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1 A ARTE DE PROLONGAR A VIDA DE CHRISTOPH FRIEDRICH WILHELM HUFELAND (1762 PDF

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1 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT A ARTE DE PROLONGAR A VIDA DE CHRISTOPH FRIEDRICH WILHELM HUFELAND (1762-1836) Luiz Ricardo Solon Introdução Dois historiadores da ciência confirmaram a liderança de Christoph Wilhelm Friedrich Hufeland (1762-1836) durante a reforma da medicina germânica na virada do século XVIII para o XIX (BROMAN, 2002; RICHARDS, 2002).1 Hufeland foi médico da Corte, membro da Academia de Ciências de Berlim (1800), Cavaleiro da Ordem da Águia Vermelha (1809), profícuo coordenador do ensino médico na Universidade de Berlim na condição de Reitor (1810), fundador e diretor do Hospital Charité em Berlim (1810) e editor permanente do Jornal de Medicina Prática (Journal der Practischen Heilkunde) durante quatro décadas (1795-1836). Em 67 volumes desta revista ele articulou com sucesso o debate dos pensadores germânicos sobre a pretendida modernização da ‘arte’. Sempre na condição de crítico ferrenho do charlatanismo, Hufeland comandou a implantação da vacina da varíola e fundou o primeiro necrotério da Alemanha. Porém, mais do que autoridade médica, ele se tornou um líder da reforma médica assumindo o papel de patriarca da medicina. Ele almejava agregar as diferentes vias terapêuticas emergentes da confusa medicina germânica dentro de uma mesma tradição, a medicina de raízes greco- romanas, uma frondosa árvore da arte de curar designada Medicina Racional. Nesse projeto Hufeland contou com o apoio do professor e historiador de medicina e botânica Kurt Polycarp Joachim Sprengel (1766-1833)2. Em 1795 ele publicou Ideen über Pathogenie (Idéias sobre Patogenia) para estudantes de medicina, título substituído por Enchiridion Medicum, ou Einleitung der pratischen Heilkunde (Manual de Medicina Prática) em 1836, cuja edição foi póstuma. Em 1796 ele publicou um segundo livro de interesse popular sobre qualidade de vida e prevenção de doenças, Die kunst der menschliche Leben su verlängern (A arte de prolongar a vida) ao qual acrescentou o termo Makrobiotik (Macrobiótica), em 1805, na terceira edição alemã. A oitava edição alemã deste segundo livro serviu como matriz para a  Doutorando em História da Ciência do PEPG/CESIMA/PUC-SP, bolsista do CAPES/PROSUP/MOD.II, sob orientação da Profa. Dra. Silvia Irene Waisse de Priven. 1 Autobiografia (HUFELAND, 1863); Biografia (MICHLER, 1974; PFEIFFER, 2000; NARAGON, 2006-10; HUFELAND, 1818: p. 15-16). 2 Ver SPRENGEL (1815; 1840). Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 2 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT tradução de várias edições inglesas levadas ao continente americano em 1823 por emigrantes alemães (a primeira tradução inglesa foi feita em Londres em 1797 e a obra foi traduzida em várias línguas européias). No presente trabalho foram utilizadas as versões impressas francesas: o Manuel de Médecine Pratique (HUFELAND, 1841) e L’Art de prolonguer la Vie (HUFELAND, 1896). Estas são as duas principais obras de Hufeland que foram escritas no período no qual manteve consultório particular em Weimar durante dez anos. Graduado em Jena e Göttingen (1783), ele ingressou como professor de medicina em Jena (1793) à convite do Duque de Weimar, impressionado com seu projeto prolongevitista apresentado nas famosas reuniões de sexta-feira do grupo de intelectuais liderados por Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832) (NARAGON, 2006-10). O projeto de Hufeland convergia com a condução da monarquia no privilégio do pensamento ortodoxo luterano sobre a cultura e ciência germânico/prussiana, que visava proteger a religião cristã dos desvios filosóficos. A compreensão da complexidade da reforma médica germânica oitocentista nesta investigação foi demarcada em três esferas: a epistemológica, ou, o modo como o conhecimento se organizava naquela época em tensão com a tradição aristotélica (ALFONSO-GOLDFARB, WAISSE, FERRAZ, 2013: 551-560); religiosa, ou, a visão de mundo dos seus personagens em tensão com a intolerância religiosa e a condução da reforma social, dividida entre católicos, pietistas, deístas e materialistas; social, na demanda das más condições de vida e da saúde pública de uma nação solapada por duas guerras3. Desse contexto resultou uma profunda crise de identidade no papel social e utilitário do médico, incompetente para resolver as epidemias e a mortalidade alta de uma população supersticiosa, entregue aos curadores práticos, cujo imaginário era povoado por bruxas, lobos e crianças órfãs: as madrastas eram o centro das famílias alemãs cujas mães sucumbiram no trabalho de parto. Mas, longe de se mostrar decadente, a assustada alma germânica se imbuiu do sentimento de coragem para transformar-se em uma nação européia desenvolvida, emérita no campo cientifico e cultural, competindo intelectualmente com a Inglaterra no século seguinte.4 3 A fragmentação política do Sacro Império Romano da Nação Germânica ocorreu após duas grandes guerras: a primeira, em meados do século XVII, foi a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) que culminou no Tratado da Westfallia (LUÍS MOITA, 2012). A segunda, em meados do século XVIII, foi a Guerra dos Sete Anos (1756- 1763) envolvendo a disputa territorial das colônias européias, mas, também, a feroz disputa entre Áustria e Prússia pelos territórios da Silésia e da Pomerânia, devolvidos à Prússia no final da guerra. Mas, a base territorial do Sacro Império continuou confusa porque incluiu alguns territórios de língua estrangeira e excluíu territórios de língua germânica (SZABO, 2007). 4 O contexto social do Bildung foi melhor esclarecido por Silvia Irene Waisse de Priven (WAISSE-PRIVEN, 2009: 55-88). Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 3 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT A senha para esse grande projeto nacional foi dada na expressão latina Sapere Aude! Ou seja, coragem para esclarecer a razão, para aprender o que deve ser aprendido e produzir grandes transformações e superar a divisão religiosa entre os Estados. Esse projeto foi designado por seus personagens com o termo Aufklärung (Esclarecimento).5 Aufklärung, ou, Esclarecimento [doravante E.], foi um projeto cultural germânico que iniciou em 1690 com o ingresso de Christian Thomasius (1655-1728) na Universidade de Halle, e se desenvolveu de modo diferente do movimento iluminista europeu. O E. preconizou a reforma cultural de uma nação fragmentada com um programa pedagógico de mudança dos valores e hábitos do cidadão designado como Bildung (formação de uma imagem cultural). Mediado pela aliança entre e a Universidade e o Estado monárquico o Bildung estava direcionado para resgatar a identidade nacional cuja subjetividade, individual e social, entrelaçou com a religião, a filosofia, o conhecimento científico e a medicina, produzindo uma dialética rica de intencionalidades, tema de outra pesquisa em andamento. Herdeiros da racionalidade setecentista, os médicos reformistas do tardio século XVIII liderados por Hufeland elaboraram um programa sofisticado que entrelaçou a tradição com a criação de novas abordagens terapêuticas. Esse entrelaçamento ‘antigo-moderno’ da reforma médica foi traçado dentro de uma perspectiva de ascensão da burguesia germânica (Bildundgsbürgertum) implicando na parceria de três instituições: Estado, Universidade e Academia. Portanto, a aliança pragmática Burocracia & Academia, ou, State-building, foi quem operou a modernização cultural do país (Kulturnation) (DARENDORF, 1969). Entre esses operadores estavam os burocratas militares acadêmicos, incluindo os médicos militares, provocando uma tensão permanente entre a organização filosófica do projeto e a organização religiosa do sistema político-educacional, ou seja, com a burocracia estatal luterana. O E. pode ser entendido como um esforço subjetivo da coragem ao utilizar as luzes da razão, para melhorar a vida e a cultura social em direção ao seu próprio destino: Bildung (Educação), Kultur (Cultura) e Aufklärung (Esclarecimento) conduzem ao Bestimmung (Destino). Immanuel Kant (1724-1804) assim o definiu: Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é responsável. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio responsável dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. 5 O termo Esclarecimento (Aufklärung) foi utilizado aqui no lugar de Ilustração ou Iluminismo porque o sentido germânico desse termo privilegia melhor o processo de abertura e mobilização da razão em direção ao aprendizado da reforma cultural. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 4 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT Sapere aude! Ter coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do Esclarecimento [...]6 (KANT, 1974: p. 100) O impulso deísta na organização do conhecimento A iniciativa para a mudança surgiu no debate religioso colocado pela teologia natural ou deísmo inglês (1633)7 setecentista contra a religião revelada e, quatro décadas depois, no interior da própria religião revelada através do pietismo germânico (1675)8. O que estava em jogo era a questão antropológica, ou seja, a concepção de ser humano e a noção de individualidade dentro e fora da tradição aristotélica. O desenvolvimento da teologia natural buscou desvendar os mistérios imanentes na natureza, quebrando a primazia da teologia sobre a filosofia e reinterpretando a noção aristotélica de individualidade e de enteléquia nos séculos XVI e XVII.9 O pietismo marcou forte presença na educação germânica, principalmente na Universidade de Halle, combatendo a escolástica tomista, mas não a escotista10. Um dos principais líderes pietistas foi August Hermann Francke (1666-1722) transformando a Universidade de Halle no seu principal centro de divulgação, através da publicação maciça da Bíblia e do Novo Testamento. Os métodos utilizados convergiam com o Bildung, no sentido de divulgar para educar e reformar a vida social. 6 A pergunta foi feita pelo clérigo Zöllner à Revista Berlinische Monatsschrift em 5 de dezembro de 1783, p. 516 e a resposta foi dada na forma de ensaio por Kant em 30 de setembro de 1784. Kant confessa no final do ensaio ter tido conhecimento da resposta de Moses Mendelssohn (1729-1786) à mesma pergunta naquele mesmo dia. O objetivo dos primeiros editores da Revista (1783-1796), Johann Erich Biester (1749-1816) e Friedrich Gedike (1754-1803), era divulgar e popularizar o Aufklärung. Friederich Nicolai (1733-1811) assumiu a edição da revista com o nome Neue Berlinische Monatsschrift (1799-1811) publicando-a fora do território prussiano devido à censura da monarquia ortodoxa. Desde 1998 a Universidade de Bielefield digitalizou e disponibilizou na internet os 58 volumes da Revista. 7 Na perspectiva deísta o objetivo era desconstruir as verdades reveladas [historicamente dadas] pela religião e construir a verdade natural para todos os campos do saber, firmada na razão natural. Por razão artificial se entendia a lógica formal e a retórica. A crença no poder da razão natural unificou o diversificado pensamento esclarecido através de seus ministros, os filósofos naturais, que promoviam o conhecimento útil para o aperfeiçoamento da raça humana. Esse mote percorreu todo o século XVIII atingindo uma progressiva secularização do conhecimento que investigava as leis naturais. O deísmo iniciou na Inglaterra com Lord de Cherbury (1583-1648) que inaugura a crítica deísta em seu livro De Veritate, em 1633. Neste presente trabalho é privilegiado o termo religião natural porque representa melhor o pensamento germânico deísta. 8 O pietismo foi uma variante da religião revelada e luterana, influente e bem organizado em terras germânicas. Iniciado por Philipp Jacob Spener (1635-1705) publicando o Pia desidéria (1675), onde afirmou o privilégio do coração (vontade e sentimento) na experimentação da fé no lugar da razão. O pietismo foi organizado em pequenos grupos familiares (os collegia) para estudo bíblico como um movimento religioso pragmático e pacifista e foi correlacionado com o surgimento das ciências naturais (MERTON, 2013). 9 A revolução copernicana (heliocentrismo) desconstruiu a primazia da história natural (geocentrismo) na árvore do conhecimento helênico organizada por Plínio, o Velho, no primeiro século antes da era comum. Sobre a influência da revolução copernicana no antigo enciclopedismo ver GOLDFARB (2000: p. 55-60). 10 Georg Ernst Stahl (1659-1734) foi autor da teoria do flogístico e do animismo baseado em princípios essencialistas (imateriais): ele ingressou em Halle em 1694 e tornou-se médico de Frederico I da Prússia. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 5 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT Entretanto, o século XVII germânico manteve a interdição aristotélica entre artes liberais e artes servis perante a emergente filosofia natural. Isso confundiu os pesquisadores sobre a questão antropológica nas relações corpo-alma, na qual havia se debruçado Stahl, no sentido de combater a dicotomia cartesiana (GEYER-KORDESCH, 2000: p.172). Em conseqüência, o animismo stahliano se deslocou para a Escola de Montpellier, que redundou na hermenêutica vitalista diversificada do final do século (STOLLBERG: p.1-20). Mas, essa pluralidade vitalista franco-germânica trazia no seu escopo a necessidade de atender à reivindicação do experimentalismo inglês. John Locke (1632-1704) fundamentado em Francis Bacon (1561-1626) viabilizou para que o século XVIII buscasse o domínio efetivo da filosofia natural, nutrido pela crítica entre teologia natural e religião revelada sobre a questão antropológica.11 Com Locke, Leibniz e Stahl, a filosofia natural oitocentista inverteu a metafísica de René Descartes construindo o princípio vital a partir do empírico. Surgiu, então, um debate conceitual sobre a sintaxe e a ética da nova ciência, a ciência experimental. Dessa forma, o debate entre a teologia natural e a religião revelada sobre a filosofia natural tinha como finalidade estabelecer a condução ética dos experimentos que, no caso de experimentos com medicamentos em humanos ou animais comportava princípios e valores muito específicos discutidos desde a antiguidade sobre a concepção de ser humano, de saúde e doença. O que estava em jogo era se a alma, cerne sagrado do ser vivo (animal ou humano), poderia submeter-se aos artifícios da técnica experimental, se a alma era imaterial ou não, se imortal ou não. Tratava-se de assumir ou não um estatuto ético-antropológico. No lado oposto desse debate estavam os materialistas franceses que, imbuídos na construção de uma fisiologia eletro-mecanicista e química, se lançaram livremente aos experimentos independentemente dos argumentos teológicos. O Aufklärung e ortodoxia religiosa 11 Foi o filósofo, físico e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) quem desenvolveu um trabalho mais encorpado sobre a teologia natural, entrando no mérito daqueles temas criticando René Descartes (1596-1650), Isaac Newton (1642-1727) e John Locke. Em seus primeiros escritos e, sob influencia jesuíta, Leibniz assumiu o principio da individuação dentro da demarcação escotista, na primeira obra De principio individui (1663) com o objetivo de “salvar” Aristóteles e sua enteléquia. Vale lembrar que Locke, de formação luterana, apesar de se declarar contrário à religião natural, também apresentou sua noção do principium individuationis, no Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690): para ele a individuação seria a própria existência. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 6 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT O desenvolvimento desses estudos, ensaios, pesquisas e compilações estavam articulados ao programa utilitarista do E, supervisionado pela monarquia até o final do século XVIII, abrangendo dois reinados: o de Frederico II, o Grande, de 1740 a 1786, cuja gestão no campo da cultura e da ciência estava voltada para o enciclopedismo ateísta francês (REINERS, 1960), e o de Frederico Guilherme II (1744-1797) de 1786 a 1797, com uma gestão firmada na ortodoxia luterana. Frederico Guilherme II promulgou uma lei de censura (1788) em todo o território prussiano para proteger a religião cristã das publicações dos Aufklärer (iluministas) tais como Nicolai, Biester e Kant, culminando numa espécie de ‘inquisão’ protestante em 1791 (CLARK, 2006: p. 270). Na França, o ateísmo materialista de Julien Offray de La Mettrie (1709-1751), herdeiro do mecanicismo boerhaaviano, considerou o ser humano movido pela inteligência da própria máquina corporal em O Homem Máquina (1748) e foi convidado pelo Imperador Frederico II a residir na corte prussiana. Na mesma época surgiu o evolucionismo biológico iniciado por Pierre Louis Moreau De Maupertuis (1698-1759). Nomeado em 1740 pelo monarca prussiano como presidente da Academia de Ciências de Berlim (fundada em 1700 por Frederico I sob a direção de Leibniz), Maupertuis promoveu certames filosóficos que visavam ampliar debates sobre os trabalhos de autores estrangeiros. Em 1751, Maupertuis publicou Système de La Nature, defendendo a idéia de um principio inteligente na matéria. A presença de Voltaire (1694-1778), La Mettriee e Maupertuis na mesma época em Berlim, sob os auspícios do Imperador filósofo, contribuiu para uma mudança da perspectiva filosófica e educacional da Academia. O fato é que o enciclopedismo francês se mostrava mais desenvolvido nas pesquisas da natureza porque conseguira romper totalmente com a interdição entre artes liberais e artes servis, entre teoria e prática, outorgando à técnica o seu lugar no ramo da razão. Mas, o objetivo da mudança na direção do Bildung e da Academia era fazer oposição ao predomínio da filosofia sistemática de Christian Wolff (1679-1754), divulgador ‘equivocado’ da teodicéia monádica de Leibniz nas universidades germânicas. O esforço para ‘salvar’ Leibniz da hermenêutica wolffiana surgiu do bibliotecário, dramaturgo e filósofo germânico Gottold Ephraim Lessing (1729-1781). Lessing estendeu suas ‘salvações’ de interpretações históricas equivocadas para o deísta, entomólogo e filólogo Hermann Samuel Reimarus (1694-1768) e outros autores.12 12 Ver KIERKEGAARD (2013); LESSING (1784). Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 7 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT É importante salientar o trabalho de compiladores germânicos que, inspirados num processo pedagógico transformador através da Bíblia e da nova ciência baconiana, elaboraram enciclopédias modernas que incluíam a educação e não a história natural no centro da organização do conhecimento. Segundo Constance W. T. Blackwell, Jakob Brucker (1696- 1770) em seu Historia critica philosophiae (1742; 1767) transformou Aristóteles em uma figura do passado ao outorgar à Bacon, Descartes, Hobbes, Thomasius e Leibniz o título de filósofos ecléticos porque desenvolveram seus próprios e completos sistemas filosóficos. Brucker não aceitava a tendência medieval de conciliar aristotelismo e cristianismo ainda vigente no inicio das ciências modernas: para ele a racionalidade aristotélica estava mais para a metafísica do que para a física (BLACKWELL, 1997: p. 381-407). O que estava em jogo era a continuidade, assumida por Leibniz e Wolff, ou a ruptura, assumida por Thomasius e Brucker, com a tradição aristotélica. Lessing intensificou o debate defendendo uma antropologia da verdade que convergisse a verdade historicamente revelada ou sobrenatural com a verdade da razão natural, porque ambas emanam de Deus e contribuem para a educação do gênero humano, sem abrir mão da fé. Entretanto, Immanuel Kant em sua Crítica da Razão Pura (1781) desenvolveu uma antropologia da relação sujeito-objeto do conhecimento, dividindo-a em numenologia (apriorismo) e fenomenologia (experiência), integrando o sujeito do conhecimento em tensão dialética com o ser da emoção; além disso, no seu Crítica do Juízo (1790) ele fez uma demarcação do controle racional das paixões desenvolvendo uma filosofia para a medicina que convergiu com os interesses de Hufeland.13 Enfim, a hermenêutica bíblica da reforma luterana aplicada ao desenvolvimento utilitarista das ciências determinou uma teleologia ortodoxa para as ciências. Mas, a teologia natural, na sua vertente não-ortodoxa lessinguiana, apesar de ter contribuído para a ruptura com o antigo enciclopedismo ao afirmar a educação no centro da árvore do conhecimento, não predominou como programa educacional e de pesquisa, mesmo que se considere o efeito não convencional de sua filosofia sobre a ciência contemporânea, apontado por Paul Feyrabend (FEYRABEND, 1984). Assim é que ela cedeu lugar à dicotomia entre mecanicismo e filosofia, alinhavada entre o mecanicismo boerhaaviano e o materialismo francês no interior da academia germânica, sob os auspícios da ortodoxia estatal. Dessa forma, os critérios para estabelecer os limites das fronteiras entre ortodoxia e heterodoxia não foram por antiguidade, continuidade ou ruptura do conhecimento, mas por ameaça de 13 Ver MODEL (1990: 112-6). Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 8 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT desconstrução da religião historicamente instituída – imbuída de um espírito escatológico que pretendia, através do milenarismo, determinar a salvação da humanidade. Assim sendo, a medicina germânica no final do século XVIII foi marcada pelo debate na construção de uma perspectiva que entrelaçasse história e experiência, no sentido de contrapor as “novidades” terapêuticas que destituíam a experiência de qualquer história e enfraqueciam o papel social do médico. Os médicos se articularam para construir diferentes abordagens na saúde, fundamentadas em perspectivas ortodoxas e não-ortodoxas da filosofia natural do século anterior. A integração das relações corpo-alma no interior do conhecimento médico como pertinente à dimensão da subjetividade ficou por conta das vertentes não- ortodoxas, ou, não-convencionais, que assumiram, cada qual ao seu modo, os princípios do magnetismo animal, da imaterialidade e da individualidade na sua epistemologia. Entre as novas abordagens médicas destacaram-se a Medicina Racional de Hufeland, a Medicina Científica de Johann Christian Reil (1759-1813), o Brownianismo na versão de Andreas Röschlaub (1768-1835) e a Homeopatia de Samuel Hahnemann (1755-1843). Hufeland liderou o debate sobre as quatro abordagens publicando boa parte dos discursos médicos no Jornal de Medicina Prática e Sprengel publicou uma história crítica da medicina sobre toda a década de 1790. A análise desses debates fica para estudo posterior, sendo que neste trabalho foi verificado o texto e contexto do pensamento do próprio Hufeland presente em seus dois principais manuais: o de prolongevitismo e o de terapêutica. Hufeland e a antropologia médica de Kant Em 1796 Hufeland tinha 34 anos. Através de Carl Christian Schmid Erhard (1761-1812) ele enviou para Kant (1724-1804), com 72 anos, o livro Sobre a Arte de Prolongar a Vida Humana14, pedindo a opinião do filósofo. Kant fez uma réplica favorável que foi publicada em 179815. Nesta época, Kant estava envolvido com Johann Friederich Blumembach (1752- 1840) para demarcar uma teleologia para a fisiologia. Johann Christian Reil também aderiu ao pensamento kantiano, mas, enquanto decano na Universidade de Berlim, ele competiu com 14 C. W. Hufeland, Die kunst der menschliche Leben su verlängern (Jena: in der academischen Buchhandlung, 1796). 15 Ver Immanuel Kant, El poder de las facultades afectivas para dominar os sentimentos patológicos mediante el simple proposito (Buenos Aires: Aguilar, 1968, 1980). Trad. do alemão e prólogo por Vicente Romano Garcia do Von der macht des gemüts durch den blossen vorsatz seiner Krankhaften gefühle meister zu sein (1798). Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 9 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT Hufeland na condução da educação médica germânica e, foi criticado por Sprengel quanto ao vitalismo materialista da sua obra (SPRENGEL, 1815: 300-319). Ao construir uma historiografia do prolongevitismo, Gerald Joseph Gruman afirma que Hufeland foi um expoente na sua época quanto à educação popular para a higiene da longevidade (GRUMAN, 2006: p. 122-158). Pode-se afirmar que o líder da medicina germânica buscava implantar a cultura da temperança no Bildüng ampliando a meta do estatuto baconiano para uma ampla reforma anglo-saxônica. Ao contrário dos historiadores helenistas, Gruman encontrou na filosofia chinesa taoísta nexos com o prolongevitismo iluminista europeu. Segundo ele, a historiografia desse tema passa pela conexão da alquimia árabe com a chinesa até chegar à Europa Renascentista, culminando nos Discursi della Vita Sobria do nobre veneziano Alvise Luigi Cornaro (1467- 1566), publicado em 1588 em Pádua, na Itália. Segundo Gruman, a meta de Cornaro era reformar os hábitos de vida no sentido de construir uma higiene social da longevidade. Esses Discursi foram publicados em 1613 (latim) e 1643 (inglês) tendo ampla repercussão na Europa. Hufeland seguiu a rota de Cornaro, tornando-se tão famoso quanto ele na educação popular da medicina, acrescentando no seu programa os ideais iluministas. Hufeland chegou a defender a meta da longevidade do ser humano para 200 anos, argumentando essa meta com a revisão do cálculo da idade bíblica de Matusalém, que teria atingido 969 anos, quando a duração do ano era de nove meses. No tempo de Goethe (Goetheszeist) e como membro do grupo de intelectuais de Weimar, Hufeland desejou a adesão de Kant para seu projeto. O papel de Kant no pensamento de Hufeland parece estar no modo de conhecer a experiência – a coisa/doença em si. Em Kant, a coisa em si é incognoscível, ela só existe como objeto em forma aparente no sujeito que a observa. Sua realidade somente pode ser deduzida transcendentalmente. Assim, no pensamento kantiano a experiência subjetiva é o fenômeno que transcende a priori o objeto: é o pensamento que cria o mundo e, por conseqüência, é o sujeito que cria a doença e é a sua razão que encontra a cura. Kant propõe à Hufeland uma filosofia ética, prática e estóica para a medicina. Não basta sentir-se saudável, é necessário saber-se saudável, porque a saúde é uma aparência, ela não é a coisa/doença em si. Assim, o modo de vida kantiano é determinado por princípios racionais que devem atuar sobre os sensoriais, contra a acomodação. Esse espírito estóico de conduta estava coerente com o Bildüng para uma cultura da temperança. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9 10 Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT Portanto, a idéia da coisa em si, no pensamento kantiano, implica na abordagem da dinâmica da doença em si mesma, seu determinismo e a onipresença do sujeito como doente. Não ocorreu uma teoria kantiana para a medicina, mas ele desenvolveu alguns estudos privilegiando a psicologia pragmática do comportamento. A coisa em si de Kant pode ser representada pelo reflexo imagético (Bild, imagem) entre a doença e o doente. Essa imagem aberrante, patogênica, primordial, é equivalente à concepção de Hufeland da doença como aberração originariamente constitucional do doente, ou, como causa interior. Assim, a trilogia kantiana pode ser constatada nas concepções de Hufeland como: sujeito doente  relações causa-efeito  doença em si; o modo de vida racional (qualidade de vida), ou, Bildüng, é a tomada racional de atitude para a prevenção das doenças, corrigindo os erros primordiais do comportamento humano; as relações patológicas de causa-efeito decorrem da aberração primordial, que Hufeland designou como causa interior seguida da cura interior. A arte de curar (1836, ed. póstuma) O pensamento pragmático de Hufeland busca na experiência acumulada dos antigos os meios de desenvolver sua arte de curar e justifica essa arte como radical, porque vai às raízes da patologia. No Manual de Medicina Prática, dirigido ao ensino da medicina, Hufeland expõe em trinta páginas sua teoria médica “prática”. Trata-se de uma teoria porque contém conceitos próprios de saúde, doença e terapêutica, mas, principalmente, da causalidade das doenças. Trata-se de uma teoria prática, ou, pragmática, porque é sucinta e visa explicar os caminhos da terapêutica, mais do que dos fundamentos16: Eu chamo de Fisiatria a medicina que concebe assim o organismo, que, em tudo que faz, reconhece e respeita a lei suprema da vida e da atividade espontânea da naureza; que se considera, não como agente, mas como instrumento da cura interior [...] Esta medicina é aquela verdadeira, aquela que repousa sobre as leis eternas da organização. Aquela que, depois de Hipócrates, permanece o ideal da verdadeira medicina, e que, no meio do caos dos sistemas escolásticos, está constantemente presente na alma do verdadeiro prático [...] É a natureza que opera todas as curas das doenças: a arte vem em sua ajuda e não cura no lugar dela [...] A medicina não é a mestra da natureza, mas seu ministro, seu servo, sua ajuda, seu aliado, seu amigo[...]Não basta conhecer o nome da doença e os fenômenos aparentes [...] é necessário conhecer o estado mórbido interior [...] eis a idéia que se faz do diagnostico prático, do qual tudo depende. O diagnostico prático [...] compreende o conhecimento do doente [...] da sua individualidade, daquilo que o caracteriza (HUFELAND, 1841: p. 3) 16 C. W. Hufeland, Enchiridion medicum oder Unleitung zur medicinischen Praxis, 3 ed. (Herisau, Suiça: Im Litteratur Comptoir, 1837) p. 1-10. A publicação original de Hufeland sobre o tema da Medicina Prática iniciou com o título Ideen über Pathogenie und Einflusfder Lebenskraft auf Entstehung und Form der Krankheiten als Einleitung zu pathologischen Vorlefungen (Jena: in der academischen Buchhandlung, 1795). Em 1798 ele substituiu Patogenia por Patologia, mais tarde por Sistema de Medicina Prática e, publicado post-mortem em 1836, o Enchiridion Medicum, Manual de Medicina Prática, que teve oito edições alemãs. Belo Horizonte, Campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG 08 a 11 de outubro de 2014 | ISBN: 978-85-62707-62-9

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passa pela conexão da alquimia árabe com a chinesa até chegar à Europa Renascentista, culminando nos Discursi della Vita Sobria .. Medizin der Goethezeit: Christoph Wilhelm Hufeland und die Heilkunst dês 18. Jahrhunderts.
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