salvo raras excepções, de ecos profundos. os estudiosos portugueses têm mostrado escasso interesse pelas análises Durante a última década muito se escreveu sobre a revalorização das de conjunto do próprio passado imperial que colocam em dúvida quadros doutrinas políticas do início da Idade Moderna, levada a cabo por inte- e interpretações já consolidados, em muitos casos sancionadas no rígido lectuais norte-americanos alinhados com o apoio à guerra do Iraque e, clima intelectual da primeira metade do século XX, sob o regime de Salazar, mais em geral, com a luta planetária contra o terrorismo. Indagaram-se as que soube manter o imaginário vínculo orgânico entre a metrópole e os territórios ultramarinos («Portugal d’aquém e d’além mar»), e que constituiu Il Mulino, 2005, p. 13 (ed. or. Lords of All the World: Ideologies of Empire in Spain, Britain and um dos mais fortes emblemas ideológicos da ditadura. France, c. 1500-c. 1800. New Haven and London: Yale UP, 1995). A tradução do italiano é minha. Rastos dessa atitude podem-se encontrar na permanência de um rótulo 2 BAIÃO, António, CIDADE, Hernani, MÚRIAS, Manuel (dir.) – História da Expansão Portu- guesa no Mundo. Lisboa: Ática, 1937-1940, 3 vols. como o de «Descobrimentos», que é a forma mais habitual para indicar a fase 3 O inicio da colonização portuguesa do arquipélago dos Açores, objecto de disputas entre histórica do gradual processo de constituição do império português, desde os historiadores, deu-se nas décadas finais da primeira metade de Quatrocentos, depois da viagem de Diogo de Silves, que ali desembarcou em 1427. 4 O texto integral da conferência de imprensa de 16 de Março de 2003 está disponível no 5 Um exemplo evidente pode ver-se na introdução ao livro de HEADLEY, John M. – The sítio web do New York Times. Um extracto do título «Excerpts from Joint News Conference: Europeanization of the World: On the Origins of Human Rights and Democracy. Princeton: “Tomorrow is a moment of Truth”» foi publicado no dia seguinte na edição em papel. Princeton UP, 2008. 16 17