THINK OLGA (thinkolga.com) foi criado em 2013 pela jornalista Juliana de Faria, e conta com a socióloga Bárbara Castro como conselheira, que foram as autoras do texto deste livro. É um projeto que, por meio de conteúdo, ações, eventos e pesquisas, se dispõe a abordar o universo feminino com um olhar investigativo sobre quem é a mulher contemporânea e quais são as suas aspirações. Entre os temas, estão carreira, padrões de beleza, saúde, arte e maternidade. Uma de suas principais bandeiras é a campanha Chega de Fiu Fiu, que combate o assédio sexual em locais públicos. Introdução Eu tinha mais ou menos dezesseis anos e estava passando sozinha por uma rua perto de um estádio em Belo Horizonte, em dia de jogo. Um grupo de torcedores de algum time que não lembro começou a me “cantar”. De repente, eles estavam passando a mão em mim. Havia pelo menos uns quatro homens, todos me empurrando. Desesperada, saí andando rápido, tentando me soltar. Senti um medo real de sofrer um estupro coletivo.1 Gostamos de pensar que vivemos em um mundo igualitário. É confortável imaginar que, no fundo, todas as pessoas são tratadas de maneira parecida e desfrutam de privilégios semelhantes. E, se o mundo é perigoso, então o perigo assombra a todos de forma equivalente. Mas isto é uma inverdade. Para uma mulher, o mundo é mais perigoso. Existe uma categoria inteira de crimes, de diversos tipos ― psicológicos, sociais, simbólicos, físicos — que são praticados especificamente contra elas. Ou seja, homens e mulheres são vítimas de violência de maneiras diferentes: enquanto eles são as maiores vítimas letais da violência no espaço público,2 elas são as maiores vítimas da violência doméstica e sexual.3 E não são raros os casos: cerca de 70% das mulheres sofrem algum tipo de violência no decorrer de sua vida4 apenas por pertencer ao sexo feminino.5 O número de ocorrências desses crimes é tão alto que fazem desse tipo de violência uma das mais frequentes não só no Brasil, mas no mundo todo. Segundo o Banco Mundial, é mais provável que uma mulher entre quinze e 44 anos seja abusada sexualmente e sofra violência doméstica do que desenvolva um câncer, contraia malária ou sofra um acidente de carro.6 Um dos casos mais extremos da violência de gênero é o estupro, um crime que acontece com frequência mais regular do que podemos imaginar: uma em cada cinco mulheres, em todo o mundo, sofreu uma tentativa de estupro ou foi de fato estuprada ao longo da vida.7 Em alguns países, a proporção é de uma entre três. Esse dado alarmante foi levantado pela ONU para construir a campanha UNiTE to End Violence Against Women. No Brasil, não vemos tantas matérias sobre violência sexual tomarem o noticiário quanto outros crimes. No entanto, os assassinatos já perdem, em número, para os casos de estupro. Em 2013, a Secretaria Nacional de Segurança Pública e o Ministério da Justiça divulgaram estatísticas criminais de todo o território nacional. Nelas, os registros de estupro do ano anterior ultrapassaram o de outros crimes violentos como homicídio doloso, homicídio culposo e latrocínio. No estado de São Paulo, a violência sexual foi mais recorrente do que delitos de extorsão mediante sequestro. O estupro é apenas um dos pontos extremos de uma longa escala em que aparecem violência doméstica, femicídio (assassinato motivado pelo fato de a vítima ser mulher), agressões físicas e ameaças psicológicas. E há ainda um crime que até recentemente nem era reconhecido como tal: o assédio sexual. Trata-se de abordagens grosseiras, ofensas e propostas inadequadas que constrangem, humilham, amedrontam e tentam reduzir as mulheres a um objeto passivo que não reage sob tal forma de opressão. Grande parte desse assédio sequer envolve contato físico, mas isso não significa que não afetem as mulheres. Muitas delas podam sua própria liberdade e seu direito de escolha — deixando de usar certa roupa ou de cruzar uma praça, por exemplo — por medo de sofrer assédio. Em julho de 2013, o Think Olga lançou a Chega de Fiu Fiu,8 campanha que luta contra esse tratamento desrespeitoso. Foi a partir dessa ação que conseguimos os depoimentos listados neste livro. E foi ali também que entendemos por que o assédio causa tanto medo: é um comportamento violento, sim, porque parte de pessoas que acreditam ter o privilégio de explorar e alienar a existência feminina sem nenhuma dor na consciência. Na comparação com outros delitos, a atenção em termos de saúde pública, prevenção e punição para a violência contra a mulher é menor e menos eficaz. E, apesar do sofrimento da vítima, delegados, políticos, jornalistas, colunistas e outros formadores de opinião com frequência vão a público dizer que o que se passou não tem a gravidade de um crime, que a vítima deve assumir a desgraça como “uma coisa da vida” ou até como algo positivo. Um exemplo é o caso do juiz israelense Nissim Yeshaya que, ao saber da criação de um abaixo-assinado para transformar o abuso sexual em ato de terrorismo, declarou: “algumas mulheres gostam de ser estupradas”.9 Isso quando, partindo de um raciocínio retrógrado, não transformam a vítima em culpada de seu próprio sofrimento — o famoso “alguma coisa ela deve ter feito para provocar”. Em 2013, uma menina de catorze anos que estava na rua às 23 horas, foi forçada a entrar num carro, levada a uma casa abandonada e estuprada. Quando a notícia saiu no site de um jornal local, os comentários que se seguiam incluíam frases como: “o que uma menina dessas faz nas ruas a essa hora?”, “estava procurando, encontrou” e “as meninas de hoje procuram por isso, andam quase nuas”.10 Este livro pretende mostrar como a violência contra a mulher se mantém como um dos tipos de crime mais prevalentes da nossa sociedade e explicar por que, ao contrário de outras atrocidades que vemos no dia a dia, tão pouco é feito para denunciá-la ou preveni-la. Mas queremos que esta seja uma publicação otimista. Ficamos alarmados com todas as informações e dados que estão surgindo. Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),11 em abril de 2014, trouxe dados chocantes sobre a percepção da população do país diante da violência sexual. O dado que mais chamou a atenção foi o de que 65% dos brasileiros acreditavam que mulheres que usam roupas reveladoras mereciam ser atacadas. Por dias, o assunto gerou um intenso debate e algumas campanhas que mobilizaram milhares de pessoas. Uma delas foi a “Não Mereço Ser Estuprada”, encabeçada pela jornalista Nana Queiroz, que reunia fotos de internautas seminuas com os dizeres da ação desenhados no corpo ou em um cartaz. A ação foi defendida até pela presidenta Dilma Rouseff, que, via Twitter, pediu respeito às mulheres. Pouco depois, o instituto percebeu um erro na pesquisa e corrigiu o número para 26%.12 Mas o número não deixa de ser chocante. Antes, todas essas atrocidades estavam simplesmente escondidas — enterradas pelos algozes, ignoradas pelos cúmplices. E o mero fato de conseguirmos enxergá-las agora é resultado de uma mudança. Movimentos de resistência e meios de transformação — sempre nascidos da informação — estão surgindo. Como Gloria Steinem, jornalista e célebre ativista do feminismo, disse: “A verdade vai te libertar. Mas antes vai te irritar”. 1. Os depoimentos citados neste livro foram enviados anonimamente para o site do projeto Think Olga. 2. Segundo J. J. Waiselfisz, em Mapa da Violência 2010: Anatomia dos Homicídios no Brasil (São Paulo: Instituto Sangari, 2010, disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2010/MapaViolencia2010.pdf), 92,1% das vítimas de homicídio no Brasil em 2007 eram homens. Nesse mesmo ano, a taxa de homicídios entre os homens era de 47,2 em 100 mil homens e entre as mulheres, 3,9 em 100 mil mulheres. 3. Os dados do Ministério da Saúde publicados no relatório Viva (Brasília: Ministério da Saúde, 2013, disponível em: bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/sistema_vigilancia_violencia_acidentes.pdf) mostram que as mulheres são as maiores vítimas da violência doméstica e sexual. Elas somam 72% dos registros de violência desse tipo na rede de saúde, sendo que correspondem a 86% das vítimas de violência sexual, a 83% das vítimas de violência psicológica/ moral e a 64% das vítimas de violência física. 4. ONU, “Violencia contra las mujeres”. [S.l.]: Departamento de Informações Públicas da ONU, DPI/2546C, 2009. Disponível em: www.un.org/es/women/endviolence/pdf/factsheets/unite_the_situation_sp.pdf 5. De acordo com a definição do próprio Banco Mundial, a violência de gênero ocorre como “causa e consequência das desigualdades de gênero”. A instituição a classifica em quatro grandes tipos: violência doméstica, violência sexual, práticas tradicionais (como a mutilação genital ou a morte por honra) e tráfico humano (Banco Mundial, “Gender-Based Violence, Health and the role of the Health Sector: At a Glance”, jun. 2009. Disponível em: siteresources.worldbank.org/INTPHAAG/Resources/AAGGBVHealth.pdf) 6. ONU, op. cit. 7. Ibid. 8. Disponível em: thinkolga.com/chega-de-fiu-fiu/ 9. Linda Gradstein, “Nissim Yeshaya, Israeli Judge, Says ‘Some Girls Enjoy Being Raped’, Resigns Amid Outcry”. Huffington Post, 6 jun. 2013. Disponível em: http://www.huffingtonpost.com/2013/06/06/nissim- yeshaya-israeli-judge-some-girls-enjoy-being-raped_n_3391281.html 10. Nádia Lapa, “Em caso de estupro, a vítima será a culpada. Sempre”. Carta Capital, 13 dez. 2013. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/feminismo-pra-que/em-caso-de-estupro-a-vitima-sera- a-culpada-sempre-4219.html 11. Ipea e Sips, “Tolerância social à violência contra as mulheres”, 27 mar. 2014. Disponível em: http://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres_antigo.pdf 12. Ipea e Sips, “Errata da pesquisa ‘Tolerância social à violência contra as mulheres’”, 4 abr. 2014. Disponível em: http://ipea.gov.br/portal/index.php? option=com_contenteview=articleeid=21971ecatid=10eItemid=9. 1. Como é a violência contra a mulher Era um domingo normal. Saí com meu namorado, um ministro da Eucaristia, devoto de Maria e fiel às restrições da Igreja católica. O sexo antes do casamento, por exemplo, era um tabu que na minha cabeça nunca seria de todo quebrado naquele relacionamento. Transamos apenas duas vezes durante todo o namoro e, nessas vezes, ele se contradizia e sentia-se extremamente culpado, já que “sexo é coisa de marido e mulher”. Enfim, foi em um domingo normal que decidi que não queria mais aquilo. Parecia que tinha acordado de um encanto. Levantei da mesa, deixando de lado toda a comida e o suco, porque não queria mais. Simples assim. Ele, sempre cavalheiro, insistiu em me levar em casa, para conversarmos melhor. Aceitei, pois era um pouco tarde e algo de ruim poderia acontecer com uma mulher andando sozinha pela rua. Durante o percurso, ele riu muito, enquanto dizia que eu não queria terminar e que, de fato, eu não ia terminar, já que era ele que fazia isso sempre. Era ele que decidia isso. Eu, firme na decisão, disse que já era caso encerrado, mas “obrigada por tudo”. Ao chegar à porta da minha casa, fui descer do carro, mas me lembrei que tinha deixado a bolsa no banco de trás e, ao virar para pegá-la, senti o banco escorregar e, até assimilar o que estava acontecendo, eu já estava de bruços, com ele ajoelhado sobre minhas costas, imobilizando o meu pescoço. Comecei a gritar, fazer movimentos bruscos com o corpo, mas de nada adiantou. Em pouco tempo, ele já havia levantado meu vestido, empurrado minha calcinha e acabado. Acabado com todas as coisas que eu acreditava saber sobre a vida. Meu namorado me estuprou, me jogou pra fora do carro, junto com a camisinha que havia colocado às pressas, e cuspiu em mim a seguinte frase: “Deu sorte de eu ter encapado. Vadia a gente trata assim”. Ele fez isso e é tudo muito difícil de entender. Meu namorado me violentou, mas a culpa é minha, pois deixei que ele entrasse na minha vida. Meu namorado é uma pessoa da Igreja, então ninguém vai acreditar que tenha feito isso. Uma fração de segundos depois, com o carro dele virando a esquina em direção a uma ficha limpa para o resto da vida, eu e todas as armadilhas criadas por mim entramos em casa e fomos diretamente para o chuveiro, onde decidi que o que tinha acontecido não seria dito a ninguém, pois só assim eu conseguiria esquecer. Estimulados por filmes, livros e programas de TV, fantasiamos que a violência contra a mulher aconteça quase como um assalto: cometida num beco suspeito por um monstro desconhecido e encapuzado que some na noite escura. Casos com tais características acontecem, é claro. Mas esse cenário é apenas um recorte de uma realidade. O risco que corremos ao nos ater a ele é reproduzir um imaginário de que a violência só pode ser praticada por alguma espécie de pessoa sem humanidade, sem habilidades sociais, distante, portanto, do nosso círculo de convivência. Mas a verdade é que essa pessoa, na maioria das vezes, está mais perto do que imaginamos. Pode ser o chefe que todos admiram, o namorado devoto e até aquele “paizão” afetuoso. O Ministério da Saúde1 apontou que, entre 2009 e 2010, houve 75633 notificações de violência doméstica e sexual contra mulheres. A maioria das agressões aconteceu dentro de casa, 57%, contra apenas 13% na via pública. Do total, 48% das agressões foram resultado do uso da força e de espancamento. O que chama a atenção para refletirmos sobre a dinâmica desse tipo de violência é que, em 34% dos casos atendidos, o comportamento se repetia. Ou seja, as mulheres já tinham sofrido agressão anteriormente. Entendemos, a partir daí, que a violência é muito mais complexa do que o ataque de um desconhecido e acontece em vários níveis — psicológico, físico, social e simbólico. Mas, apesar de as queixas de violência sexual serem dirigidas, quase sempre, contra companheiros ou ex-companheiros das vítimas, a maioria dos presos por estupro cometeu o crime contra uma mulher desconhecida, com a qual não possuía relação de afeto ou parentesco. Foi o que mostrou uma pesquisa com a população carcerária realizada pela antropóloga Lia Zanotta Machado, da Universidade de Brasília, em 1998, com 82 detentos na Prisão da Papuda do Distrito Federal. Sua conclusão foi de que a dificuldade de levar até as últimas consequências denúncias de violência sexual no âmbito doméstico deriva justamente da desumanidade e da monstruosidade que é atribuída ao estuprador, uma imagem bem diferente da que temos de um pai de família ou de uma pessoa com a qual a vítima possui relação de afeto. Essa proximidade entre agressor e vítima torna mais difícil e demorado investigar o que de fato aconteceu, e se traduz em menos punições, apesar do maior número de denúncias, iniciando um processo perigoso no qual a ameaça e a opressão podem se repetir. Quando tinha oito anos, fui assediada sexualmente pelo pai da minha melhor amiga. Estávamos em um rio brincando quando minha amiga correu para buscar um brinquedo. O pai dela aproveitou pra tirar meu biquíni e me tocar. Até hoje tenho medo de imaginar o que teria acontecido se a filha dele não tivesse aparecido logo em seguida. Aliás, medo é o que mais senti na infância. Medo de conversar com as pessoas, medo de que meus pais descobrissem, e muito, mas muito medo de que isso acontecesse de novo. Depois do ocorrido, passei a ser uma criança quieta, tímida, medrosa e introspectiva. Acho que um dos momentos em que mais tive conflitos internos foi quando sai de casa para estudar, aos treze anos, e precisei aprender a falar por mim mesma, perder o medo e a timidez. É difícil aprender a lidar com o mundo lá fora quando você cresce cheia de medos dentro de você. Foram várias tentativas de suicídio, a primeira aos nove anos de idade. Fiquei muito assustada quando descobri, anos depois, que uma grande amiga que cresceu comigo foi abusada pelo mesmo homem que me assediou. As pessoas sentem muita dificuldade em falar sobre isso e nem sempre procuram tratamento. Como é o meu caso. Mesmo sendo filha de psicóloga e a vida toda recebendo orientação profissional, nunca consegui me abrir para falar sobre isso. Uma demonstração de como o problema está mais próximo do que imaginamos é o grande número de crianças vítimas dessa violência. Ainda de acordo com o Ministério da Saúde, entre 2009 e 2010, houve 12054 notificações de violência contra meninas de zero a nove anos. Quase metade desses casos era de cunho sexual (46%). Entre as adolescentes, meninas de dez a dezenove anos, foram registrados 19452 casos de violência doméstica e sexual: 53% de agressão física e 42% de sexual. A violência era de repetição em 31% dos casos. E metade desses casos ocorria na própria residência da vítima, sendo a parte do corpo mais atingida os órgãos genitais e o ânus. Vemos uma sexualização muito precoce das mulheres. Está na mídia e na cultura. Como uma letra de funk que canta “Vem novinha delícia do papai”, ou a manchete do jornal carioca Extra que exaltava o “corpão” da filha de treze
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