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justiça e cidadania nos antigos e modernos PDF

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DOSSIÊ JUSTIÇA E CIDADANIA NOS ANTIGOS E MODERNOS N a tradição ocidental, MARILDE LOIOLA DE MENEZES* cidade. O traço marcante desse a história da política tipo de organização social era RESUMO se inicia com os gre a presença de um conjunto de Refazendo o itinerário da pális grega e de gos. Assim, quando se fala de seus paradigmas sucessivos, configurados no instituições que garantia a par- justiça e cidadania, a tradição Estado Moderno, a autora faz uma reflexão ticipação direta do cidadão na grega surge como um tipo de sobre os conceitos de ;ustiça e cidadania, no vida política da cidade. organização política cuja base contexto das sociedades contemporâneas. A base superior desse de- de sustentação provinha da Sob a ótica de uma análise histórica e senho institucional era garan- participação do povo (demos) política do mundo antigo, busca o encontro tida pelo arcontado. No século na vida da cidade-estado (pólis). de zonas solidárias entre os conceitos de VIII a.C., Atenas era dominada A civilização grega retrata, dessa bem comum e participação, nos antigos, pelas famílias de grandes pro forma, a civilização da pólis. assim como entre os conceitos de direitos prietários - os chefes dos géne individuais e representação política, nos Não se sabe exatamente - que, por intermédio de um modernos. quando e quais as razões espe conselho aristocrático, com sede cíficas do surgimento da pólis no ABSTRACT na colina do Areópago, tinham mundo grego. Sabe-se, porém, This paper revisits the itinerary followed by a primazia de governar. O po- que entre os séculos VIII e VII the Greek concept of the polis and by its der dessas famílias aristocratas, a.C. surgiu uma nova forma successive embodiments, ultimately enshrined que tinham como aliados os de vida social cuja ocupação as paradigms in the modern State, and then principais sacerdotes da pólis, posits the need to reexamine the concepts política do espaço revelava uma era dividido entre três arcontes of ;ustice and citizenship within the context estrutura diferente: a cidade (magistrados). of contemporary societies. A historical and Estado. O arcontado, segundo political analysis is used to discern cross Essa nova forma de orga explica Aristóteles em A Cons cutting aspects of the concepts of common nização política, no contexto do good and participation in the ancient world tituição de Atenas, teria nascido movimento de expansão do que and human rights and political representation da fragmentação do poder se conhece como a colonização in modern thought. real primitivo entre três ma grega, levou à criação, em me * Doutoro em Sociologia, Professora do Instituto gistrados: o rei, o polemarco nos de duzentos anos, de cen de Ciência Político, Universidade de Brasília. e o arconte. O rei presidia os tenas de novas cidades-Estados. sacrifícios; o polemarco dirigia Mas, parece ter sido Atenas aquela que obteve maior as operações militares; ao arconte cabia a função de expressão histórica, sendo geralmente considerada distribuir justiça. Os três magistrados eram, porém, como a cidade-Estado por excelência. 1 Por esta razão, designados coletivamente de arcontes. No início, a temática da cidadania é comumente vinculada à eram eleitos para o cargo vitalício; posteriormente, experiência grega, mais especificamente à experiência passaram a ser eleitos para um mandato de dez anos. da pólis ateniense. Muitos anos depois, surgiram os tesmótetas, magis trados judiciários que, em número de seis, foram BEM COMUM E PARTICIPAÇÃO POlÍTICA acrescentados aos arcontes. Aristóteles denomina o A cidade-Estado era a forma pela qual se or regime dessa época de oligárquico, chamando a aten ganizavam os povos antigos. O que caracterizava ção para o fato de que "particularmente os pobres (eles essencialmente esse tipo de organização política era próprios mais as mulheres e os filhos) tornavam-se o fato de que aqueles que compunham a pólis, os ci escravos dos ricos': 2 dadãos, dividiam seus territórios em comunidades, as Dessa forma, em seus primórdios, a pólis ate quais tomavam, em conjunto, as decisões políticas da niense era dominada por famílias proprietárias de 591 MENEZES M. L. de. justiça e cidadania nos antigos e modernos, p. 47- 47 terra, detentoras do poder político e de distribuição A participação política dos antigos se dava de justiça. "A massa da população constitui, para essa restritamente, apenas entre os cidadãos. A cidadania aristocracia, uma espécie de clientela, reunida no se constituía em um privilégio para aqueles que po seio das fratrias para o culto do ancestral comum ao deriam ser considerados como iguais. Tal igualdade génos':3 Nessa configuração, a participação popular de condições pressupunha uma total ausência de hie ficava restrita ao voto e às consultas esporádicas em rarquia ou subordinação, condição sine qua non para forma de assembléias, estas, ainda incipientes. a efetiva participação do cidadão na esfera pública. Além de um exército comum para garantir a Somente entre iguais o cidadão poderia participar da defesa do território, a pólis ateniense era marcada por vida política sem sofrer nenhuma forma de constran grandes disputas internas entre as famílias aristocra gimento ou coerção. A ausência de hierarquia entre tas. Tais disputas só foram contornadas quando, nos os participantes da esfera pública levava, assim, à ex últimos anos do século VII a.C., o Código de Dra clusão de todo aquele que, de alguma forma, estivesse con limitou as vinganças de morte entre as famílias, submetido à autoridade patriarcal, quer por força de prescrevendo punição para os casos de assassinato. relações familiares, quer por força de alguma forma O código estabelecia o que seria, mais tarde, a gêne de subordinação econômica. Esse era o caso das mu se de um direito comum a todos, sem, no entanto, lheres e crianças, dos estrangeiros e dos escravos. pôr em risco o monopólio político da aristocracia. Se, para os antigos, o exercício pleno de sua Mesmo considerando essas limitações, é indiscutível cidadania se dava por meio da participação ativa na sua importância como uma das primeiras tentativas vida pública, para os modernos, como já observou de regulamentação da vida social. Aristóteles chega Benjamin Constant, essa perspectiva se inverte: o mesmo a induzir uma forma de clivagem da história exercício pleno de sua cidadania tem como ponto política de Atenas, "antes e depois de Dracon'', qualifi culminante a livre escolha de seus representantes. cando de "regime primitivo" as formas de organização Ser cidadão, para os antigos, era uma prerroga social anteriores a Dracon. 4 tiva a ser preservada e o exercício de sua cidadania Atribui-se a Sólon, arconte, eleito em 594 a.C., se constituía não em um direito individual, como nos a criação - paralela ao Areópago - de um Conselho modernos, mas em um dever de participação nos de 400 membros. Entretanto, é por meio da reforma negócios comuns da cidade. Assim, tendo constatado de Clístenes que a pólis ateniense consolida suas a existência de atenienses que não tomavam partido instituições democráticas, ampliando a participação nas freqüentes dissensões da cidade, e que aceitavam, dos cidadãos na esfera política. A partir de então, os por comodidade, o que acontecesse, Sólon promul membros de cada tribo (em número de dez) passaram gou uma lei específica a eles dirigida: "Aquele que, a designar as 50 pessoas que os representariam na quando houver dissensões na cidade, não dispuser Boule dos Quinhentos. Esse conselho, formado por de suas armas com nenhum dos dois lados, perde quinhentos membros escolhidos por sorteio, veio a as prerrogativas e não participa da cidade".5 A lei tornar-se o órgão principal da democracia ateniense. visava, dessa forma, coibir a indiferença política nos Mais tarde, quando Péricles institui a mistoforia, isto momentos cruciais em que a cidade estivesse dividida é, a remuneração àqueles que exercessem as funções por conflitos, obrigando o cidadão a definir-se por públicas, a participação popular alcança seu esplen dor e são criadas as condições formais para o efetivo um dos lados. Em sua biografia sobre o legislador, exercício da cidadania. Plutarco justifica o propósito da lei pelo princípio Desde então, a justiça e a cidadania na pólis da dedicação irrestrita da cidadania ao bem público, ateniense passaram a ter expressão por meio da par contra qualquer razão ditada pelos interesses priva ticipação direta dos cidadãos nos negócios públicos. dos. 6 Tal dedicação à sociedade variava, contudo, em Essa participação seria assegurada pela criação de função dos recursos do cidadão. Isso porque, para os uma esfera pública cuja base de formação não esta gregos, a riqueza criava, necessariamente, obrigações ria apenas no direito, mas também na obrigação de suplementares em relação à cidade. Essas despesas pú participar. blicas que os mais ricos tinham obrigação de assumir I 48 v.37 n.2 2006 REVISTA DE CtENCIAS SociAIS a eram denominadas de liturgias. Isso significava que a DIREITOS INDIVIDUAIS E EPRESENTAÇÃO a designação dos cidadãos mais ricos para o exercício POlÍTICA de certas funções tinha como conseqüência imedia Se as questões ligadas à participação, ao bem ta a disposição de parte de sua fortuna a serviço da comum e à vida pública são imprescindíveis à com cidade. preensão da justiça e ao exercício da cidadania na A liturgia mais importante era a trierarquia, que cidade-Estado, a representação, os direitos individuais consistia em equipar uma nau e mantê-la em pleno e a esfera privada adquirem uma dimensão essencial, funcionamento, por um período de um ano. Essa se um peso imensurável no desenvolvimento das rela constituía numa das liturgias mais caras da época. ções sociais do Estado moderno. As demais correspondiam à manutenção dos cultos, Diferentemente do modelo familiar aristotélico como a coregia, que obrigava o treinamento de um - em que as famílias, reunidas em fratrias, vão pau coro para as representações dramáticas da cidade; a latinamente se associando em tribos para a formação hestíases, que consistia em oferecer um sacrifício, se da cidade-Estado -, o novo modelo de organização guido de banquete, para todos os membros da tribo; a social apresenta a defesa das liberdades individuais e dos direitos civis como patamar básico na formação hippotrophia, destinada à obrigação da manutenção de do consenso firmado a partir da vontade racional das um cavalo para as procissões da cidade. Ser designado partes. A ética baseada nas crenças e valores comuns para exercer uma liturgia constituía-se numa honra e cede lugar à ética marcada pela existência de indivídu distinção para o cidadão. os livres e iguais. A idéia inicial de um associativismo Além das obrigações cívicas, culturais, o cida via família contrapõe-se à concepção do contrato dão ateniense também tinha obrigações religiosas. A social, cuja legitimação não mais estaria na noção esfera pública incluía o culto comum, adorações e res comunitária dos antigos, mas, ao contrário, numa peito às divindades próprias de cada cidade-Estado. percepção moderna da relação indivíduo/Estado. A morte de Sócrates, condenado à pena capital por Essa nova forma de organização social surge em "corromper a juventude e por não crer nos deuses oposição ao Estado absoluto, que resultou da disso da cidade"/ ilustra bem esse aspecto da cidadania lução das sociedades medievais, caracterizadas por ateniense. Tamanha era a importância dessa fideli Bobbio como "eminentemente pluralistas': Ao afirmar dade aos deuses da cidade que, na primeira frase de o caráter pluralista das sociedades medievais, Bobbio A República, Platão refere-se a Sócrates dirigindo-se chama a atenção para o fato de que nessas sociedades ao Pireu "para orar à deusà', numa clara indicação de inexistia a idéia de um ordenamento jurídico único. que, sendo este fiel à religião da cidade, os atenienses Os limites do poder estavam subordinados às parti teriam cometido um grave equívoco em relação ao cularidades de cada segmento da sociedade, isto é, do Império, da Igreja, do feudo, das comunas ou mesmo seu mais ilustre cidadão. das corporações. O Estado absoluto surge, dessa A cidade-Estado representava, assim, a expres forma, em decorrência da unificação da sociedade são da vida coletiva. Todos os conflitos, resoluções, medieval dispersa e fragmentária. 8 proposições tinham de ser deliberados no âmbito da Um dos testemunhos desse movimento em prol esfera pública. Tudo que fosse privado era tido como da formação do Estado absoluto é a obra O Príncipe, algo menor. Somente na esfera pública o homem de Nicolau Maquiavel. Ao refletir sobre a realidade poderia atingir a imortalidade dos deuses: certos da da época, Maquiavel apresenta as bases preliminares inexorabilidade da morte, a única forma de atingir a de uma doutrina em favor de uma forma de Estado imortalidade seria através da herança deixada pelos cujo poder dispensasse qualquer base ou critério de grandes feitos. Estes ficaram registrados na história limitação. Distanciada da moral, a política não teria como sinais de destreza, coragem e heroísmo dos mais como objetivo o alcance da felicidade humana, povos gregos. tal como sugerido por Aristóteles. Ao contrário, 591 MENEZES M. L. de. justiça e cidadania nos antigos e modernos, p. 47- 49 as razões do Estado seriam diferentes da moral dos Em Hobbes, encontramos as principais carac indivíduos, podendo mesmo, para alcançar os seus terísticas dessa concepção, ainda que não se possa objetivos, lançar mão de qualquer meio, inclusive dizer que o autor fosse um representante genuíno da mentira e do embuste. Longe da virtude cristã, de qualquer doutrina em prol da limitação do poder pautada na fraternidade e na humildade, em nome absoluto do Estado. Trata-se, antes, de uma justifi de uma vida eterna, a virtú da vida terrena deveria cação do que de uma resposta ao Estado absoluto, incorporar a "força de um leão': para aterrorizar os legitimado, agora, por um acordo entre os cidadãos, "lobos", e os "vícios da raposà: para saber que "um expresso em um "pacto social". príncipe prudente não pode, nem deve, guardar a Segundo Hobbes, vivendo em um estado de palavra dada, quando isso se torna prejudicial ou natureza, homens livres e iguais encontravam-se em quando deixem de existir as razões que o haviam constante estado de ameaça mútua. Não existindo levado à promessà:9 uma maneira sensata de defender-se dessa descon Ao substituir o "reino do dever ser" da filosofia fiança recíproca, os homens estavam sujeitos à guerra generalizada de todos contra todos. A única forma anterior pelo "reino do ser" da realidade em que es de sair dessa "mísera condição de guerrà' seria por tava inserido, Maquiavel indicava novos parâmetros meio de um pacto capaz "de os defender das invasões de justiça, cujas bases estariam circunscritas na ma estrangeiras e dos danos uns dos outros, garantindo nutenção do poder. Os ditames da moralidade cristã lhes, assim, uma segurança suficiente para que, me poderiam levar à ruína do príncipe: diante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos".11 ( ... )É preciso entender que um príncipe, Para tornar constante e duradouro esse "pacto sobretudo um príncipe novo, não pode artificial" entre os homens, seria necessário o esta observar todas aquelas coisas pelas belecimento de "um poder comum que os mantenha quais os homens são considerados bons, em estado de respeito mútuo, e que dirija suas ações sendo-lhe freqüentemente necessário, para o benefício comum': 12 Até porque, nesse estado para manter o poder, agir contra a fé, de guerra, nada poderia ser considerado justo ou contra a caridade, contra a humanidade injusto e as noções de certo e errado não poderiam e contra a religião. 10 aí ter lugar: "Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. E onde não há poder Por outro lado, sendo os homens ingratos, volú comum, força e fraude são duas virtudes cardeais e a veis, simulados e dissimulados, em nome da proteção justiça e a injustiça não fazem parte da convivência do príncipe, os súditos devem ficar constantemente entre os homens".13 A única maneira de instituir um ameaçados pelo temor e o medo do castigo. tal poder comum, capaz de defender os homens dos Fora do contexto do Estado sem freios e sem danos que causam uns aos outros, seria por meio da limites, os conceitos de cidadania e justiça só irão doação de sua força e poder a um homem, ou a uma ser retomados quando do surgimento de diversos assembléia de homens, que possa reduzir todas as movimentos de reação ao Estado absoluto e à falta vontades a uma só vontade: de limites ao poder estatal, mais precisamente, com as revoluções inglesas do século XVII e a Revolução Quando uma multidão de homens Francesa no século XVIII. A doutrina contratualis concorda e pactua, cada um com cada ta foi uma das primeiras correntes filosóficas que um dos outros, que a qualquer homem questionaram o absolutismo do Estado. Na base ou assembléia de homens a quem seja desta doutrina, estava a idéia de que a justiça deve ser atribuído, pela maioria, o direito de pautada pela consideração segundo a qual ninguém representar as pessoas de todos eles (ou pode deter o poder supremo sem o acordo explícito, seja, de ser o seu representante), todos baseado na vontade, dos cidadãos. sem exceção, tanto os que votaram a I 50 v.37 n.2 2006 REVISTA DE CitNCIAS SOCIAIS r I , favor como os que votaram contra ele, sendo o estado de natureza um estado beligerante, deverão autorizar todos os atos e decisões como quer Hobbes, ele só se torna perigoso, segundo desse homem ou assembléia de homens, Locke, quando ocorre a acumulação e distribuição tal como se fossem os seus próprios atos desigual dos bens entre os homens. O contrato lockeano é, acima de tudo, um pacto e decisões, a fim de viverem em paz uns de não-agressão à propriedade privada. Pelo consen com os outros e serem protegidos dos timento unânime, os participantes concordam em se demais homens. 14 unir em uma sociedade civil, tendo em vista a prote O Estado surge, assim, de um pacto que os indi ção de seus direitos naturais inalienáveis: o direito à víduos firmam entre si, com o propósito de garantir a vida, à liberdade e aos bens - os direitos básicos do segurança das suas vidas pela sujeição comum a um cidadão lockeano. único poder. Mais do que um acordo, o pacto hob Para Locke - e nesse sentido contrapondo-se a besiano exige do cidadão uma verdadeira renúncia Hobbes -, nenhum homem pode ficar sob o poder ao autogoverno, ao mesmo tempo em que confere absoluto de outro. Em tais condições, isto é, quando o um poder incondicional ao soberano. Visando à pre cidadão é tomado como escravo, ele pode e deve en servação de suas vidas, os cidadãos transferem a um trar em estado de guerra, como uma forma de defesa terceiro a força coercitiva da comunidade, trocando, de sua vida, de sua liberdade e dos seus bens. voluntariamente, sua liberdade pela segurança do A lei, a justiça, deve garantir a preservação do Estado-Leviatã. Dessa forma, não podem os súditos cidadão contra todos os atos de violência. A justiça mudar a forma de governo e ninguém pode, sem tem por finalidade proteger e reparar os inocentes, cometer um ato de injustiça, protestar contra a insti mediante sua aplicação justa a tudo que está sob sua tuição do soberano pactuado pela maioria. tutela. A preservação do cidadão em uma sociedade Nesse contexto, a justiça, por definição, é prer política organizada só pode existir diante da inves rogativa única do soberano. Infantilizado, o cidadão tida de um poder supremo ao qual todos os outros hobbesiano deve obediência cega ao Estado e este, cidadãos estão e devem ser subordinados. Trata-se como um bom genitor, deve oferecer-lhe proteção e do poder legislativo, cujos integrantes se constituem segurança. Ao se deixar ser representado, o cidadão em representantes do povo, escolhidos a partir de sua renuncia a qualquer forma de participação política. vontade livre e autônoma. A população somente será A esfera pública torna-se o espaço nobre da submis compelida a obedecer às leis que tenham sido ratifica são. das pelos seus representantes e com o consentimento Diferentemente da visão aristotélica, do homem da maioria. 15 como um animal político, Hobbes acredita que, na Enquanto o contratualismo de Hobbes confere inexistência de um poder capaz de inspirar respeito legitimidade e reforça o poder absoluto do Estado, a todos, os homens não teriam nenhum prazer na a proposta lockeana desautoriza qualquer investida companhia dos outros - pelo contrário, haveria um contra os direitos individuais e, ao mesmo tempo, enorme desprazer nesse convívio. Se a igualdade era ratifica a idéia de representação política, tida como tida como condição para a participação do cidadão expressão genuína da defesa dos cidadãos, de sua da pólis, no Estado hobbesiano essa consciência de liberdade e da propriedade privada. que todos teriam as mesmas faculdades do corpo e do A concepção de ambos os autores encontra espírito provocaria a discórdia e seria responsável pelo grande repercussão e é objeto de críticas da parte de permanente estado de guerra entre os homens. um terceiro contratualista, Jean-Ja cques Rousseau. Se, para Hobbes, a representação exclui o ci Em sua história hipotética da humanidade, Rousseau dadão de qualquer forma de participação política descreve o que considera ser o perfil do "homem na e o justo é o que determina o soberano, em Locke, tural': Para Hobbes, este seria naturalmente intrépido, a representação é simbolizada pelo acordo comum beligerante, pronto para atacar e combater. Rousseau, entre as partes, proveniente do contrato social. Não ao contrário, assegura que "nada é tão tímido quanto 591 MENEZES M. L. de. justiça e cidadania nos antigos e modernos, p. 47 · 51 ,.,_ o homem no estado de natureza", estando "sempre dade, mas para a escravização do cidadão moderno. trêmulo e pronto para fugir ao menor ruído que o A soberania não pode ser representada, pela mesma impressione, ao menor movimento que percebá: 16 razão por que a vontade geral não se representa. Os Por outro lado, o primeiro que, tendo cercado um deputados do povo não poderiam ser, assim, seus terreno, atreveu-se a dizer "isto é meu" teria sido o representantes. Toda lei que o povo pessoalmente verdadeiro fundador da sociedade civil.17 não ratificou é nula e não se constitui exatamente Além da idéia de que o homem é bom por na numa lei: "O povo inglês pensa ser livre e engana-se. tureza, mas, corrompido pela sociedade, um outro Não o é senão durante a eleição dos membros do componente do contrato rousseauniano se distancia Parlamento. Uma vez estes eleitos, torna~se escravo da concepção de seus predecessores: a idéia de bem e nada mais é".21 Essa seria o que Rousseau denomina comum e de representação política. Para Rousseau, de escravidão dos modernos. quando os homens, reunidos em um só corpo, "têm Além dos contratualistas, outras teorias mo uma única vontade que se refere à comum conserva dernas propuseram, igualmente, uma limitação no ção e ao bem -estar geral", nesse estado não existem poder estatal. Na obra O espírito das leis, Montesquieu interesses confusos ou contraditórios: "O bem comum afirma a necessidade de não apenas vigiar o Estado, se mostra em geral com evidência e não exige senão mas de dividi-lo de tal forma que o poder possa ser bom senso para ser reconhecido': 18 Por essa razão, a distribuído em três instâncias: legislativa, executiva vontade geral de Rousseau é sempre reta, prudente e e judiciária. A separação desses poderes em instân nunca poderá errar. Entendida como uma vontade cias diferentes evitaria, assim, a preponderância de que, para ser verdadeiramente geral, deva refletir um só poder sobre os demais, ao mesmo tempo em aquilo que as pessoas têm em comum, a vontade que propiciaria controle recíproco entre os poderes geral estaria isenta de qualquer possibilidade de independentes. equívocos, erros, distorções. Entretanto, quando se Conforme Montesquieu, o impulso natural ou formam "pandilhas e associações parciais à custa da desejo de um subjugar o outro que Hobbes atribui totalidade", a vontade geral cede lugar à vontade de à espécie humana estaria longe de qualquer funda todos, não atendendo, assim, ao interesse comum. mento: o temor em relação à natureza e aos demais Nesse caso, não seria senão uma soma de vontades animais encorajaria os homens a se aproximarem particulares. A justiça é feita quando se subtrai do uns dos outros: interesse e da voz de cada pessoa aquilo que ela tem [. .. ] eles seriam levados a isto pelo prazer em comum com os outros cidadãos, uma vez que a que um animal experimenta ao sentir a "vontade particular tende, por natureza, para as suas aproximação de outro animal da mesma preferências, e a vontade geral para a igualdade". 19 espécie. Além disso, o encanto que os A soberania estaria, dessa forma, restrita à vontade dois sexos inspiram um ao outro, devido geral; só ela poderia conduzir o Estado de acordo com o bem comum. à sua diferença, aumentaria esse prazer Assim, para Rousseau, a soberania seria o e o apelo natural que sempre fazem um exercício pleno da vontade geral e "o soberano, que é ao outro.22 apenas um ser coletivo, só pode ser representado por Para Montesquieu, não é no estado de natureza ele mesmo: o poder pode muito bem ser transmitido, que se estabelece a guerra de todos contra todos. Ao mas não a vontade".20 Por esse motivo, quando um contrário, o estado de guerra começa precisamente povo nomeia seus representantes, deixa de ser livre. quando os homens são isentos de sua fraqueza inicial Tal como na Grécia antiga, uma vontade não pode e reforçados pelo estado de igualdade que a sociedade ser delegada nem representada. Na medida em que lhe confere: isso ocorre, esta passa a se constituir na vontade do outro e este passa a ficar sem vontade. Em Rousseau, Cada sociedade particular começa a idéia de representação contribuiria não para a liber- a sentir sua força, o que produz um I 52 v.37 n.2 2006 REVISTA DE Ci'NCIAS SOCIAIS estado de guerra de nação a nação. A síntese que podemos retirar de O Espírito das Os particulares, em cada sociedade, Leis é que "o bom senso e a felicidade dos particulares começam a sentir sua força; procuram consiste, em larga medida, na mediocridade de seus colocar a seu favor as principais talentos e de suas riquezas':25 A base de um Estado justo estaria sujeita à qualidade de sua representação vantagens desta sociedade, o que cria política, bem como à autonomia de seu poder de entre eles um estado de guerra. 23 julgar. Não existe, assim, liberdade se o poder de jul gar não for separado do poder legislativo e do poder Haveria, assim, dois tipos de estado de guerra executivo. Se o poder legislativo estiver reunido numa que levam ao estabelecimento de leis entre os homens. O primeiro seria regido pelo Direito das Gentes, cujo mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, objetivo é regulamentar a relação entre os povos. O isto é, se o poder legislativo estiver reunido ao poder segundo, o Direito Político, teria a função essencial executivo, não existe liberdade. Nesse caso, diz Mon de regulamentar aqueles que governam e os que são tesquieu, pode-se temer que o monarca ou o Senado governados; finalmente, o Direito Civil iria garantir crie leis tirânicas para executá-las de forma arbitrária. a normatização das relações que todos os cidadãos E conclui: "Tudo estaria perdido se o mesmo homem, estabelecem entre si. Estes formariam o conjunto de ou o mesmo corpo de principais ou nobres, ou do direitos que protegeriam o cidadão "particular" e a povo exercesse os três poderes: o de fazer leis, o de sociedade em geral. executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes Quanto à representação, Montesquieu conside ou as querelas entre os particulares". 26 rava o povo "admirável quando escolhe aqueles aos Por outro lado, em um Estado livre, todo cidadão quais deve delegar uma parte de sua autoridade':24 deve ser governado por si mesmo. Na impossibili Detendo o poder soberano, o povo deve fazer por si dade de tal empreendimento, o cidadão deve fazer, mesmo tudo aquilo que sabe fazer bem. E, no caso de por meio do poder legislativo, tudo aquilo que não dúvida em relação à capacidade dos governados em pode fazer por si mesmo. Para Montesquieu, um dos escolher seus governantes, Montesquieu, inspirado grandes vícios da maioria das antigas repúblicas teria nos antigos, confia na sabedoria natural do povo, no sido a concessão ao povo do direito de tomar decisões. reconhecimento de suas limitações e no mérito dos Em função dessa natural incapacidade do povo para notáveis. Assim, em Roma, ainda que o povo tivesse decidir, "o poder legislativo será confiado ao corpo dos outorgado a si mesmo o direito de dar cargos aos ple nobres e ao corpo que for escolhido para representar beus, dificilmente os elegia. Sabe-se também que em o povo, que terá, cada um, suas assembléias e suas Atenas, ainda que fosse possível, pela lei de Aristides, deliberações separadamente, e opiniões e interesses escolher magistrados entre todas as classes, nunca a separados"27 • "arraia miúda" elegeu algum representante de seu pró Para Montesquieu, não conhecendo a "distribui prio meio. Sólon estabeleceu que senadores e juízes ção dos três poderes no governo de um só'; os antigos atenienses seriam escolhidos por sorteio, mas, para não podiam ter uma idéia clara da monarquia. No "corrigir" eventuais desvios ou erros, determinou que governo dos reis dos tempos heróicos, os três poderes só poderiam ser eleitos aqueles que "apresentassem" estavam mal distribuídos e é por essa razão que tais sua própria candidatura. Isso porque Sólon também "monarquias não podiam se manter pois assim que o instituiu que, ao fim do mandato, o representante teria povo possuísse a legislação, podia, ao menor capricho, de passar por um julgamento sobre a maneira pela aniquilar a realeza, como o fez em todo lugar':zR qual teria se comportado durante o período em que Tal como os contratualistas, Montesquieu exerceu seu mandato. Nesse caso, é de se esperar que procura limitar o poder real. Além disso, regula na as pessoas que se julgavam "incapazes" não quisessem disponibilizar seu nome para essa forma singular de mesma proporção o poder do povo. Qualquer forma sorteio, que poderia implicar o julgamento de suas de transferência irrestrita de poder é refutada em eventuais omissões e ações durante o período que nome do equilíbrio entre o poder do monarca, dos esteve a serviço da pólis. legisladores e do cidadão. MENEZES M. L. de. Justiça e cidadania nos antigos e modernos, p. 47- 59 I 53 EQÜIDADE, INÇLUSÃO, REDISTRIBUIÇÃO, definir a base do consenso entre os cidadãos. A justiça RECONHECIMENTO com eqüidade de Raws transmite, assim, a idéia de que os princípios de justiça são acordados numa situação Apesar do indiscutível peso das contribuições inicial eqüitativa e que os seres humanos - como dos antigos e modernos, as questões da justiça e da pessoas éticas e racionais-, tendo uma concepção do cidadania permanecem ainda em aberto. No esforço seu próprio bem, são capazes, dessa forma, de também inesgotável de uma melhor compreensão dos princí adquirir um senso geral de justiça. pios gerais da convivência humana, as atuais teorias Nessa concepção, as instituições sociais definem da justiça ampliam novos conceitos de cidadania os direitos e deveres dos homens e influenciam seus quando se referem a eqüidade, inclusão, redistribui projetos de vida. Isso significa que homens nascidos ção, reconhecimento. em condições diferentes possuem expectativas dife Na obra Uma Teoria da Justiça, John Raws rentes, determinadas, em parte, pelo sistema político propõe que cada pessoa tenha uma inviolabilidade bem como pelas circunstâncias econômicas e sociais. baseada na justiça que nem mesmo o bem-estar da Dessa forma, as instituições da sociedade favorecem sociedade poderá sobrepujar. Assim, a idéia de que certos pontos de partida mais do que outros. Essas o sacrifício de uns poucos é compensado com o be desigualdades afetam, desde o início, as possibilidades nefício de muitos é completamente desconsiderada de vida dos seus cidadãos. Contudo, elas não podem por Raws. A concepção da justiça como eqüidade ser justificadas mediante um apelo às noções de mé generaliza e leva a um nível mais alto de abstração rito e valor. Raws sustenta que, além da igualdade de os conceitos tradicionais contidos na doutrina do condições na atribuição de deveres e direitos básicos, contrato social. O pacto social é, assim, substituído as desigualdades econômicas e sociais - desigualdade por uma situação inicial, baseada em um acordo entre de riqueza e autoridade- são justas apenas se resul os homens sobre os princípios da justiça. O contrato tam em benefícios compensatórios para cada um, e social entre os cidadãos, segundo Raws, só admite que particularmente para os membros menos favorecidos uma sociedade esteja bem ordenada na medida em da sociedade. que esteja, efetivamente, regulada por um conceito A idéia geral é que, pelo fato de o bem-estar de público de justiça: trata-se de uma sociedade na qual, todos depender de um sistema de cooperação sem o por um lado, todos aceitam e sabem que os outros qual ninguém pode ter uma vida satisfatória, a divisão aceitam os mesmos princípios de justiça e, por outro de vantagens deveria acontecer de modo a suscitar a lado, as instituições básicas da sociedade aceitam e cooperação de todos os participantes, incluindo os cumprem tais princípios de justiça. menos bem situados. Tais condições definiriam os É por meio dessa concepção partilhada de jus princípios de justiça como sendo aqueles que pessoas tiça, que se estabelecem os vínculos de convivência racionais preocupadas em promover seus interesses cívica. Nessa concepção, os cidàdãos e as instituições aceitariam, consensualmente, os benefícios da coo sociais devem satisfazer os princípios básicos de peração social desde que estivessem em condições convivência social, estabelecendo, assim, os vínculos de igualdade, nas quais ninguém é consciente de ser necessários ao ideal de construção de um Estado favorecido ou desfavorecido por contingências sociais liberal e justo. Os princípios de justiça, o que Raws ou naturais. denomina de estrutura básica da sociedade, são o Em oposição à doutrina utilitarista, Raws afirma objeto do consenso original. que Na justiça com eqüidade, a posição original de igualdade corresponde ao estado de natureza da teoria Cada membro da sociedade é visto tradicional do contrato social. Tal posição original como possuidor de uma inviolabilidade não é concebida como uma situação histórica real, fundada na justiça, ou, como dizem mas como uma situação puramente hipotética na alguns, no direito natural, que nem qual, sob o véu de ignorância, ninguém é favorecido o bem-estar de todos os outros pode ou desfavorecido na escolha dos princípios que irão anular".29 I 54 v.37 n.2 2006 REVISTA DE (I;NCIAS SOCIAIS a No ideal moral da justiça como eqüidade, os da estrutura econômica da sociedade, temos de levar e direitos assegurados pela justiça não estariam sujeitos em consideração as injustiças culturais. O sujeito ) a negociações ou ao cálculo dos interesses sociais. O coletivo de Fraser não se define somente nas relações utilitarismo não levaria a sério a diferença entre as de produção, mas, também, pelo grau de estigma em pessoas, ao passo que a justiça com eqüidade expressa relação aos padrões sociais de representação e co a idéia segundo a qual o conceito de justo precede ao municação dominantes. Para superar ou estabelecer conceito do bem. uma mudança cultural ou simbólica, a autora propõe Na teoria da justiça com eqüidade, as pessoas a exaltação das diferenças, a partir da desconstrução aceitam, de antemão, um princípio de liberdade igual progressiva da "hierarquia negativa de valores" pre e o fazem sem conhecer seus próprios objetivos pes sentes no conjunto da sociedade. soais. Implicitamente, concordam em conformar seu A proposta de Fraser poderia ser resumida próprio bem com os princípios gerais de justiça que em duas dimensões: redistribuição para as classes serão aplicados a todo o corpo social. Os princípios exploradas e reconhecimento para grupos sociais da justiça impõem limites, estabelecendo quais satis cuja sexualidade seja desprezada, como mulheres e fações serão válidas em termos coletivos, ao mesmo homossexuais. É no interior dessas divisões bidimen tempo em que impõem restrições a concepções que sionais" que Fraser identifica os grupos que sofrem ferem um sistema social justo em que todos possam injustiças distributivas e de reconhecimento. Para a se beneficiar. Dessa forma é que os ideais morais de autora, a desvalorização econômica e/ou cultural justiça de Raws estão profundamente incorporados gera exclusão social e marginalização política. Além aos princípios fundamentais de uma teoria ética tí do reconhecimento daquilo que é comum a todos, a pica das concepções do direito natural, em oposição justiça requer o reconhecimento do que é diferente à teoria da utilitária. nos indivíduos. No seu modelo de status de reconhe Para outras teorias da justiça contemporâne cimento, Fraser admite que não ser reconhecido não as, além da distribuição nos moldes propostos por significa somente ter sua identidade ou subjetividade Raws, qualquer que seja a concepção de justiça deve prejudicadas, depreciadas. Não ser reconhecido é, abordar também as lutas por reconhecimento. Em acima de tudo, ser impedido de participar como um sua perspectiva dualista, Nancy Fraser propõe uma igual na vida social, em razão de padrões instituciona concepção bidimensional de justiça que envolve tanto lizados de valor cultural. Nesse sentido, a concepção redistribuição como reconhecimento. A idéia da autora de justiça fraseana não somente ultrapassa a questão é fazer uma correlação que possa tornar evidentes as grega do bem comum, como exige a operacionalização conexões entre a desigualdade de classe e a hierarquia de um modelo que contenha em suas bases a paridade de status, nas sociedades contemporâneas.30 participativa.3 1 A partir dessa perspectiva, Fraser apresenta dois Como Fraser - defensora da democracia como tipos de apelos por justiça social: os apelos por redis forma de governo que restringe o abuso de poder, que tribuição mais justa dos recursos e riqueza e os apelos combate a injustiça e promove a justiça -, Iris Young por políticas de reconhecimento, cuja motivação seria objetiva construir uma relação teórica normativa, o respeito às diferenças, em substituição à assimilação entre democracia e justiça. Para Young, a democracia às normas culturais dominantes. Uma concepção seria um meio por excelência de promoção da justiça de justiça requer, dessa forma, tanto redistribuição e da inclusão social. No contexto de uma democracia como reconhecimento. À justiça distributiva de Rawls aberta e justa, partes mais fracas podem atingir seus é acrescentado o reconhecimento, cuja origem pode objetivos políticos e, mediante discussões públicas, ser identificada na atuação dos movimentos sociais podem persuadir cidadãos a incorporarem a sua contemporâneos. causa como justa. Assim, pessoas marginalizadas, Nessa linha, o cidadão, é visto com.o igual, e, com desigualdades de recursos, podem se organizar simultaneamente, deve ser reconhecido nas suas di para superar as desigualdades. A democracia deve ferenças. Para Fraser, além das injustiças originadas ser pensada, assim, como sendo capaz de promover MENEZES M. L. de. Justiça e cidadania nos antigos e modernos, p. 47- 59 I 55 mudanças legais, administrativas e sociais, na busca move as condições institucionais de promoção do de mais justiça e da superação das desigualdades autodesenvolvimento e da autodeterminação. O auto estruturais. desenvolvimento é apreendido a partir de condições A democracia comunicativa inclusiva, proposta institucionais que permitam a interação e a comu por Young, não significa, por outro lado, a unificação nicação entre pessoas. A autodeterminação, por sua pura e simples dos participantes, que, por meio do vez, ofereceria as condições para o desenvolvimento subterfúgio do discurso único sobre o bem comum, e questionamento da organização institucional do perpetuam injustiças e preservam privilégios. Uma poder, do status e da comunicação. Às duas concep vez que os grupos se distribuem desigualmente ções de justiça social corresponderiamas outras duas quanto ao poder e ao controle dos recursos, sempre concepções de injustiça social: a opressão, entendida haverá grupos com mais habilidade em usar o pro como o constrangimento para o autodesenvolvimen cesso democrático para seus próprios fins, enquanto to, e a dominação, entendida como o constrangimento outros serão excluídos ou marginalizados. As dis tendo em vista a autodeterminação. cussões surgidas tendo como referência de análise Certa de que nenhuma democracia real seria a questão da desigualdade não ocorrem livres de perfeitamente justa, em função das desigualdades coerção e ameaça; daí a necessidade de um modelo estruturais de riqueza, de poder de acesso ao conhe comunicativo de inclusão democrática, no qual os cimento, Young considera tais desigualdades estru segmentos sociais lutem e se engajem em defesa de turais injustas, uma vez que ajudariam a perpetuar suas diferenças, ao invés de colocá-las à parte, em condições que apóiam a dominação ou inibem o nome de um bem comum. 32 autodesenvolvimento, marginalizando algumas vozes Ao contrário da vertente liberal, para a qual o e privilegiando outras. Em oposição aos defensores processo democrático básico é o voto, no modelo de do bem comum, os cidadãos deveriam perceber "algo democracia comunicativa o processo básico de exercí comum", no ato de abandonar seus interesses pessoais cio da política seria concretizado mediante a discussão e na busca do bem de todos. A idéia de bem comum ou dos problemas e conflitos, bem como a exposição de interesse geral, longe de incluir, poderia, ao contrário, necessidades e interesses que atravessam o conjunto ser usada como meio de legitimar a exclusão social. do corpo social. A decisão, não vindo simplesmente O compromisso com o consenso poderia, da do apoio numérico, seria exercida considerando a mesma forma, promover a exclusão de questões consi inclusão, a igualdade, a razoabilidade e a publicidade, deradas arriscadas para a preservação do bem comum. mediante as quais o processo de justiça democrática Tais diferenças têm, entretanto, de ser entendidas no se legitimaria. contexto do alcance de uma maior justiça social, e é Sendo o objetivo da democracia a resolução de nesse sentido que Young se refere aos processos polí problemas coletivos, tendo em vista a formulação ticos mais em termos de lutas do que de acordos. Esse de um acordo entre as partes, as idéias devem ser apelo à unidade, ao bem comum, na visão de Young, expostas, ouvidas e debatidas com vistas a procurar seria funcional apenas na medida em que atendesse transformar e influenciar as preferências, os interes os interesses de grupos dominantes, uma vez que os ses, as crenças e os julgamentos incrustados no tecido "outros" são tidos como "desviantes': social. Nesse contexto, os interesses deixariam de ser Ao invés do bem comum, Young propõe uma meramente individuais e se orientariam, não para concepção de política e sociedade na qual os setores uma noção abstrata de justiça, mas para um julga sociais se comunicam uns com os outros, num esforço mento particular sobre quais ações ou políticas, de de convivência com suas diferenças. Contra o debate uma determinada coletividade, seriam adequadas aos dominante, polido, ordenado, desapaixonado, Young princípios gerais de justiça social. É por essa razão que defende um modelo de processo democrático mais Young acredita que um processo de decisão inclusivo agonístico, em que as diferenças sociais e injustiças produz, para o cidadão, justiça com inclusão social. significativas se transformam numa luta constante, em A justiça social, para Young, é aquela que pro- prol do processo de engajamento comunicativo entre I 56 v.37 n.2 2006 REVISTA DE Ci'NCIAS SOCIAIS

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MENEZES M. L. de. justiça e cidadania nos antigos e modernos, p. 47- 591 47 combate a injustiça e promove a justiça -, Iris Young objetiva
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