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O diabo na água benta ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão PDF

293 Pages·2012·118.657 MB·Portuguese
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ROBERT DARNTON O diabo na água benta Ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão Tradução Carlos Afonso Malferrari jJ, FSC wwwfsc.org MISTO A marca Fsc®é a garantia de que a madeira utilizada na fabricação do Papel produ2k10 papel deste livro provém de florestas que foram gerenciadas de maneira a partir de rontu reopon•ll.vel• ambientalmente correta, socialmente justa e economicamente viável, FS(;& C105484 além de outras fontes de origem controlada. COMPANHIA DAS LETRAS Copyright© 2010 by Robert Darnton Todos os direitos reservados, incluindo direitos de reprodução do todo ou de parte do todo, em qualquer formato Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil eni 2009. Título original The devil in the holywater or the art of slander from Louis XIV to Napoleon Capa Mariana Newlands Imagem de capa Um autor, J. Emmanuel La Coste, posto no pelourinho em 1760 por ter escrito libelos. Bibliothf'que Nationale de France. Preparação Isabel Junqueira lndice remissivo Luciano Marchiori Revisão Carmen S. da Costa Márcia Moura A memória de Lawrence Stone Dados Internacionais de Catalogação na Publicação {c!P} (Câmara Brasileira do Livro, SP,B rasil) Darnton, Robert O diabo na água benta Ou a arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão / Robert Darnton ; tradução Carlos Afonso Malferrari. - J• e<l.- São Paulo : Companhia das Letras, 2012. Título original: The devi[ in the ho!y water or the art of slan dcr from Louis XIV to Napoleon. ISBN 978-85-359-2128·1 1. Autores e editores -França -Histcíria -Século 18 2. Calúnia e difamação -França- Histôria Século 18 3. Calúnia e difrunaç.lo na literatura 4. Direito e literatura -França -História -Século 18 5. Editore,; e editoras. França • Hfatória • Século 18 6. Literatura alternativa -Editores -França -História -Século 18 7. Literatura e sociedade -França -História -Século 18 8. Literatura francesa • Século 18. História e critica!. T!tulo. u. Título; A arte da calúnia e da difamação de Luís XIV a Napoleão. 12-05634 CDD-840.9005 &idice,;p ara catálogo .>i.>temático: L Literatura francesa: Século 18: História e crítica 840.9005 2. Século 18: Literatura francesa: História e crítica 840.9005 [2012] Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ S,A, Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532-002- São Paulo -sr Telefone (11) 3707-3500 Fax(l1)3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br .._-_k z7z": ,Í,:ze~·z /".jé:aJ-i;d, Jf.(1'â'/ZI;? ;á-,;,:z// ;'<'/?t'~·V-ul· ~ 4;{z,Çff7ci'/lál'(?os C))<";,{//.z/r//'él' /z//'c-J7't'.r. Figura 1. Le gazetierc uirasséf, rontispício da edição de 1777. {Cópia particular) le rt'cí?i)Jot recoit la[«raâ'on de Ôzar/o, <:t !( .. r i1i donnC' !a croi:;:, e;{, J dndre Figura 3. La policed e Parisd évoilée,f rontispício. ( Cópia particular) Figura 2. Le diable dans un bénitier,f rontispício. (Cópia particular} Introdução Os quatro frontispícios reproduzidos nas páginas precedentes pertencem a uma curiosa vertente da literatura, das 1nais execradas nos primórdios da Europa moderna, conhecida pelo nome genérico de libelo. Os quatro frontispí cios ornam e destacam o texto de quatro libelos que, juntos, contam urna histó ria - uma narrativa tão cheia de intrigas, confusões e mixórdias que soa extra vagante demais para ser verdade, mas é confirmada em cada ponto por documentos dos arquivos da polícia francesa e do serviço diplomático. Por que tentar reconstruí-la? Afora seus atrativos de verdadeiro romance policial, ela revela muito sobre a autoria, o comércio de livros, o jornalismo, a opinião pú blica, a ideologia e a revolução na França do século XVJII. Estudando esses quatro libelos particularmente pungentes, veremos corno a arte e a política da difama ção se desenvolveram ao longo de quatro regimes - do reinado de Luís xv ao de Luís XVJ, a monarquia constitucional de 1789-92 e a república jacobina de 1792-4. E, do estudo desses casos, poderemos ampliar a investigação para a lite ratura libelista de modo geral. Para entender os libelos, é importante estudar seus autores - os libelistas - e o mundo que habitavam. Eles viviam em Grub Street,* um ambiente que Figura 4. Vie secreted e PierreM anuel, gravura usada como frontispício. (Biblioteca da Uni * Rua de Londres onde se concentravam os hack 1-vriterse:s critores pobres, biscateiros literários, versidade de Princeton) 13 foi se atulhando de gente depois de 1750 devido à explosão populacional da Re do Fort l'Evêque, ou nas galés de Marselha, depois de serem marcados a ferro e pública das Letras. Em 1789, havia na França uma enorme subcultura de autores postos no pelourinho da Place de Greve. Ao chegar em Londres, maravilhavam indigentes - só os poetas eram 672, segundo estimativa contemporânea. 1 A -se com um mundo livre e irrestrito de panfletagem e jornalismo, financiados maioria vivia nos bairros mais miseráveis de Paris, sobrevivendo como podiam em grande parte por políticos que contratavam escritores de aluguel para vilifi de trabalhos de encomenda e migalhas de patronagem. Quando levados ao de car seus rivais. Alguns desses expatriados se tornaram jornalistas, muitos deles sespero pelas dívidas ou pela ameaça da Bastilha, tentavam escapar e fugiam colaboradores do Courrier de l'Europe, um jornal quinzenal publicado em para Bruxelas, Amsterdã, Berlim, Estocolmo, São Petersburgo e outros centros Londres e impresso também em Boulogne-sur-Mer, que trazia as reportagens urbanos que tinham sua própria Grub Street. Uma diáspora inteira de escritores mais completas sobre a Revolução Americana e a política britânica disponíveis maltrapilhos buscou fortuna onde quer que pudesse explorar o fascínio pelas aos leitores franceses nas décadas de 1770 e 1780. Outros viviam de escrever li coisas francesas. Davam aulas particulares, traduziam, vendiam panfletos nas belos e pasquins. Valendo-se de relatos fornecidos por informantes secretos em ruas, dirigiam peças, praticavam um pouco de jornalismo, especulavam no Paris e Versalhes, produziam um sem-número de livros e panfletos que difama· mundo editorial e disseminavam modas parisienses em tudo, de boinas a livros. 2 vam todos, desde o rei e seus ministros até dançarinas de cabarés e homens do A maior colônia era a de Londres, que recebera émigrés franceses desde o mundo. Suas obras eram vendidas abertamente na Inglaterra, sobretudo numa século XVI, quando os primeiros huguenotes lá buscaram refúgio. A cultura da livraria na St. James Street, em Londres, dirigida por um expatriado genebrês Grub Street londrina era a mais vivaz da Europa. Ali ficava o pasquim Grub chamado Boissiere. Mas o mercado principal era a França, onde os libelos se StreetJournal (1730-7), e a rua em si, que percorria todo o West End, começara tornaram artigo trivial do comércio livresco clandestino. 5 a agregar uma população de mascates literários no início do século xvn. Em É impossível dizer até onde ia e quais eram as ramificações desse mercado subterrâneo. Con1 certeza, penetrava cada canto do reino e tornou-se um dos 1726, quando Voltaire lá chegou refugiado da Bastilha, os hack writers já tinham setores mais vitais da indústria editorial na segunda metade do século. Na épo· se mudado para outros endereços e se mantinham em grande parte graças aos ca, para ser publicado legalmente, um livro tinha de atravessar um verdadeiro constantes pega-pegas e trocas de acusações típicas da política hanoveriana. 3 corredor polonês de censores e burocratas ligados ao órgão do governo respon · Seus colegas parisienses viviam em estilo semelhante, ocupando sótãos e porões sável pelo comércio livresco, a Direction de la Librairie. Em 1789, o governo por toda a cidade, e desenvolveram um modo próprio de jogar lama: os libelles, empregava quase duzentos censores, que avaliavam manuscritos e frequente relatos escandalosos das questões públicas e da vida privada das grandes figuras mente condenavam tanto as falhas de estilo e conteúdo como qualquer coisa da corte e da capital. O termo não é muito usado em francês moderno, mas fa. que ofendesse a Igreja, o Estado, a moral convencional e a reputação de indiví zia parte da linguagem cotidiana do mundo editorial do Ancien Régime e os duos. Sem sua aprovação por escrito, nenhum livro podia receber privilégio autores de tais obras eram fichados nos arquivos da polícia como libellistes.4 real, concedido pelo Tribunal Superior, que conferia legalidade e algo seme A colônia de libelistas franceses em Londres aprendera a viver nas Grub lhante a direitos autorais. Fiscais de livros policiavam o comércio nas principais Streets de ambas as capitais. A maioria obteve o treinamento básico em calúnia cidades, confiscando obras ilegais em depósitos alfandegários e fazendo batidas e difamação nos subterrâneos literários de Paris e havia emigrado para evitar a em livrarias. A guilda de livreiros de Paris, Communauté des Libraires et des prisão, não apenas na Bastilha, mas nas celas ainda mais sórdidas do Bicêtre ou Imprimeurs de Paris, também exercia poderes de polícia, os quais usava para reforçar seu monopólio privilegiado da literatura. 6 escribas de aluguel, nefelibatas, subliteratos, picaretas letrados e toda sorte de autores que eram O sistema era menos rígido na prática do que no papel-inevitavelmente, forçados pelos mais variados motivos a produzir literatura.N este livro, o termo refere-se tanto à rua especificamente (atual Milton Street) como aos subterrâneos literários europeus de modo pois as regulamentações impressas ( cerca de 3 mil éditos só para o comércio li geral. (N. T.) vresco entre 1715 e 1789) eram tantas e tão frequentes que nenhum livreiro ti- 14 15 nha como manter-se a par das regras do jogo, mesmo que tivesse a intenção de Correspondance secrete et familiere de monsieur de Maupeou avec monsieur de respeitá-las. 7 Os fiscais costumavam fazer vista grossa quando remessas ilegais Sor***, conseiller du nouveau parlement (1771), três volumes; Les fastes de Louis entravam em seu território e o uso de medidas sernioficiais, corno permissions XV, de ses ministres, maltresses, généraux e autres notables personnages de son tacites (acordos para tolerar livros que não poderiam receber privilégio), regne ( 1782), dois volumes; Mémoires secretsp our servir à l'histoire de la républi abriam enormes brechas na legislação repressiva. Mesmo assim, obras contrá que des lettres en France (1777-89), 36 volumes; e Le gazetier cuirassé, ou anecdo rias à perspectiva ortodoxa - inclusive praticamente toda a literatura do Ilu tes scandaleuses de la cour de France (1771 ). minismo -tendiam a ser impressas em gráficas que proliferavam fora do ter Todos esses livros eram anónimos. Todos foram escritos por autores obs ritório francês, de Amsterdã a Haia, Bruxelas, Liege, Renânia, Suíça e Avignon, curos. M.uitos eram obras de fôlego, em vários volumes, que ofereciam uma que na época era território papal. Essas editoras também pirateavam tudo o que perspectiva desencantada dos eventos atuais e da vida privada dos les grands. tivesse venda garantida no comércio legal. Montaram redes requintadas de Quando mergulhei nos textos, constatei que eram difamatórios, tendenciosos, contrabandistas, que levavam livros através das fronteiras porosas da França mal-intencionados, indecentes e de excelente leitura: por isso vendiam tanto. para distribuidores, que por sua vez os enviavam para livrarias e mascates em Mas nunca foram incluídos na história da literatura e raramente são citados em todas as partes do reino. Oferecendo a leitores sequiosos uma dieta apimentada estudos eruditos de política e ideologia. Um mundo inteiro perdido aguarda ser de literatura proibida e obras pirateadas, os negociantes informais montaram explorado. um negócio gigantesco. É provável que tenham sido responsáveis por transmi Esse mundo pareceu-me vasto demais para circum-navegá-lo em apenas tir mais da metade de toda a literatura corrente produzida no século xvm - isto um livro. Depois de publicar alguns estudos sobre a clandestinidade em si - o é, livros em todas as áreas de ficção e não ficção, além de obras de referência, modo como funcionava e o caráter geral da literatura que oferecia -, decidi publicações religiosas, almanaques e folhas avulsas, ao estilo de cordel. 8 investigar os gêneros que os franceses agrupavam sob a denominação libelles. Em outro estudo, compilei as encomendas de obras literárias proibidas Porém, em vez de exarniI1arc entenas de obras caluniosas e montar uma exposi feitas por livreiros espalhados por toda a França e criei uma lista retrospectiva ção livro a livro para chegar a conclusões gerais, preferi examinar a fundo al de best-sellers, que incluía livros de Voltaire, Rousseau e outros filósofos famo guns textos representativos e, a partir deles, buscar uma interpretação geral da sos, bem corno muitas obras pornográficas e antirreligiosas. Mas uma porcen arte e política da calúnia. Os libelos tinham alvos óbvios, mas brincavam com a tagem surpreendente desses best-sellers eram libelos - biografias caluniosas sensibilidade dos primeiros leitores modernos de uma maneira que hoje seria de figuras públicas, relatos inflamatórios de história contemporânea e uma va vista como desnorteante. Alguns textos funcionam como quebra-cabeças. Para riedade provocativa de jornalismo conhecida como chroniques scandaleuses. chegar à sua mensagem, o leitor tem de decifrar um código e, após decifrá-lo, Cinco dos doze livros mais requisitados, de uma amostra de 720 títulos, perten surge toda sorte de perguntas sobre o ambiente dos autores e o esforço das au ciam a essa categoria. Eram eles: Anecdotes sur madame la comtesse du Barry toridades francesas para reprimi-los. (1775); Journal historique de la révolution opérée dans la constitution de la mo Muitos dos libelos mais inflamatórios das décadas de 1770 e 1780 foram narchie française par monsieur de Maupeou (1774-6), sete volumes; L'Arrétin produzidos por expatriados franceses em Londres- "a cem léguas da Bastilha", ( 1763) , intitulado L'Arrétin moderne em algumas edições posteriores; Mémoires como dizia a página de rosto de seus tratados. Eles não só difamavam qualquer de l'abbé Terray, contrôleur-général (1776), dois volumes; e Mémoires de Louis um que tivesse alguma importância em Versalhes, como também incorpora XV, roi de France et de Navarre (1775).9 Outros libelos no alto da lista de best vam chantagens a seus empreendimentos literários. O governo francês retrucou -sellers eram L'o bservateur anglais, ou correspondance secrete entre milordAll'Eye enviando uma série de agentes secretos para assassinar, sequestrar ou subornar et milord All'Ear ( 1777-8), dez volumes; Vie privée de Louis XV, ou principaux os libelistas em Londres. Suas aventuras e desventuras constituem uma narrati événements, particularités et anecdotes de son regne (1781 ), quatro volumes; va rocambolesca que culmina diretamente na Revolução Francesa. O mesmo 16 17 tipo de literatura, produzida por muitos dos mesmos autores, insuflou polêmi cos depois. Indicarei sua relevância para a história política no momento opor cas até mesmo durante o Terror. Sua substância mudara, mas sua forma perma tuno, mas não estou tentando reescrever essa história e não pretendo retomar necera a mesma. assuntos familiares como o jansenismo, a oposição parlamentar à Coroa, a Para compreender o jogo de continuidade e mudança, é necessário ver as ideologia do absolutismo, o movimento de reformas patrocinadas pelo Estado polêmicas do final do século xvm de uma perspectiva mais ampla. A longa his e a aplicação de ideias iluministas a questões políticas. Quero, ao contrário, tória da literatura satírica ou injuriosa nos leva às intrigas de corte do século partir em uma direção diferente, que leva a uma região problemática em que xvn, às guerras religiosas do século XVI, às lutas pelo poder na Itália renascentis história e literatura se mesclam em antropologia. 10 ta e à literatura grega e romana da Antiguidade. Sem tentar recontá-la em deta Examinados em conjunto, os libelos transmitem uma visão da autoridade lhes, procurei mostrar como os libelistas mais recentes recorreram a técnicas política que pode ser caracterizada como folclórica ou mitológica.11 Embora desenvolvidas pelos primeiros mestres, como Aretino e Procópio. Destruir a tendenciosos e inexatos, foram um meio através do qual os franceses interpre reputação de alguém pode parecer fácil: basta desencavar alguma sujeira e lan taram e deram sentido ao mundo à sua volta - não o mundo imediato da vida çá-la aos quatro ventos. Os libelos, porém, se os estudarmos de perto e os exami familiar e do trabalho, mas a esfera maior das pessoas famosas e dos grandes narmos ao longo dos séculos, têm algumas características peculiares. Incorpora acontecimentos. A constituição de significado, tal como entendida pelos antro vam certos ingredientes básicos cujos no1nes nos soam familiares- "anedotas)), pólogos, é um aspecto fundamental da condição humana e se dá primordial "retratos","n ouvelles"[ n otícias anedóticas ou anedotas noticiosas] - mas, na mente por meio de mitos e símbolos. Foi o que aconteceu de diversas maneiras verdade, eran1 técnicas retóricas consagradas para agradar os primeiros leitores na França do século xvm, por meio de histórias que eram contadas, ouvidas, modernos. Seja como for, todos os libelos tinham uma coisa em comum: redu escritas e lidas. Narrativas sobre o rei, suas amantes, seus ministros e outras ziam as lutas de poder a um jogo ou choque de personalidades. Não importa se personagens públicas prestavam-se a uma visão mítica das grandes figuras (les infamassem as amantes reais ou os agitadores sans-cttlotte, eles sempre evita grands). Conforme retratados pela literatura libelista, todos les grands habita vam questões complexas de política e princípios, concentrando todo o seu po vam uma espécie de reino encantado e satânico onde podiam dar rédeas livres der de fogo no caráter de suas vítimas. Desse modo, as questões públicas apare à concupiscência e à luxúria pelo poder. Em ambientes afastados, como os cem na literatura libelista como um subproduto de vidas privadas - às vezes apartamentos do rei em Versalhes, os boudoirs das mansões parisienses e os literalmente, como na série de "vidas privadas" que se estende da Vie privée de camarotes da Ópera, eles se comportavam como deuses, como as deidades ca Louis XV à Vie privée du général Buonaparte. prichosas e malévolas que haviam presidido sobre o destino da Grécia e de Por que dedicar tanto esforço e tantas páginas a um assunto tão dissoluto? Roma. O destino da França, porém, estava ligado aos eventos atuais. Os ricos, os É quase inevitável que todo livro sobre a França do século XVJII discorra sobre bem-nascidos e os poderosos determinavam o curso das coisas que afetavam a questões clássicas de ideologia, política e da primeira grande revolução da mo vida das pessoas comuns - ou, pelo menos, despertavam seu interesse. À me dernidade. Este livro tem implicações para todas essas questões, por certo, mas dida que o século avançava e as calamidades se acumulavam - na guerra, na seu propósito é outro. Sua intenção é explorar certo repertório literário e a paz, no mercado -, a intensa demanda por informações sobre o comporta subcultura que o gerou. Quero entender a vida dos libelistas, a relação de suas mento no topo da sociedade aumentava entre aqueles próximos da base, que obras com o ambiente em que viviam, o modo como compunham seus textos constituíam uma população alfabetizada e semialfabetizada concentrada nas (as imagens e os recursos tipográficos que usavam tanto quanto a sua retórica), vilas e cidades. Essa demanda não podia ser satisfeita pela literatura oficial, pois as interconexões entre os libelos como um corpus de literatura e, na medida do biografias de personalidades públicas, relatos de eventos correntes e a maioria possível, a reação dos leitores. Os libelos também fizeram parte das lutas políti das formas de história contemporânea eram proibidos. Para obter informações cas e das rivalidades entre facções cortesãs antes de 1789 e entre partidos políti- sobre esses assuntos, os franceses tinham de recorrer ao que havia disponível na 18 19 literatura subterrânea - ou seja, em grande parte, aos libelos. Os libelos transportavam-nos a um imaginário povoado de personagens que Corporifica vam a vida entre lesg rands- o abbé Dubois, o marechal de Richelieu, madame de Pompadour, madame du Barry e todos os membros da família real. Os fran ceses aprenderam a enxergar o destino da França nas histórias narradas em Vie privée de Louis XV e em dezenas de obras similares. Reduzir contingências complexas a narrativas sobre figuras públicas é um fenômeno visto em muitas épocas e lugares. Ocorre ainda hoje, e a personaliza ção da política tornou-se mais insidiosa que nunca, pois a tecnologia moderna tornou possível disseminar escândalos numa escala inconcebível no passado. Na verdade, a mídia de massa de hoje segue um princípio que foi formulado nas tipografias manuais de séculos atrás, a saber, nomes são notícia. Calúnia e difamação sempre foram um negócio sórdido, mas seu caráter odioso não é motivo para considerá-las não merecedoras de estudo sério. Ao destruírem reputações, ajudaram a deslegitimar regimes e derrubar governos PARTE I em diversas épocas e lugares. O estudo da calúnia e da difamação na França do século XVIII é particularmente revelador, pois mostra como uma corrente literá LIBELOS ENTRELAÇADOS ria foi corroendo a autoridade de uma monarquia absoluta e acabou absorvida por uma cultura política republicana, que atingiu seu ápice sob Robespierre mas que incorporava variedades de detração desenvolvidas nos tempos de Luís xv. Nossa história começa, portanto, com um dos ataques mais pérfidos a Luís xv, Le gazetier cuirassé( 1771). 20 O gazeteiro encouraçado 1. Diante da primeira das quatro ilustrações apresentadas no início deste li vro, somos quase compelidos a uma pergunta que deve fazer parte do começo de qualquer investigação, segundo fórmula atribuída a Erving Goffman: O que está acontecendo aqui? O frontispício aparece defronte à página de rosto de Le gazetier cuirasséo u anecdotes scandaleuses de la cour de France, um dos libelos mais chocantes e mais vendidos do Ancien Régime, e mostra como um libelista quis representar a si mesmo. Ele é um gazeteiro ou jornalista encouraçado que lança petardos em todas as direções, especialmente contra as figuras ameaçadoras que habitam os céus. Embora se destaque como uma imagem particularmente drástica de um escritor do século xvm, é difícil decifrá-la (talvez propositalmente), pois o livro foi concebido para provocar. Utiliza dois recursos básicos para atrair e manter a atenção dos leitores: chocá-los com calúnias sobre os poderosos e di verti-los ocultando essas calúnias em alusões que têm de ser decifradas. A primeira edição do Le gazetier cuirassés urgiu em 1771, no auge da maior crise política do reinado de Luís xv.1 O chancelier [ministro da Justiça], René Nicolas de Maupeou, reorganizara o sistema jurídico do país por meio de um golpe, suficientemente espetacular para ser chamado de "revolução" pelos con temporâneos, que destruiu o poder político dos parlements ( altos tribunais, que 23

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