SABERES ARTICULADOS: RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA COMO ESPAÇOS DE CONSTRUÇÃO DE CONHECIMMENTOS Beatriz Moura1 RESUMO Este trabalho tem por objetivo levantar questões acerca do modo como os terreiros de religiões de matriz africana se consolidam, além de espaços de desenvolvimento de práticas religiosas, também como espaços de produção e reprodução de conhecimentos e de diferentes saberes relacionados a tais matrizes. Observa-se, por exemplo, que no manuseio de plantas, no contato com a natureza, no processo de aprendizagem das danças, dos toques e das cantigas, na confecção das vestimentas, ou mesmo no modo como estabelecem redes de relações com o mercado, um conjunto de saberes é acionado, produzido, reproduzido e recriado constantemente. Tais saberes implicam uma conexão direta entre os afro-religiosos e suas divindades, entre estes primeiros e a natureza e no processo contínuo de aprendizagem que se dá nas relações estabelecidas entre os membros de uma casa de santo. Partindo de trabalho de campo realizado em contexto da Amazônia, mais especificamente na cidade de Santarém, localizada no oeste do estado do Pará, procuro apontar elementos que permitam compreender e refletir o modo como o povo de santo, nesse contexto, mantém vivas e recria suas práticas por meio também de formas de articulação de conhecimentos que não estão situados nos cânones das ciências ocidentalizadas, mas que consideram as experiências e as particularidades inerentes a essas matrizes religiosas. Quais especificidades o campo afro-religiosos apresenta na Amazônia? Quais saberes são postos em diálogo ali? São alguns dos questionamentos sobre os quais essa proposta se debruça, levando em consideração elementos trazidos pelo trabalho de campo que vem sendo realizado para a dissertação de mestrado, bem como o debate com a bibliografia acerca dos estudos sobre religiões de matriz afro-brasileira. A relação com a natureza e com a espiritualidade são chaves centrais para esta reflexão, que considera os terreiros de religiões de matriz africana como “um complexo mundo de saberes e ofícios” (CARVALHO, 2011). Palavras-chave: Afro-religiosidade na Amazônia; Epistemologias; Construção de saberes; Terreiros de religião de matriz afro-brasileira; Santarém. 1 Mestranda em Antropologia Social pelo Departamento de Antropologia PPGAS/DAN/UnB. E-mail: [email protected]. 1. APRESENTAÇÃO: O CAMPO AFRO-RELIGIOSO NA AMAZÔNIA Saliento de modo a situar o leitor, que as questões levantadas neste artigo são ainda iniciais. Trata-se das primeiras formulações propostas para a dissertação de mestrado, que tem por objetivo refletir e argumentar sobre o modo como os terreiros de religião de matriz afro-brasileira se constituem espaços de articulação de saberes e construção de conhecimentos os mais diversos. Apesar de o contato com o campo já existir desde 2012, conforme apontarei mais adiante, as reflexões voltadas para essa questão especificamente, estão sendo abordadas por mim pela primeira vez. A proposta, portanto, passa ainda por um processo de amadurecimento, relacionado ao aprofundamento das leituras bibliográficas e do trabalho de campo. Trata-se de uma pesquisa ancorada em um forte viés etnográfico, que ainda está se constituindo, tendo em vista o desenvolvimento da formação acadêmica de mestrado. Para iniciar o debate proposto por esse trabalho acredito ser importante situar o campo e o lugar da pesquisadora. Comecemos então pela pergunta: de onde partiremos nos estudos? Minha inserção em campo se deu no ano de 2012, quando, ainda no início da graduação, comecei a estudar os sentidos sociais do dinheiro no contexto afro-religioso (BAPTISTA. 2006; MOURA. 2014), observando processos de ressignificação de objetos nos terreiros e lojas de artigos afro-religiosos na cidade de Santarém/Pa, vinculada ao Núcleo de Pesquisa e Documentação das expressões Afro-religiosas do Oeste do Pará e Caribe (NPDAFRO), da Universidade Federal do Oeste do Pará- UFOPA. Naquele momento meu objetivo era compreender quais os sentidos dados ao dinheiro e os processos de ressignificação pelos quais passava de acordo com a situação em que era manuseado, estabelecendo reflexões que dialogavam tanto com as teorias da antropologia econômica, quanto com as teorias da economia política. Essa inserção no campo de pesquisa representou não apenas minha iniciação enquanto pesquisadora, como também um encontro etnográfico no sentido estrito do termo, do modo como é articulado pela antropologia. Foi a primeira vez que eu estive em contato com o universo afro-religioso, a primeira vez em que frequentei terreiros e, por meio da pesquisa pude estreitar o vínculo com as casas de santo e prosseguir meus trabalhos ali. O contexto afro-religioso se mostrou amplo e rico para a reflexão de temas diversos e senti que era hora de avançar a discussão para outros rumos, que me permitissem entender melhor os desdobramentos e as potencialidades da afro- religiosidade na Amazônia2. O contexto amazônico se apresenta então como ponto de partida e pano de fundo na construção narrativa do presente artigo. A escolha de fazer campo em Santarém relaciona-se com meu entendimento de que estudar a temática das religiões de matriz afro-brasileira na Amazônia é parte fundamental da própria compreensão do contexto social dessa região. Estou considerando aqui os diversos estudos sobre religião no norte do país, que desde seu início apontavam para a riqueza que significava tratar da religiosidade amazônica. Eduardo Galvão (1976); Maués (1987); Salles (1969), Furuya (1988); Vergolino (1987), são alguns dos nomes que abordaram a temática em seus estudos, focando principalmente questões relacionadas à ideia de sincretismo (FERRETTI. 1995). O fenômeno do sincretismo era entendido como um elemento fundamental na compreensão de desdobramentos sócio- culturais da presença negra africana no Brasil e, de maneira mais ampliada, nas Américas. Reginaldo Prandi, no prefácio ao livro de Sérgio Ferreti (1995), em que problematiza alguns pontos da discussão sobre a ideia de sincretismo religioso destaca que aquilo que vem chamar de “perdas de referências religiosas” (p. 10) pelos negros sequestrados como escravos puderam ser repostas e repensadas através de outras fontes encontradas no “novo mundo”. O sincretismo não representaria, segundo Prandi, um apagamento da identidade religiosa dos sujeitos em questão, senão um mecanismo pelo qual estes viram a possibilidade de manter vivas suas práticas e dar a elas outras significações no contexto brasileiro, ou, especificamente no caso dos estudos elencados anteriormente, no contexto amazônico. Podemos nos aproximar nesse ponto das formulações de Minty e Price (2003). Os autores trouxeram como foco central de sua obra “O nascimento da cultura afro- americana” uma proposta metodológica dos estudos sobre a presença negra nas Américas, que buscou considerar um cruzamento entre a história e a antropologia. Desse modo, o projeto analítico era de compreensão do presente e do modo como a cultura afro-americana se constrói em relação profunda com o passado. Os autores defendem a centralidade da escravidão negra e o papel dos negros escravizados na constituição de novas formas culturais, que levou em consideração um pano de fundo 2 Para fins deste trabalho tomo Amazônia enquanto categoria para tratar do que geograficamente é coincidente com o que se delimita enquanto Região Norte do Brasil. comum partilhado em África, mas de forma completamente inovadora, sobre paradigmas recriados no contexto das Américas. Minty e Price (2003) negaram a ideia de que os negros foram despojados de sua cultura ao chegar nas américas, mas igualmente se contrapuseram aos que defendiam que estes mantiveram intactas suas expressões culturais, a chamada tese da sobrevivência, cujo principal formulador foi Herskovitz. Para eles, o fluxo migratório implicou em um processo de recriação de elementos culturais por meio da agência dos escravos, mas tendo como base os “princípios gramaticais” partilhados em África. As religiões de matriz africana seriam o espelho dessa tese, na medida em que simbolizam uma nova religião, ainda que partilhando elementos transpostos do atlântico. A discussão sobre centralidade da presença negra escrava nos é cara enquanto um eixo importante para pensar os desdobramentos analíticos desse trabalho. Nesse sentido, entendo ser necessário destacar a percepção de que se reproduziu durante muito tempo na produção acadêmica uma sistemática invizilização da relevância da presença negra africana na Amazônia. Tal processo acarretou não só dificuldade em consolidar um campo de estudos sobre o negro na região, como promoveu um silenciamento sócio- cultural e político dos grupos, que recaiu inclusive sobre os estudos acerca da afro- religiosidade. E ao se tratar da negação da história africana sabe-se que esse processo de invisibilização tem uma justificativa ideológica evidente: o preconceito de cor (NOGUEIRA. 2005). Levar em consideração a discussão sobre a presença negra na Amazônia é fundamental no entendimento dos desdobramentos dessa presença, que incluem as expressões afro-religiosas e suas contribuições para o contexto sócio- político, cultural, religioso e racial da região. Para Guerreiro Ramos (1957) a negação da presença negra no norte e nordeste do país deve ser entendida a partir da construção discursiva que reafirma a excelência da brancura e a degradação estética do negro. Questionando os dados do senso em que o contingente de população preta nessas regiões era baixíssimo, o autor aponta para o que vai chamar de “patologia social do branco”. Segundo seu argumento, há entre a minoria branca do norte e do nordeste um desequilíbrio de auto estimação, que faz com que estes disfarcem sua real condição étnica- de mestiços, de acordo com Guerreiro Ramos- através de mecanismos psicológicos compensatórios, para não encarar a fragilidade dessa identificação étnica. As oscilações de autoestima explicitam, assim, polos de oposição: a superioridade desejada, porém fictícia e, por outro lado, a inferioridade sentida com intensidade. Nos desdobramentos dessa problemática para as pesquisas sobre afro- religiosidade no norte evocamos Ferretti (1995). O autor apresenta um panorama desses estudos e chama a atenção para o fato de que, na região norte, as religiões de matriz africana só ganharam sistematicidade e notoriedade enquanto questão de pesquisa a partir da década de 1960, mas ainda assim focando alguns temas e localidades específicas. Entretanto, o campo da religiosidade no norte do país é vastíssimo e requer interesse em avançar em termos geográficos, encarando o desafio de partir para as cidades interioranas da região, como é o caso de Santarém, para entender as dinâmicas e as especificidades que ali se apresentam. A compreensão dessas especificidades permite estabelecer de maneira mais rica e ampliada uma leitura do contexto afro-religioso. Nesse sentido, aponto para o fato de que as dinâmicas religiosas são parte constitutiva da vida das pessoas na região, de modo que a relação com a natureza, com os seres sagrados, as divindades e entidades tem muito dessa centralidade. É, portanto, tendo situado a Amazônia como local de onde parte essa pesquisa, elencando alguns aspectos que considero relevantes na contextualização do campo que parto para a discussão em torno da questão central para qual venho me debruçar enquanto objeto. 2. A DIMENSÃO DO SABER E A EMERGÊNCIA DE PLURI- EPISTEMOLOGIAS No dia vinte e nove de setembro de dois mil e treze, cheguei ao Ilê Asé Oto Sindoyá por volta de sete e meia da manhã. Havia pedido permissão para a Yakekerê3 da casa para acompanhar os preparativos e as compras que seriam feitas para duas grandes cerimônias públicas que deveriam acontecer naquele final de semana, a Festa para dona Mariana4 e a festa dos caboclos de nação. Eu já estivera inúmeras vezes no Ilê Asé Sindoyá, mas era a primeira vez que eu entrava na cozinha da casa da mãe de santo. 3 Yakekerê é o segundo cargo mais importante na hierarquia de uma Casa, está logo abaixo da Mãe de Santo nesta ordem hierárquica. 4 Entidade muito querida na região, a cabocla Mariana é conhecida como uma das três princesas turcas que se encantou na Amazônia, mais precisamente nos lençóis maranhenses e passou por um processo de “ajuremação”, ou seja, tornou-se índia. Entidade que tem a água como principal elemento, é também chamada aqui de Dona Mariana ou ainda, Mãe Mariana. A Yakekerê Isabel, que também é filha de sangue da mãe de santo, estava conversando com outras mulheres da casa, fazendo a lista das compras de logo mais. O Ilê Asé Oto Sindoyá existe enquanto terreiro de práticas afro-religiosas desde 1987. O terreiro é “afronizado”, como afirmam seus membros, ou seja, desde 2008 pratica o culto às divindades do panteão africano. Apesar disso, ali também acontece semanalmente toques aos caboclos, entidades indígenas, em sua maioria, que são cultuadas na Umbanda e na Mina. O terreiro tem muitos filhos de Santo e está sempre cheio, em dias de festa e cerimônia especialmente, o vai e vem e o falatório fica ainda mais intenso. Alguns filhos da casa moram na residência da Mãe de santo e, até aqueles que não o fazem, estão sempre ali, mesmo fora dos dias cerimoniais. O terreiro se localiza em uma região relativamente central de Santarém, próximo a uma instituição privada de ensino superior da cidade. A rua que leva até lá não tem asfalto e chegando à frente do templo nos deparamos com um muro onde está escrito o nome do terreiro e dois portões de entrada, um maior que dá acesso à garagem e outro por onde comumente entram as pessoas que ali frequentam. O terreno é grande e comporta tanto o espaço religioso quanto a residência da família da Mãe de Santo. Conforme já mencionei meu contato com terreiros de religião de matriz afro- brasileira se deu a partir de 2012, com minha inserção no Núcleo de Pesquisa e Documentação das Expressões Afro-religiosas do Oeste do Pará e Caribe. O Ilê Asé Oto Sindoyá foi o primeiro terreiro de religião de matriz afro-brasileira que frequentei. Minha inserção foi um lento processo de conhecimento desse universo distante até então de mim. Ali eu pude estreitar laços, estabelecer relações com as pessoas e, mesmo não tendo me iniciado na religião, pude estar presente nas cerimônias públicas, nos toques semanais, nas atividades diversas promovidas pelo próprio terreiro ou pelo NPDAFRO. Desse modo, em virtude das boas relações, do respeito e da confiança estabelecidos, optei por seguir trabalhando no Ilê Asé Sindoyá. No dia das compras, ficamos no Ilê ainda um tempo enquanto tomávamos café e a lista era finalizada, para que, em seguida, partíssemos ao mercado, Yakekerê Isabel e eu. Nosso destino foi a feira, chamada de Mercadão 2000, onde encontraríamos os artigos necessários para o buffet e as frutas que seriam “arriadas” como oferendas aos caboclos. As compras, dizia Isabel enquanto caminhávamos, era domínio das mulheres, geralmente ela mesma ia à feira, à loja ou ao supermercado quando preciso, “faz parte das funções que eu aprendo e tenho que fazer como mãe pequena, Yakekerê do terreiro”, disse. Ela transitava com familiaridade na feira, já sabia aonde ir, conhecia os vendedores, pechinchava preços e ia me falando para que serviria cada uma das coisas que estávamos comprando. O Mercadão estava cheio, muitas pessoas transitavam pelo local, conversando com os vendedores, barganhando preços, carregando suas sacolas. O cheiro do Mercadão é muito característico e agrega os odores das frutas frescas e daquelas que acabam se perdendo no caminhar das pessoas, das verduras, do tucupí, das essências vindas dos quiosques das ervas e garrafadas e dependendo do ponto do local em que se está o cheiro de carne se sobressai. O som do tecnobrega vindo de alguma caixa se mesclava com as vozes das pessoas e os barulhos de carros, ônibus e caminhões de carga que passavam por ali. Isabel, focada na tarefa que estava desempenhando e um pouco apressada, porque essa era apenas a sua primeira atividade do dia andava com certa rapidez, dividindo suas sacolas comigo. Tem que saber comprar, dizia ela, as coisas são muito caras e não dá pra levar qualquer coisa não, os santos, os caboclos cada um tem sua especificidade. Apesar de que os caboclos principalmente ganham muitas coisas, porque as pessoas tem muito carinho por eles, o que é preciso comprar tem que comprar bem e certinho. A maioria das vezes quem faz as compras sou eu mesma, só não quando eu to ocupada, que aí quem tiver livre vai, mas senão eu que me encarrego. (Fala de Isabel durante as compras no Mercadão 2000. Setembro de 2013) A Yakekerê pedia para experimentar algumas das frutas que queria levar, andava de tabuleiro em tabuleiro pra ver qual o melhor tucupí, reclamava dos preços e apelava aos vendedores mais conhecidos descontos nas suas compras e permissão para deixar sacolas mais pesadas guardadas enquanto íamos a outros tabuleiros. Passamos quase a manhã inteira no Mercadão, saímos já por volta das onze e meia da manhã, com a lista de compras finalizada, muitas sacolas nas mãos e a pressa de Isabel em deixar tudo no terreiro para seguir suas próximas tarefas. Era ainda preciso apanhar algumas folhas a serem utilizadas no final de semana. A discussão desse trabalho, retomando aqui os apontamentos já feitos no início do artigo, passa por analisar a constituição dos terreiros de religião de matriz afro- brasileira como espaços de articulação de saberes, quais os elementos compõem esse universo de conhecimentos e como se dão os processos de aprendizagem. Para melhor configurar o plano analítico aqui proposto destaco que trato a conceituação de saber a partir da formulação de Mignolo (2003), trabalhada igualmente por Bernardino-Costa (2015). Ambos os autores consideram saber como um “produto do pensamento humano”, assim, todo e qualquer grupo é passível de construir e articular saberes os mais diversos ligados a sua realidade, de modo que a circunscrição da ideia de saber apenas a grupos economicamente e socialmente privilegiados deixa de fazer sentido. A condição primeira para produzir conhecimento é justamente articular formas de ser e estar no mundo. No caso das religiões de matriz afro-brasileira, percebo que observar a produção e reprodução de saberes, requer entender o saber não apenas como produto do pensamento humano, como também da prática humana. A dimensão dos saberes é forte elemento a ser entendido no contexto afro-religioso, em virtude mesmo de que a vivência cotidiana no espaço das religiões implica um constante processo de aprendizagem. O contínuo e gradativo aprendizado é, pois, parte da condição de existência no mundo, que implica em estabelecer elo entre os indivíduos e o meio. Os conhecimentos são transmitidos fundamentalmente através da oralidade, de modo a socializar os indivíduos nesse contexto religioso. Nesse sentido, o terreiro se consolida como uma grande escola onde, a partir da vivência cotidiana, aprendem-se elementos que fazem parte dessa realidade, mas que não se encerram naquele espaço, extrapola e se insere na constituição mesma do sujeito no mundo. Durante as compras que Isabel realizou para as cerimônias do Ilê Asé Sindoyá ela ia demonstrando esse conjunto de conhecimentos, que tinham relação com sua condição de filha de santo, e, principalmente, com o cargo que ocupava no terreiro. Ela mesma havia sido socializada enquanto afro-religiosa para lidar com propriedade, entre outras coisas, sobre as compras, a aquisição das materialidades necessárias para a manutenção da vida cerimonial de uma casa de santo. Na época em que fizemos juntas aquela incursão à feira, atividade tão familiar a ela e tão nova a mim, Isabel tinha quase sete anos de iniciada. Ao longo do seu tempo de vida religiosa a yakekerê repetira diversas vezes aquela função, que lhe era própria, inicialmente acompanhada de uma pessoa mais velha do que ela na religião (com mais tempo de iniciação, com mais conhecimentos acumulados) até que pudesse desenvolver a atividade sozinha. A partir disso podemos pensar em que medida e de que maneira a dimensão do tempo, ou da temporalidade está imbricada nos processos de aprendizagem e transmissão de conhecimentos. Como podemos entender o estabelecimento de vínculos em que a capacidade de articular os saberes adquiridos envolve o elemento temporal? Mais do que isso, que tempo é esse, o que ele nos indica em relação ao contexto afro- religioso? Dominar certos conhecimentos ao que nos parece, passa, antes de tudo, pelo tempo que cada pessoa tem não apenas de iniciação, mas de convivência no terreiro e em contato com esse universo. Até que tenha autonomia, maturidade e que domine certos aparatos o filho de santo precisa do acompanhamento de alguém mais velho, que não necessariamente se relaciona com a idade, mas com essa dimensão temporal fundamental. Entretanto, o processo não se encerra, uma vez que é inerente à vivência e faz parte da construção dos sujeitos. Conhecer e não conhecer é parte de um mesmo processo que envolve relações de afetação e de transmissão e aprendizagem, que, contudo, nunca se encerram. Há sempre o que aprender e quem ensinar e alguém a quem transmitir os saberes articulados e próprios ao universo afro-religioso. Os saberes são, portanto, transmitidos, mas podemos dizer também, trocados. Assim, a chave da troca pode ser interessante caminho nesse enredo que toma como central a articulação de conhecimentos. Mobilizar o conceito de troca leva em consideração justamente o caráter contínuo e gradativo de aprendizagem e transmissão de saberes no contexto afro- religioso. Isso porque, é preciso ultrapassar o entendimento material ou físico do processo de trocas de conhecimentos, uma vez que não são apenas os afro-religiosos que estão envolvidos, mas há um compartilhamento com o plano metafísico, ou espiritual, de modo que orixás e entidades, por exemplo, também estão envolvidos. Há múltiplas realidades em jogo, diversas dimensões presentes e uma multiplicidade de seres mobilizados e que contribuem nesse processo. A relação com a divindade é parte fundamental nessa relação de transmissão ou troca de saberes. Assim, retomando a etnografia das compras com Isabel, ir ao mercado não representa apenas capacidade de conhecer as materialidades necessárias, mas junto a isso conhecer muito bem dos orixás e entidades para os quais as oferendas irão se destinar, por exemplo, uma vez que Os próprios santos se distinguem e se identificam por meio de suas preferências em matéria de consumo; pelas peculiaridades do gosto de cada um deles. Uma divindade privilegia certas cores e texturas nas suas vestimentas; certos sabores e aromas nas suas comidas; determinados paladares em suas bebidas; determinadas essências, nos seus defumadores; certos metais, nos seus adereços; certas pedrarias, nas suas joias. (BARROS, José Flávio Pessoa; MELLO, Marco Antônio da Silva; VOGEL, Arno. 2007. Galinha d’angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas.) Assim, não é qualquer pessoa que está habilitada a ir até o mercado, ela precisa deter uma gama de saberes referentes ao que é preciso ser adquirido. Na feira Isabel mobilizava uma série de conhecimentos acerca dos gostos, das preferências, do que era ou não adequado de ser comprado para cada finalidade. Podemos destacar aqui que o mercado nos parece uma dimensão interessante para pensar aprendizado. Barros, et al (2007) destacam essa questão para apontar que esse espaço, aos que são designados às compras, se constitui como importante no processo de aprendizagem e instrução que é pedagógico, que exige repetição e acompanhamento para que se possa dominar a etiqueta das compras, saber exatamente aonde ir, o que levar. Uma arte a ser dominada, segundo os autores, ou um saber a ser adquirido e mobilizado, de acordo com o que percebo e defendo aqui. Além disso, o mundo afro-religioso não se encerra no interior dos muros de um terreiro, ao contrário, abrange outras espacialidades que se somam em uma teia de
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