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A ciencia e inumana PDF

47 Pages·2004·1.233 MB·Portuguese
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Henri Atlan A CIENCIfl EINUMANAP Ensaio sobre a livre necessidade A CliNCIA EINUMANAP Ensaio sobre a line necessidade Henri Atlan Colepilo QUEST&ES DA NOSSA EPOCA Volume 117 A CIENCIA Dados Internacionais de Catalogagao na Publicapao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ( INUMANA? Atlan, Henri A ciencia e inumana : ensaio sobre a livre necessidade / Henri Atlan ; traduifao de Edgard de Assis Carvalho. — S5o Paulo : Cortez, 2004. — Ensaio sobre a livre necessidade (Colepao questSes da nossa epoca ; v. 117) Titulo original: La science est-elle inhumaine? ISBN 85-249-1057-7 Tradupao de 1. Ciencia - Aspectos morais e eticos 2. Liberdade EDGARD DE ASSIS CARVALHO 3. Livre-arbitrio e determinismo 4. Progresso - Aspectos morais e eticos 5. Responsabilidade 6. Tecnologia - Aspectos morais e eticos I. Titulo. II. S6rie. 04-4974____________________________________CDD-303.483 Indices para catalogo sistematico: 1. Ciencia e livre necessidade : Sociologia 303.483 /^CORT€Z ^CDITORO /S1GORT6Z 'S?€DITORfi Tftulo original: La science est-elle inhumaine? Essai sur la libre necessite Henri Atlan Capa: Estudio Graal Preparagao de originais: Adilson Miguel Sumario Revisao: Maria de Lourdes de Almeida Composifao: Dany Editora Ltda. Coordenafao editorial: Danilo A. Q. Morales 1. O inumano...................................... 2. Livre necessidade e liberdade..... 3. Determinismo e livre necessidade 4. A responsabilidade........................ 5. Tecnologia e etica......................... Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autoriza^ao expressa do autor e do editor. © Paris, Bayard Editions, 2002 Direitos para esta edigao CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 — Perdizes 05009-000 — Sao Paulo - SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 E-mail: cortez @cortezeditora.com.br www.cortezeditora.com. br Impresso no Brasil — novembro de 2004 /Ei CORTEZ '»€DITORO [0 inumano] O inumano diz respeito apenas a especie hu- mana. Somente seres humanos podem ser inumanos ou confrontados a inumanidade. As existencias mineral, vegetal e animal pertencem apenas ao “nao-humano”. Justamente pelo fato de a ciencia ser uma das atividades mais carac- terfsticas da especie humana, a questao que hoje se coloca diz respeito ao carater humano ou inumano de suas produces. Nesse caso, a cien­ cia poderia ser considerada inumana? Desde a inven§ao do fogo, as ciencias e as tecnicas sempre fascinaram e amedrontaram si- multaneamente, pois tudo o que fizeram foi au- mentar os poderes dos homens sobre a natureza e sobre eles mesmos — inclusive em sua inu­ manidade. Por meio da sua pesquisa de meca- nismos, explicagoes causais e leis profeticas que reduzem o campo do livre-arbftrio a algo que tende a desaparecer, a ciencia, entendida como nao pode deixar de surgir. Mesmo quando eu saber, seria algo essencialmente inumano? Sob dedicava todo o tempo a pesquisa, em minha o efeito de uma certa tradi?ao humanista, a hu- vida privada continuava a me comportar como manidade dos homens foi durante muito tempo qualquer pessoa. Fazia pianos para o futuro, associada aquilo que se acreditou ser o exercf- vivenciava conflitos, enfim, comportava-me cio do livre-arbi'trio. A afirma9ao do determi- como um agente que decide o que quer fazer. nismo, ao qual conduzem cada vez mais as des- Minha experiencia cientifica me levava a defen­ cobertas cientfficas, parece, assim, incitar a afir- der, em teoria, a posit^ao do determinismo ab- mafao de sua inumanidade. soluto. O simples engajamento em uma pesqui­ sa das causas pressupunha o determinismo como Esse tema evoca outro que considero crucial, postulado. Mas, no momento em que defendia e ate mesmo urgente, mas ao qual raramente esta posi§ao, eu lutava para obter coisas con- nos dedicamos. Hoje uma pergunta se coloca cretas, tomava uma ou outra decisao, escolhia de modo relativamente novo: “O que e a nossa essa ou aquela estrategia... Isso nao mudava em liberdade?” Se essa questao se impoe a mim nada minha vida cotidiana, nem as redoes que agora, nao consigo lembrar-me do exato mo- eu estabelecia ao meu redor, mesmo em meu mento em que ela me ocorreu pela primeira vez. laboratorio. Em suma, eu vivia plenamente a Talvez porque simplesmente nao tenha havido contradi§ao entre a teoria e o vivido. Foi nessa esse exato momento. A reflexao que se segue desconfortavel posigao que descobri as filoso- nao e resultante de uma subita ilumina9ao, mas fias do determinismo absoluto, primeiro os es- antes o resultado de uma pratica cotidiana — a toicos, depois outros e, posteriormente, Spinoza. pesquisa biologica — e de uma reflexao filoso- Foi possfvel entao conciliar essas duas expe- fica que empreendo sobre ela. Quando se passa riencias... grande parte do tempo pesquisando as causas dos fenomenos, das determinates, as vezes Se a inumanidade consiste em desmistificar mesmo das leis, quando a cada dia se busca o tanto quanto possfvel as paixoes alienantes e as ideal da pesquisa cientifica, o questionamento ilusoes humanas, inclusive as que a ciencia con- /acoRTez V&€DITORO tribui para fomentar, entao nao resta duvida de que a ciencia e inumana. Mas se a inumanidade consiste em submeter os corpos e as mentes ao sofrimento, a incapacidade e a ignorancia, a 2. ciencia, ao contrario, e um fator insubstitufvel [Livre necessidade e liberdade] de humanidade. Ate a segunda metade do seculo XX, convi- vemos com a ideia de que eramos agentes li- vres, nao apenas no piano politico, mas sobre- tudo no piano metafisico. Decidimos livremen- te empreender determinadas agoes, com uma fi- nalidade tambem escolhida de forma livre, ba- seada em nosso julgamento sobre o que e o bem e o mal. E sempre com base nessa ideia — “so- mos dotados de livre-arbftrio” — que somos julgados responsaveis. E ela que se encontra na raiz das filosofias morais, pelo menos das mais conhecidas, dentre elas, a kantiana, que primei- ro lan9ou os fundamentos da condi§ao livre. Inumeros pensadores empenharam-se em mos- trar que certos aspectos da filosofia de Kant encontravam-se defasados da evolu§ao das cien- cias. No infcio do seculo XX, sua epistemolo- gia passou pelo crivo das evolu9oes relativamen- A CIENCIA E INUMANA? 13 te novas da fisica. A influencia de uma ffsica neurociencias revelam uma continuidade entre newtoniana ultrapassada foi revelada em sua o nao-vivo e o vivo, entre o mundo sem cons- concepgao de tempo e espago. A reviravolta que ciencia e o mundo da consciencia humana. De hoje testemunhamos e, porem, ainda mais im- certa maneira, safmos de um perfodo que pode portante. E com rela§ao as descobertas da bio- ser qualificado de “pre-biologico”, no qual a logia que a filosofia de Kant encontra-se hoje de- existencia da alma cindia o mundo em dois, dis- fasada. E por uma razao de ordem semelhante. tinguia os seres animados dos inanimados, e o E necessario falar um pouco acerca dos avan- homem de qualquer outro ser vivo. A alma hoje I 90s recentes na biologia a fim de melhor com- so existe para filosofos e poetas. De Platao a ^ preendermos a crise atual. Para a maioria dos Descartes, cafram por terra todas as visoes an- pesquisadores contemporaneos de Kant, a bio­ teriores de uma alma governando o corpo como, j logia obedecia a pressupostos, a principios ou a um cocheiro governa sua carruagem. ,j 1 teorias vitalistas. Os seres vivos se distinguiam Quer dizer, entao, que toda diferenga deixa- dos nao-vivos de modo ontologico ou, pelo ria de existir, que nao conseguiriamos distin- menos, epistemologico. Kant podia entao pen- guir um cao de uma nuvem? E evidente que nao, sar os organismos vivos pela finalidade interna pois a diferen?a subsiste, embora tenha muda- que neles se manifestava e os opunha aos ou- do de natureza. O que separa o cao da nuvem e tros, unicamente determinados, por mecan\smos uma questao que deve ser pensada independen- causais. Esse a priori praticamente desapare- temente. Quando observamos uma nuvem, ceu do discurso da biologia atual. Durante a vi- colocamo-nos problemas de estrutura, eventual- gencia do vitalismo, a diferen?a entre seres vi­ mente de causalidade — como ela se transfor­ vos e os outros foi solidamente fundamentada. ma em chuva, por exemplo —, mas jamais ques- A biologia molecular nos mostra todos os dias toes de fun§ao. Na verdade, quem afirmaria que que os organismos, bem longe de obedecer a a fun5ao da nuvem e produzir a chuva? Dito de uma finalidade interna, sao regidos por meca- outro modo, so nos colocamos essa questao de nismos ffsico-qufmicos. Hoje a biologia e as fun§ao quando estamos diante de seres vivos. E mesmo nesse caso, nao se espera mais que a lugao biologica do seculo XX1 consistiu preci- fungao explique a estrutura do organismo. As- samente em explicar, pelo menos em linhas ge- sim como aquilo que aparece como uma finali- rais, esses comportamentos, pretensamente ca- dade interna, a fungao deve ser explicada de ma- racterfsticos da vida, a partir das propriedades neira mecanica. Essa e a tarefa da biologia mo­ ffsicas e quimicas das moleculas, que tinham a lecular atual. Nao ha mais diferenga de nature- estrutura conhecida e podiam ser sintetizadas za e, por isso, pode-se falar de uma continuida- em laboratorio de modo artificial. O primeiro de entre o mundo ffsico e o mundo vivo. abalo ocorreu no infcio do seculo XX com a As mesmas leis se aplicam, apenas as pro- smtese da ureia, molecula de origem organica. priedades variam: uma pedra nao respira, uma Desde entao, a bioqufmica nao parou de sinteti- ameba nao pensa... zar novas moleculas organicas (ate as protefnas, nos anos sessenta), reduzindo cada vez mais o Durante muito tempo, a capacidade de repro- dugao, juntamente com a transmissao de carac- 1. Da sintese da ureia a descoberta do codigo genetico, teristicas hereditarias, foi considerada o feno- nos anos sessenta, os que chegaram a pensar que consegui- meno mais especifico da vida, inteiramente ir- riam explicar o ser vivo pelo metodo mecanicista opuse- redutfvel as leis ffsico-qufmicas. De modo se- ram-se aqueles para quem esse fato constituia uma vitoria apenas parcial. melhante, o metabolismo e a capacidade de um Os grandes exitos da biologia molecular ocorreram tam- organismo de se adaptar as mudangas do meio- bem nos anos sessenta: de um lado, a descoberta do substra­ ambiente constitufam provas da existencia das ta molecular dos genes sob a forma do ADN, de outro, os forgas vitais. Ate o seculo XX, julgava-se que, mecanismos pelos quais esses genes orientam a sintese das protefnas. A natureza ffsico-qufmica dos genes e o mecanis- nos organismos, existiam moleculas ditas or- mo de sintese das protefnas (moleculas observaveis unica- ganicas que podiam ser observadas e analisa- mente em seres vivos) constitufam os dois grandes proble- das, embora sua smtese fosse impossivel de ser mas classicos da biologia que o metodo bioqui'mico ainda nao havia chegado a resolver, permitindo que uma concep^ao feita. Em ultima instancia, esse era o segredo nao-mecanica da vida ainda tivesse algum espac^o. O ftm do que escondia a especificidade da vida. A revo- vitalismo ocorreu a partir dessas descobertas. A CIENCIA E INUMANA? 17 mente pela morte de um certo numero de celu­ , domfnio do vitalismo. Nos dias atuais, a unica las que se encontram nos intervalos futuros. Tra- especificidade do ser vivo diz respeito a com- ta-se de um processo muito geral, que pode ser plexidade de sua organizagao e as atividades que encontrado no desenvolvimento do sistema ner- a acompanham. E essas advidades, as quais nos voso central e do sistema imunitario, entre ou- referimos quando falamos de fun^ao, nao reme- tros. Em 1979, jase podia considerar que a vida, tem de modo algum a uma finalidade. As subs- 'defmida por Bichat2 como “o conjunto de feno- tancias radioativas tern tambem uma atividade, menos que se opoem a morte”, revela-se mais embora nao possuam nenhuma fun§ao ou fina­ como “o conjunto dos fenomenos capazes de lidade. Por fim, a descoberta da morte celular utilizar a morte'V programada, ou apoptose, acabou por perturbar as certezas sobre a vida. Sabe-se hoje que cer- ma formula do biologo Szent-Gyorgyi4 pa- tas celulas tern a capacidade de matarem-se a si ;ece resumir em si mesma toda essa aventura: proprias. Mais uma vez, nao se trata de finali­ A vida nao existe”. Quando ele fez essa decla- dade, de uma especie de consciencia que elas ragao um pouco brutal, provavelmente nao pu- teriam acerca de sua propria vida e de sua mor­ nha em duvida sua experiencia cotidiana. Nao te, mas de mecanismos enzimaticos presentes considero nenhuma trai?ao a ele tomar sua asser- na celula em estado latente que, uma vez tiva mais precisa: a vida nao existe enquanto ativados, provocam sua destruigao. Longe de ser nogao explicativa das propriedades organicas. excepcional, esse mecanismo caracteriza a quase totalidade dos seres vivos. A queda das folhas 2. Xavier Bichat (1771-1802). Anatomista e fisiologista de uma arvore nao ocorreria sem a morte de um frances, fundador da anatomia geral. [N. T.] certo numero de celulas situadas no local em 3. Henri Atlan. Entre le crystal et lafumee. Paris, Ed. du que elas se encontram presas aos galhos. Mais Seuil, 1979, p. 278. [Entre o cristal e a fumaga, trad. Vera ainda, essa morte celular participa do desenvol- Ribeiro. Revisao tecnica Henrique Lins de Barros. Rio de vimento embrionario. Como aqueles esbogos de Janeiro, Zahar, 1992] maos e pes que se veem na ultra-sonografia aca- 4. Szent-Gyorgyi, um dos primeiros grandes bioqutmi- cos do seculo XX, descobriu a vitamina C. bam dando forma a dedos e artelhos? Precisa-

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