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121 O Desafio da tradução bíblica para o Português hoje1 PDF

20 Pages·2010·0.15 MB·Portuguese
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O Desafio da tradução bíblica para o Português hoje1 VILSONSCHOLZ UniversidadeLuteranadoBrasil SociedadeBíblicadoBrasil Eapropósitodelínguastenhocáasminhasteorias.Sequisermos escreverumacartadeamor,oitalianoéalínguaindicada:docecomosa- carina,flexívelecariciosa.Ofrancêstambémserveeépelasuaprecisão, ductilidadeeriquezaalínguamaisindicadaparaoensaioliterário.Ese quisermosescreveraumcavalheiroumacartaconcisa,enérgicamasao mesmotempocortês,reclamandoopagamentodumadívida?Paraisso oidealéalínguainglesa.Agora,sepretendemoscontarumamentira– pescariaoucaçadafantástica–alínguamaisindicadaéoespanhol.Mas sedesejarmosfalarduasoudezhoras,eescreverduzentasoumilpá- ginassemdizernada,nada...–bom,nessecasonãohálínguamelhor queaportuguesa... ERICOVERISSIMO “ÀSombradoTalmud”,emAVoltadoGatoPreto,p.352). I. A presença da língua portuguesa no mundo de hoje Última flor do Lácio, inculta e bela. É assim que o poeta brasileiro OlavoBilaccaracterizaalínguaportuguesa,amaisrecentedaslínguas neolatinas ou romances, que tem as suas origens escritas no início do séculoXIII.2 A primeira gramática do português é de 1536: Fernão de Oliveira 1Estetextoé,originalmente,umaconferênciaapresentadanumFórumdeCiênciasBí- blicas,emSãoPaulo.Resultoudasseguintesperguntas:“Existealgoaserfeito,ainda,emlín- guaportuguesa,noBrasil,emtermosdetraduçãodaBíblia?Ouseráquetudooquerestaa fazerédedicar-seàstãonecessáriastraduçõesàslínguasindígenas?” 2Esteamploespaçodetempoajudaaexplicarcomodolatimsepassouaoportuguês,via latimvulgar.Claro,casotivéssemosregistrodolatimfalado,oquenãoéocaso,poderíamos, talvez,verificarqueasmudançasnãoforamtãoacentuadascomo,aprincípio,parecemter sido.Oregistroquesetemdogrego,eaindamaisdolatim,équaseexclusivamentedalín- guaescrita.Easdiferençasentreafalaeaescrita,pelomenosemRoma,erammuitomaispro- |121 fundasdoqueasqueseobserva,porexemplo,noBrasildehoje.Perini(2004),p.160. ABÍBLIAESUASEDIÇÕESEMLÍNGUAPORTUGUESA escreveuGramáticadalinguagemportuguesa.Àqueletempo,oportuguês ocupava, no mundo, uma posição bem diferente daquela que ocupa hoje em dia.3 Era a língua de um país em expansão, uma das grandes potências marítimas e coloniais da época. Em 1580, o português era umalínguamundial–aprimeiralínguadahistóriaaternúcleosdefala em todos os continentes. Era falada em Portugal e na costa do Brasil; em diversas feitorias na costa da África (em regiões que hoje fazem partedeGuiné,Angola,CaboVerde,Moçambique,porexemplo);em algumascolôniasportuguesasnaÁsia:Goa,Bombaim,eMacau.Além disso, era a língua de maior difusão em todo o imenso trajeto que vai daEuropa,contornandoaÁfrica,passandopelaÍndiaeaMalásia,até a China e o Japão. Isto explica, segundo consta, por que, em japonês, o pão se chama pan. E arigatô, o termo usado para agradecer, é, su- postamente,derivadodoportuguês,“obrigado”.Poroutrolado,“ba- nana” é uma palavra que os portugueses aprenderam na África e es- palharampelomundotodo.4Hámesmoevidênciadequeoportuguês era a língua europeia mais falada pelas classes populares na Colônia doCabo(atualÁfricadoSul),apontodeasautoridadesholandesasjul- garemnecessárioproibir seuusopelasamas-de-leite...5 Oportuguêsé,hoje,aoitavalínguanomundo.ÉfaladoemPortu- gal,noBrasil,sendotambémlínguaoficialnospaísesdeAngola,Mo- çambique,CaboVerde,GuinéBissau,SãoToméePríncipee,maisre- centemente, TimorLeste. A maioria dos falantes de português reside no Brasil. São mais de 170 milhões de pessoas (censo de 2000), o que perfaz 3% da popu- lação mundial. O Brasil é um dos poucos países de grande extensão territorial e vasta população que é monolíngue (o que não significa, comoseveráadiante,queexistahomogeneidadelinguística).Somente pequenos contingentes dessa população – comunidades indíge- nasedescendentesdeimigranteseuropeuseasiáticos–nãotêmopor- tuguês como língua materna e exibem variados graus de bilin- guismo.6 3Hoje,umalínguaquepodeserignoradapelamaioriadoshabitantesdoplaneta,eque nãolevaninguémmuitolonge,tãologocruzouafronteira. 4Bagno(2001b),p.79. 5Perini(2004),p.105. 6SomandoaslínguasindígenaseaslínguaslevadasaoBrasilpelosimigranteseuropeus easiáticosapartirdoséculo19,são200línguasmaternasnoBrasil.Todosessesfalantesreu- nidosnãochegamarepresentarumporcentodapopulação.SegundoAryonD.Rodrigues(ci- 122| tadoemBagno,NormaOculta,p.74),“asegundalínguamaisfaladanoBrasiléojaponês,com cercade400.000falantes”. ODESAFIODATRADUÇÃOBÍBLICAPARAOPORTUGUÊSHOJE II. Diferenças entre a língua em Portugal e no Brasil Gramáticos sempre aceitaram como inevitáveis as diferenças fo- nológicaselexicaisentreoportuguêsdePortugaleoportuguêsdoBra- sil.Noentanto,quandosechegaaquestõesmorfossintáticas,nemto- dosestãodispostosaadmitirque, defato,existamdiferenças. Quanto ao léxico, o que em Portugal é comboio é trem no Brasil. O queépequenoalmoçoemPortugalécafé(damanhã)noBrasil.Nãoéde hoje que se percebem diferenças desse tipo. Já no século XVIII, D. Je- rônimo Contador de Argote caracterizava o léxico do português bra- sileirocomopossuidorde“muytostermosdaslinguasbarbaras,emuytos vocabulosdoPortuguez antigo”.Issofoiem1725. Entretanto,oquemaissaltaaosolhos,ou,então,fereosouvidos,é adiferençafonológica.TambémdelasetemregistrojánoséculoXVIII. Alguém(JerónimoSoaresBarbosa)informa,emsuagramática,queos brasileirosdizem“minino”(paramenino)e“mideu”(paramedeu).Em Portugal, os falantes parecem enfatizar mais as consoantes, ao passo quenoBrasilalínguaéconservadoramentevocálica.7EmPortugal,há uma tendência muito forte para a redução das vogais pré-tônicas ou não-acentuadas, enquanto no Brasil elas são articuladas claramente. A separação estrutural entre o português europeu e o português brasileiro é um fenômeno lento e de águas profundas, como diz Ivo Castro,historiadordalínguaportuguesadaUniversidadedeLisboa.8 Alémdisso,nãoésóoportuguêsdoBrasilquevaimudandoeseafas- tando do português de Portugal; a recíproca também é verdadeira. Dentrodatendênciadeenfatizarasvogaise“engolir”asconsoan- tes, o português brasileiro enfraquece as consoantes em posição final dapalavra,posiçãoemqueoportuguêseuropeuapresentaarticulação forte.9 No Brasil, vocaliza-se o <-l> final em /u/. “Brasil” é, na pro- núncia,brasiu.Nocasode“mal”e“mau”,ficadifícildistingui-los,na pronúncia,embora,noSuldoBrasil,sepronuncieesse“l”declarada- mente:legal,leal. Quantoadiferençasmorfossintáticas,algumasaindaestãorestritas àlínguafalada,enquantooutrasjácomeçamaaparecertambémnaes- crita.Talvezumadasdiferençasmaisevidentesentreoportuguêseu- 7Bortoni-Ricardo(2005),p.32. 8CitadoporMattoseSilva(2004),p.121. |123 9MattoseSilva(2004),p.142. ABÍBLIAESUASEDIÇÕESEMLÍNGUAPORTUGUESA ropeueobrasileiroéavariação“estara+infinitivo”(estarapensar), que ocorre em Portugal, e “estar + gerúndio” (estar pensando), que é comumnoBrasil.10 NoBrasil,existeumusogeneralizadodaterceirapessoaverbal,com aexpansãodousode“você”edo“agente”comopronomespessoais. Istotrazconsigoareduçãodousodo“tu”edo“vós”.11Esseaumento dousode“você”contribuiparaaambiguidadede“seu”,quepodeser “devocê”,“dele”,“dela”,“deles”,“delas”.Hoje,noportuguêsfalado doBrasil,“seu”significaapenas“devocê”,excetoemconstruçõesmais ou menos fixas, como, por exemplo, “Fulano e sua cara de pau”. Nos outros casos, usa-se as formas analíticas “dele”, “dela”, “deles”, “de- las”, “do senhor”, e inclusive “de vocês”, porque “seu” vale apenas para osingular.12 OportuguêsfaladonoBrasilestáalterando,também,aformadeex- pressaroobjetodeverbos,especialmentenocasodepronomes.Osdi- tospronomescomplementosclíticos,emespecialosdeterceirapessoa (“o”, “a”, “os”, “as”), estão sendo eliminados. Uma tendência é o ob- jeto nulo, isto é, o apagamento do objeto direto pronominal clítico. Exemplo: “Viu a Maria? – Não vi.” Um exemplo bíblico é Mateus 27.11.OtextodeAlmeidadiz:“Tuodizes”,eaNovaTraduçãonaLin- guagem de Hoje (NTLH)13 traz: “Quem está dizendo isso é o senhor”. A tendência, hoje, seria dizer: “O senhor está dizendo”. Em Marcos 15.13,otextodeAlmeida,queseguedepertoaformadooriginalgrego, diz:“crucifica-o”.Emcontrapartida,aNTLHsegueatendênciadalin- guagemfalada,noBrasil:“crucifica”.14 Outra característica do português brasileiro é o uso do assim cha- mado“eleacusativo”,ouseja,ousodopronomeretoemlugardoob- líquo.Porexemplo,ementrevistanumjornal,aperguntafoiexpressa assim:“Econheceueleemalgumeventoquerealizou”?Aoqueaen- trevistada respondeu: “Conheci ele numa festa, mas apenas conver- 10Estar+a+infinitivojáocorrenoséculoXVI,emGilVicenteeCamões,sendoquese tornoumaisfrequentenoséculoXVIII.MattoseSilva(2004),p.137. 11Este“você”,queevoluiuapartirde“vossamercê”,acabouperdendootraçodereve- rênciaesubstituiopronome“tu”namaioriadasvariedadesdoportuguêsbrasileiro.Uma novaformadetratamentoreverentegeneralizou-se:“osenhor”,“asenhora”.Formasdase- gundapessoadoplural(“vós”)sóaparecememtraduçõesbíblicasdeequivalênciaformale naliturgiadamissacatólica.Emalgumasregiõesbrasileiras,nomeadamenteoSul,usa-seo “tu”,nafala,comoverbonaterceirapessoa:“tuvai”. 12Perini(2004),p.62. 13TraduçãobrasileiraquecorrespondeàtraduçãoemPortuguêsCorrente. 124| 14Atéporqueémuitomaisnatural,emportuguês,umamultidãogritar“crucifica!”doque “crucifica-o!” ODESAFIODATRADUÇÃOBÍBLICAPARAOPORTUGUÊSHOJE samos. Depois, encontrei ele na praia”. Esse uso do nominativo pelo acusativo é praticamente desconhecido em Portugal. No Brasil, uma pesquisaindicaqueestudanteschegamarecuperaressesacusativosde terceira pessoa. Na escrita, o índice chega a 85%. Na fala, a recupera- çãoémínima,na ordemde10%.15 Emtodasasvariedadesdoportuguêsbrasileiro,ospronomesretos substituíram os pronomes oblíquos em construções como “deixa eu ver”,“mandeeleentrar”,“ouvielachorando”,emqueanorma-padrão prescreve“deixa-mever”,“mande-oentrar”,“ouvi-achorando”.Essa inovação morfossintática já entrou até na língua escrita, em textos mais monitorados, de tal sorte que raramente alguém percebe aí al- guma anomalia. Marcos Bagno, por exemplo, cita o romancista Jorge Amado(“Achavaelabonita”),opoetaManuelBandeira(“Levavaele prasala”),eaescritoraClariceLispector(“Esserelancemedeuelade corpo inteiro”).16 Em casos semelhantes, a NTLH traz “deixa-me” e “deixe-me”.Aoquetudoindica,um“deixaeu”ouum“mandeele”se- ria demasiadamentecoloquial. Nessamesmalinhavemousodocasooblíquo(dativo)ondesees- pera o reto (nominativo), na popular locução “pra mim + infinitivo”. Um exemplo é “Pra mim fazer”. Não é tão difícil de explicar esse fe- nômeno:umavezquealocução“pramim”émuitocomum(em“dar pramim”,porexemplo),“paraeu”soaerrado.Pormaisquesejacom- batidopelospuristas,issoéfaladonoBrasilfaztempo.OViscondede Taunay,noromanceInocência,temumpersonagemdizendo:“vamos aproveitar aparadadafebre para mimatalhá-la depronto”.17 NoBrasil,háaindaaceitaçãogeneralizadadosclíticosnaprimeira posição da sentença: “Me passa esse livro”. A exceção são os acusati- vos “o”, “a”, “os”, “as”.18 Uma comparação entre a Tradução em Por- tuguêsCorrenteeaNTLHilustraisso.EmJuízes16.6,naNTLHselê “me conte”; na Tradução em Português Corrente, “diz-me”. Em Gênesis15.1,ondeaTraduçãoemPortuguêsCorrentetraz“disse-lhe”, a NTLH optou por “lhe disse”. “Disse-lhes” aparece uma única vez, na NTLH, em Êxodo 36.2. Por outro lado, “lhes disse” aparece 66 vezes. As formulações “falou-lhe” e “falou-lhes” não aparecem na NTLH. 15PesquisadeVilmaCorrea,citadaemMattoseSilva(2004),p.164. 16Bagno(2005),p.134,165. 17Britto(2002),p.150.Esseromanceéde1872.Taunayfoiumdosprimeirosprosadores brasileirosafazerusodelinguagemcoloquialregionalemsuasobras. 18MattoseSilva(2004),p.145.“Aviontem”éumaformulaçãoimprovável,jáque“viela |125 ontem”surgedeformabemmaisnatural. ABÍBLIAESUASEDIÇÕESEMLÍNGUAPORTUGUESA Registra-se,também,umamudançanasestratégiasderelativização, istoé,nousodopronomerelativo.Orelativo“cujo”nãoaparecemais noportuguêsbrasileirofalado,ficandoseuusorestritoàlinguagemes- critamaisformal.Ésubstituídoporconstruçõessintáticasanalíticas.Os brasileirosdetodasasregiões,classessociaiseníveisdeescolaridade dizemtranquilamente“Amoçaqueopaidelaémédico”ou“Amoça queopaiémédico”.19NaNTLH,“cujo”e“cujos”aparecememtorno de dez vezes, duas delas, surpreendentemente, no Apocalipse (15.2; 16.10). “Cuja” e “cujas” aparecem mais de 20 vezes, normalmente na locução“cujamãeera”. Outrofenômenodoportuguêsbrasileiroéaproliferaçãodeverbos leves.Verboslevessãoverbossemanticamentevazios,que,emgeral, se associam a um elemento nominal, responsável pelo significado principal da sentença.20 Esse tipo de construção é muito comum com algunsverbosdoportuguêsbrasileiro,como“dar”,“levar”,“tomar”, “fazer”, e “pôr”. Exemplos: Marta deu uma olhada no pão (= Marta olhouopão).Anafezcomprasnoshopping(=Anacomprounoshop- ping).AlgodistojápodeservistonaNTLH.NoSalmo148.5,porexem- plo, se lê “deu uma ordem”, quando poderia ser também “ordenou”. Outra forma que raramente se encontra hoje é o mais-que- perfeitosimples,dotipofizera,queéregularmentesubstituídoporti- nha feito.21 Neste ponto, NTLH está bem atualizada, pois, um exame, ainda que superficial, revela que não existem mais essas formas no textodatradução. Outra característica do português brasileiro, que não aparece nas Gramáticas,éousodedemonstrativosseguidosdeadvérbiosdelugar, como “este aqui”, “esse aqui”, “esse aí”, “aquele ali”.22 “Este aqui” já aparece na NTLH em Gênesis 48.18; Lucas 14.9; João 21.21, em luga- resondeotexto deAlmeidatemaformasimples:“este”. NoBrasil,tambémseusaoverbo“ter”comosinônimoesubstituto de“haver”,oqueéconsideradoincorreçãonalínguaculta.Exemplos disto são as frases “Não tem problema” e “Tem uma nova loja de ar- tigosparacrianças”.Esseusoécorrentenalínguafalada,ejácomeça aseinsinuar naescrita.23 19Bagno(2005),p.144. 20Emtermostécnicossediriaque“overboprincipalésemanticamentevagoeocomple- mentonominaltemcomonúcleoumnomedeação,emgeralderivadodeverbo”. 21Perini(2004),p.20. 126| 22Carvalho(2002),p.272. 23Perini(2004),p.20. ODESAFIODATRADUÇÃOBÍBLICAPARAOPORTUGUÊSHOJE Outra raridade, que sobrevive apenas na escrita mais formal, é o futurosimplesdoindicativo,como,“eucantarei”.Onormaléofuturo perifrástico: “vou cantar”, “vou viajar”, quando não se usa simples- mente o presente: “viajo amanhã”. Um exame da NTLH revela que “vouvoltar”aparecesó6vezes,enquanto“voltarei”ocorre14vezes. “Cantarei”, por sua vez, aparece 27 vezes na NTLH; “vou cantar”, 3 vezes. Como se percebe, neste particular a NTLH é, ainda, bastante formal. Outracaracterísticadoportuguêsdehoje,noBrasil,énãofazerdis- tinção entre “aonde” e “onde”, por mais que os gramáticos insistam nessadistinção.Almeida,noséculoXVII,parecenãoconhecê-la,pois escreve,emMateus2,“aondeestáonascidoreidosjudeus”.Também o escritor brasileiro Machado de Assis usa indistintamente “onde” e “aonde”.Nestecaso,porém,aNTLHfazrigorosaaplicaçãodaregra, ouseja,jamaisusaum“aonde”ondesócabe um“onde”. Outra“regra”doportuguêsfaladonoBrasilémanteroverbonosin- gularquandoomesmoantecedeosujeitoplural.Mesmoosbrasileiros classificados de cultos dizem, com naturalidade, “caiu umas folhas aí no chão”. A explicação é a seguinte: “no português brasileiro, tudo o quesecolocardepoisdoverboéintuitivamenteanalisadopelofalantecomo objetoe,dessemodo,mantidoforadaesferadaconcordânciaverbal”.24 Noentanto,essaformulaçãoébemraranalínguaescrita. Alémdessasdiferençasentreoportuguêsbrasileiroeoportuguês europeu, existem ainda as variantes linguísticas no próprio Brasil. Não se tem registro de todas essas variantes, pois a sociolinguística é disciplinarecentenoBrasileospesquisadoressãopoucos.Entretanto, voltaremosaessaquestãomaisadiante. De momento, cabe perguntar: Que língua é essa? É língua portu- guesa,línguabrasileira,portuguêsbrasileiro,ouoquê?Umaformade evitar o uso de “brasileiro” ou “português” é falar em “língua nacio- nal”. Era assim que se falava em meados do século XX, mas, desde o finaldoséculopassado,comoreconhecimentodaslínguasindígenas, oportuguêspassouaseralínguaoficialdoBrasil,enãomaisalíngua nacional.Entreasváriasdesignações,encontram-seasseguintes:mo- dalidadebrasileiradalínguaportuguesa,variedadebrasileiradopor- tuguês, português do Brasil, gramática brasileira, português brasi- leiro.25 A sociolinguística brasileira passou a usar, a partir de 1970, a designaçãoportuguês brasileiro. 24Bagno(2005),p.27. |127 25Ibid.,p.47. ABÍBLIAESUASEDIÇÕESEMLÍNGUAPORTUGUESA III. Uma tentativa de história do idioma português no Brasil Muitosdosaspectosdescritosanteriormenteaindaprecisamserex- plicados do ponto de vista histórico. A grande pergunta é: Quando o portuguêsbrasileiroeoportuguêseuropeucomeçaramasedistanciar? Que fatoresinfluenciaramesseprocesso? SegundoolinguistabrasileiroFernandoTarallo,26oportuguêsbra- sileiroestavasetornandodiferentenapassagemdoséculoXIXparao séculoXX.Istojustificaumpequenopasseiohistórico,poisfatoressó- cio-históricospodemajudaraentenderalgumasdascaracterísticasdo português brasileiro. Muitos,brasileirosinclusive,pensamqueoportuguêsfoiaprimeira e única língua falada no Brasil, desde o começo, isto é, desde o início formal da colonização, em 1532, com a fundação da cidade ou aldeia de São Vicente. Isto é parcialmente verdadeiro.27 Três línguas convi- viamnoBrasilColonial,ealínguaportuguesanãoeraamajoritária.28 Essaslínguaseramolatim,oportuguês,ealínguageraldebasetupi. O latim era a língua das escolas jesuíticas.29 O português era a língua dos europeus, mas a língua materna das novas gerações era, de fato, umalínguageraldecunhoindígena.Istoseexplicapelofatodeamaio- ria dos colonizadores virem como homens “solteiros”. Por exemplo, São Vicente, fundada em 1532, só receberia o primeiro casal de imi- grantes em 1537. A maioria dos que vinham eram homens, que pas- savam a viver com mulheres indígenas. Dessa situação resultou uma população mestiça cuja língua materna era o tupi falado pelas mães. Isto não explica tudo. Havia também uma política por trás disso, quehaviasidoparcialmenteantecipadapeloescrivãodafrotadodes- 26MattoseSilva(2004),p.28. 27Naverdade,nãohámuitainformaçãoarespeitodessaquestão,pois“oshistoriadores, porviaderegra,prestampouquíssimaatençãoàsmaneirasdefalardospovossobreosquais escrevem”(VictorKiernan,citadoporMattoseSilva,p.60).TambémAntonioHouaisscons- tataque“...amemórianacional,tãoverberadaemtantosetantosaspectos,émínimanoque serefereaesseinstrumentoessencialdeunificação(nadiferenciação)queéalíngua,nocaso, alínguanacional”(Houaiss,p.39). 28Pode-sefalardetrêsfasesdahistóriadoBrasilColonial.Aprimeirafaseseencerraem 1654,comaexpulsãodosholandeses,oqueconsolidaacolonizaçãoportuguesa.Aterceirafase seiniciaem1808,comachegadadeDomJoãoVIaoRiodeJaneiro.MattoseSilva(2004),p.56. 128| 29SegundoMattoseSilva,p.39,emseteanosdeestudos,sóseaprendiaportuguêsnapri- meira;apartirdaí,latim. ODESAFIODATRADUÇÃOBÍBLICAPARAOPORTUGUÊSHOJE cobrimento. Pero Vaz de Caminha, na sua célebre Carta, já explicava queseriamaisfácilaosportuguesesaprenderemalínguadosnativos do que o inverso. Essa foi a política adotada pelos jesuítas, que aqui chegaramem1549.NãoporqueseguiramasugestãodeCaminha,mas porqueesseeraoprincípiodecatequeseseguidopelosjesuítasemtoda aparte:usaraslínguasdasterrasemquechegavam.NoBrasil,trata- ramdeaprenderegramaticalizaralínguamaisusadanacostadoBra- sil.Quem,entreoutros,fezesseregistrodalínguafoioPadreAnchieta. Suagramática(daLínguamaisfaladanacostadoBrasil)foiimpressaem Coimbra,em1595,masjáestavaemuso,na Bahia,desde1560. Nos dois primeiros séculos de colonização essa língua brasílica nãoerachamadadelínguageral.30Emfunçãodisso,existeatéahipó- tese de que, na documentação colonial, a locução “língua geral” de- signeumportuguêssimplificadoouum“portuguêsmalfalado”.Aex- pressão “língua geral” passaria a ser usada mais tarde. Designa uma espécie de síntese das línguas indígenas faladas na região de coloni- zaçãoportuguesanoBrasil.Emborafossemvárias,essaslínguaspro- vinham, em sua maioria, de um mesmo tronco, o tupi, o que possibi- litou acondensaçãonumalíngua comum.31 Infelizmente, a documentação de que se dispõe da “língua geral paulista”émuitoescassa.Nãoémaisfalada;seusúltimosfalantesde- vem ter morrido no início do século XX.32 No Brasil, a marca linguís- tica indígena ficou no léxico português. Trata-se dos tupinismos, ou empréstimoslexicaistupis.33 Na segunda metade do século XVIII, o português se tornou hege- mônicoeoficial.Emoutraspalavras,oportuguêsbrasileirocultosóco- meçou a definir-se da segunda metade do século XVIII em diante, a 30MattoseSilva(2004),p.77. 31Soares(2002),p.157. 32Odocumentoprincipalatéagoraconhecidoéumdicionáriodeverbos,nãodatadoede autordesconhecido,maspossivelmentedemeadosdoséculoXVIII,cujomanuscritofoipu- blicado,em1867,porvonMartiusemseusGlossarialinguarambrasiliensium.Éprecisoregis- trarqueexisteoutra“línguageral”,noBrasil,alínguageralamazônica,quefoiregistradaem documentos,algunsbastantesubstanciais,nosséculosXVIII,XIXeXX,equecontinuaaser faladaaindahoje.ApartirdasegundametadedoséculoXIXpassouaserchamadatambém denheengatu. 33SobrevivemnoBrasilcercade180línguasindígenasecercade220.000índios,concen- trados,nasuamaioria,naAmazôniabrasileiraenoBrasilnorte-central.Perfazem0,2%dapo- pulaçãobrasileira.Estima-seque,em1500,onúmerodelínguaschegavaaodobro.Outros, comoAntonioHouaiss,conjeturamquehaviacercade1.500línguasindígenas.SegundoAryon Rodrigues,eram,em1500,1.175línguas,paracincomilhõesdefalantes,emmaisde1.500po- vos.Maisdemillínguas,istoé,85%daslínguasforamdizimadasnoperíodocolonial.Mat- |129 toseSilva(2004),p.37. ABÍBLIAESUASEDIÇÕESEMLÍNGUAPORTUGUESA partirdeumadecisãodoMarquêsdePombal,oprimeiro-ministropor- tuguês.Em1757,alémdeexpulsarosjesuítas,Pombaldefiniuumapo- lítica linguística e cultural para o Brasil: o uso do português passou a serobrigatório.Issorepresentouumamudançaderumonatrajetória que,casonãofossealterada,poderiaterlevadooBrasilaserumana- çãodelíngua majoritáriaindígena. AdecisãodePombaltinha oseguinte teor: “umdosprincipaiscuidadosdosDiretores[será]estabelecernas suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa, não consentindo por modo algum que os Meninos e Meninas ... [e índios] ... usem da língua própria das suas nações ou da cha- madageral, masunicamente daPortuguesa... Pombaljustificouseuato daseguintemaneira: Semprefoimáximainalteravelmentepraticadaemtodasasna- ções que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indispensá- vel, que este é um meio dos mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes e ter mostrado a experiência que, ao mesmo passo que se introduz neles o uso da língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração e a obediência ao mesmo Príncipe. (…) nesta conquista (no Brasil) se praticou pelo contrário, que sócuidavamosprimeirosconquistadoresestabelecernelaouso dalíngua,quechamamosgeral,invençãoverdadeiramenteabo- minávelediabólica,paraqueprivadososíndiosdetodosaque- les meios que os podiam civilizar, permanecessem na rústica e bárbara sujeição,emque atéagora seconservam.34 Seosabortropicaldoportuguêsbrasileironãoédevidoàinfluên- cia indígena, a que se deve então? Várias teorias já foram propostas. Umadelaséatesedoconservadorismooudocaráterarcaizantedo portuguêsbrasileiro.Essatesefoidefendida,naprimeirametadedosé- culoXX,pelorenomadogramáticoSerafimdaSilvaNeto.Segundaessa tese,oportuguês“clássico”ou,então,oportuguêsdoprimeiroséculo decolonização,teriasidopreservadonoBrasil,aopassoque,emPor- tugal, sofreu evolução. Essa tese também é invocada para explicar as diferençasfonológicasentre asduasformasdoportuguês. Essa tese do conservadorismo atrai a muitos, pois dá certo prestí- gioaoportuguêsdoBrasil.Noléxicoregionalrural,especialmentenos | 130 34Diretóriode3demaiode1757,citadoemSoares(2002),p.159-160.

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gua portuguesa, no Brasil, em termos de tradução da Bíblia? Ou será que variedade altamente formal, usada por indivíduos altamente educados,.
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