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Geografia dos mitos brasileiros PDF

382 Pages·2012·2.002 MB·Portuguese
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Luís da Câmara Cascudo Geografia dos Mitos Brasileiros 1ª edição digital São Paulo 2012 Sobre a reedição de Geografia dos Mitos Brasileiros A reedição da obra de Câmara Cascudo tem sido um privilégio e um grande desafio para a equipe da Global Editora. A começar pelo nome do autor. Com a concordância da família, foram acrescidos os acentos em Luís e em Câmara, por razões de normatização bibliográfica, permanecendo sem acento no corpo do texto quando o autor cita publicações de sua obra. O autor usava forma peculiar de registrar fontes. Como não seria adequado utilizar critérios mais recentes de referenciação, optamos por respeitar a forma da última edição em vida do autor. Nas notas foram corrigidos apenas erros de digitação, já que não existem originais da obra. Mas, acima de detalhes de edição, nossa alegria é compartilhar essas “conversas” cheias de erudição e sabor. Os editores Prefácio Las cosas hay que hacerlas, mal, pero hacerlas. SARMIENTO Depois dessa viagem, legitimamente maravilhosa, pergunto como vou colocar, simétrica e ritmicamente, a bicharia fantástica que campeei e reuni neste livro. Depois de tanto material lido e ouvido, em anos e anos de amorosa curiosidade, descubro a obrigação de filiar-me a uma escola, escolher um caminho, marchar numa direção, sob as penas da lei folclórica. Habituado a provocar depoimentos de vaqueiros e cantadores, gente que cortou seringa na Amazônia e caucho na Bolívia, apanhou castanha no Pará e cacau na Bahia, vigiou os “baldes” nas salinas de Macau e cortou madeiras no Acre, imobilizo-me perante juízes, por minha vez interrogado. Parece-me que a melhor e mais alta valia desse livro é a perfeita ausência de “explicação” quando recolhi o fabulário. Nenhuma onça maneta nem cavalo de três pés troteia nos riscos preestabelecidos de uma “picada” doutrinária. Batia Kodak fiel e naturalmente. Sem retoque trouxe meus “instantâneos”. Os leves traços que precedem ou se alinham, fingindo estudos, são reminiscências de leituras teimosas sempre no rumo de cotejar e esclarecer. Os rótulos que preguei na testa do Lobisomem ou do Saci-pererê podem ser arrancados facilmente. Fixei-os apenas com a mais matuta e leal das sinceridades... A classificação que elegi, com modificações pessoais, é a mais velha e clássica, a mais simples, primitiva e lógica das classificações. Assim, divido em dois quadros gerais o mundo espantoso em que vivi. Mitos primitivos e mitos secundários e locais. Os primeiros subdividem-se em mitos-gerais indígenas (Jurupari, Curupira, Anhanga, Mboitatá, Tupã, Ipupiaras etc.) e os europeus diversificados pelo elemento colonial brasileiro (amerabas, negros mestiços) e que vêm a ser Lobisomem, Mula-sem-cabeça, Mães-d’água etc. Só. Não há nenhum que se arrogue a ter imunidade. Mito negro apenas atino com o Quibungo. Europeu puro, não avistei. Indígena 100%, idem. No máximo, ou no mínimo, são continentais. Fiz o possível para incomodar intensamente amigos e desconhecidos. Mendiguei estórias de bichos e de homens assombrosos em todos os Estados. O silêncio ilustre de alguns destinatários responde pela omissão neste trabalho. É de esperar que se compreenda que Folclore é no Brasil atual a urgência de salvar material, o mais avultado, o mais longínquo, para livrá-lo da influência do cinema e do rádio propagador da Favela e Morro da Viúva. Depois, estudar-se-á. Não termos no Brasil um instituto, uma associação, um clube, uma coisa que reúna os malucos que amam o Folclore, é um elemento negativo e afastador de qualquer possibilidade de realização sistemática e geral. A consequência é ouvirmos “folclorista” como palavra pejorativa e vagamente insultuosa. Um amigo meu, residente no Rio de Janeiro, homem de livros por fora e ideias por dentro, perdeu meia hora explicando as razões de não ser folclorista. Também Santos Chocano dizia que ahora soy poeta, soy divino, soy sagrado, e nas praias do Rio Grande do Norte, poeta é sinônimo de bicho-de-pé. “Estou aqui vendo se tiro esse poeta”, respondeu um pescador a Henrique Castriciano que lhe perguntara por que estava escavando os dedos com uma ponta-de-faca. Peço licença para citar o português Eugênio de Castro. Prefaciando sua tradução dos versos de Goethe, afirmou não conhecer bufarinheiro sem louvor às agulhas que vende. Com razões dobradas, sem que seja perguntado, informo que esse livro foi moldado originalmente sem referência. Não sabia existir semelhança orientadora em idioma português, falado no Brasil. Estudei nesses capítulos os mitos ainda vivos, correntes e crentes na imaginação popular. Os que se articulavam aos acidentes geográficos ou fenômenos meteorológicos, aos fatos sociais (família, trabalho, educação, amor) ou religiosos, foram excluídos por pertencerem a uma “Etnografia Tradicional do Brasil” que estou perpetrando com injustificado entusiasmo. A parte poética, nos limites do possível para mim, estudei nos Vaqueiros e Cantadores. Fecharão a série uma nota à nossa literatura oral. E se Deus ainda mantiver em minha pessoa tais desígnios tão laboriosamente inúteis, sacudirei o pingo final no encargo. Como, preparando minha “Etnografia Tradicional do Brasil”, ia sendo compelido a cruzar com todos esses bichos e seres espantosos, senti-me na disposição de prendê-los num campo, bem pobre e curto, mas enfim um campinho onde poderão ser vistos em maior número que no meio das matas, dos capoeirões e das várzeas brasileiras, dos rios, dos ares e das montanhas da Pátria. Era uma tarefa difícil, áspera e longa, mas devia hacerla, mal, pero hacerla... Natal, XII, 1940. Luís da Câmara Cascudo GEOGRAFIA DOS MITOS BRASILEIROS MITOS PRIMITIVOS E GERAIS MITOS SECUNDÁRIOS E LOCAIS ADENDOS A Relação Étnica nos Mitos Brasileiros ACRE Escreve Joaquim Ribeiro prefaciando o Folclore Acreano de Francisco Peres de Lima (1938): A vida étnica acreana está condicionada a dois fatores, de grande valor “determinante” de sua feição regional. De um lado, o Acre, situado na rede fluvial da bacia amazônica, é uma terra quase submergida nas águas; daí o seu caráter “lacustre”, que V. mais uma vez comprova. De outro lado, a órbita das fronteiras tende a provocar influências, nem sempre neutralizadoras, dos povos hispano- americanos sobre o Brasil, e do povo brasileiro sobre a Bolívia e Peru; daí a penetração, no folclore acreano, de algumas usanças dalém fronteiras (a “cueca”, a “marinera”, a “caisuma”, “chicha”, etc.). Resultante dessas duas forças, por assim dizer, modeladoras, o folclore acreano distinguiu-se, com nitidez, do “folclore amazônico” em geral (Amazonas e Pará). A influência do Peru e da Bolívia se reflete mais nos costumes que nos mitos e superstições. Dinheiro boliviano e peruano corre no Território do Acre, no curso dos rios, sendo Humaitá a cidade do câmbio, subindo o Madeira, pelo Purus até Labreia, pelo Juruá quase até a entroncadura do Solimões. Desta forma sobem pelos rios amazônicos decisiva porção de estórias e hábitos. As duas entidades positivas do Folclore acreano são: Amazonas e Nordeste do Brasil. A primeira com os mitos primitivos e gerais, agora quase diluídos. A segunda pela ativíssima população de cearenses, norte-rio-grandenses, paraibanos, pernambucanos que se fixaram, desde tantíssimos anos, no “território”. Dos mitos amazônicos, primitivos e divulgados pelos tupi-guaranis, já não se fala em Curupiras, nem Anhangás, nem Mboitatá, nem Jurupari. O Anhangá é apenas um veado que assombra. Curupiras e Caaporas fundiram- se no Caipora, ou melhor, na Caipora que os habitantes do Acre descrevem, igualmente os sertanejos nordestinos o fazem, caboclinha pequena, escura, robusta, cabeluda, ágil, com a cabeleira cobrindo o sexo, dando caça a quem lhe dá fumo e tendo amores ciumentíssimos. Os mitos mais vivos são os que foram levados, em torna-viagem, pelos “retirantes” do Nordeste e se conservam nítidos porque se expandem dentro de um ambiente espiritualmente imutável, o espírito conservador dos homens do nordeste. Assim encontramos o Lobisomem, a Burrinha (Mula), o Batatão, a Caipora. Do ciclo amazônico há a Cobra-grande, a Boiuna espalhando lendas nos rios, em todos os rios, mas, como registrou o Sr. Francisco Peres de Lima, claramente confundida com o mito europeu das Ondinas. No restante, sendo povo de trabalhadores nas florestas, há a predominância dos animais fabulosos, como no Amazonas e Pará, onças-bois, gogó-de-sola, insetos fulminantes (como a inofensiva Jequitiranaboia, Fulgura lanternaria)1 etc. Surge também, vindo das matas amazônicas, o Mapinguari, derradeira encarnação do “Bicho-Homem”, o homem selvagem, antropófago e faminto, espiando, de longe, o fulgor das cidades iluminadas à luz elétrica. Curiosamente, tendo o Peru uma extensão de fronteiras de tamanho duplo à da Bolívia, é esta mais influenciadora que aquele. Nas anedotas, estórias tradicionais de caçadas, valentias, casos picarescos, certos hábitos e mesmo superstições, estas em menor quantidade, sente a Bolívia. O elemento de ligação foi menos o boliviano que o mestiço brasileiro, eterno viajante, traficando, cortando “seringa”, tirando caucho, rio acima, rio abaixo, e semeando o que ouvira em seu sertão longínquo. ALAGOAS Alagoas, destacada de Pernambuco, conservou as sementes do seu passado. Durante séculos foi comum a história em guerras, conquistas, colonização. Seus mitos são os mesmos da região, idênticos pelo processo de divulgação e explicáveis pelos valores étnicos de sua população. Do lado sul, limitando com Sergipe, devia ter sofrido a influência da Bahia, mas tal não se deu. Pernambuco era tudo, com seus “engenhos”, escravaria, senhores de mando, lutas políticas. Para a fronteira sergipana, margens do rio São Francisco, o povo era raro e pobre. Zona rica, o gado dizia seu valor, mas a gadaria não exige número avultado de braços, como o açúcar, a mineração, o café. A água do rio era mesmo uma barreira. As lendas demoraram a vencer-lhe o curso límpido. Para Pernambuco os elementos convergiam. Interesses, povoamento, tribos indígenas, meios industriais, tudo irmanado, contínuo, prolongado. Os mitos vieram, ou melhor seria dizer, se estenderam sem perder a ligação original. Vivem, por isso, em Alagoas, os mitos gerais, portugueses e amerabas, comuns a Pernambuco. Os mitos locais são apenas diferenciações que o povo se encarrega de regionalizar, introduzindo-lhes a cor ambiental. Lobisomem, Mula de padre, Fogo-corredor, Pai do Mato, representando o Mapinguari amazônico ou o Olharapos português, Caipora, correm paralelos aos mitos secundários, coloridos pela imaginação local, Cachorra da Palmeira, bicho da usina Uruba, o buraco-feito, o Anjo-corredor, e os entes do ciclo da angústia infantil, o Papa-figo, o homem do surrão, o Galafoice. Alagoas é, historicamente, produtora de açúcar e este denuncia o negro escravo. Os mitos africanos, e mesmo mestiçados, com matiz mais carregado, são raríssimos e sem popularidade. O Zumbi alagoano, o que tem prestígio, não é o Zumbi baiano, nem o que recorda o título do chefe gloriosamente vencido no “quilombo” de Palmares, a Troia negra do século XVII. O Zumbi que se vulgarizou, além do lado heroico, foi um ente que tomou forma inteiramente nova no Folclore brasileiro: um zumbi que significa a materialização do espírito dos animais mortos.2 Como o vemos nas estradas baianas ou nas várzeas de Sergipe, não o encontramos na terra das Alagoas.

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