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Educação intercultural em religião de matriz africana na Amazônia PDF

12 Pages·2016·0.39 MB·Portuguese
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101 Educação intercultural em religião de matriz africana na Amazônia: contribuições para uma Pedagogia Decolonial João Colares da Mota Neto* Resumo O artigo pretende refletir sobre as relações entre o pensamento decolonial e o campo da educação, tomando como base uma etnografia das práticas educativas interculturais desenvolvidas no cotidiano de uma religião de matriz africana na Amazônia, o Tambor de Mina. Os dados deste estudo foram obtidos por meio de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso etnográfico, no qual se realizou observação participante das práticas sociais, religiosas e educacionais do terreiro, entrevistas semiestruturadas com membros da casa, entrevistas etnográficas com entidades espirituais incorporadas em seus adeptos, descrição densa e levantamento de traços da história de vida dos sujeitos. Espera-se, a um só tempo, contribuir para o debate epistemológico centrado no cruzamento entre decolonialidade e educação, bem como discutir, a partir de elementos presentes na prática investigada, a possibilidade de construção de uma pedagogia decolonial na Amazônia que, dentre outros contributos, promova a tolerância na diversidade cultural e religiosa. Palavras-chave: Pedagogia decolonial; Educação; Tambor de Mina; Interculturalidade; Amazônia. Intercultural education in religion of African origin in Amazon: contributions to a Decolonial Pedagogy Abstract The article aims to reflect on relations between the decolonial thought and the education, based on an ethnography of intercultural education developed in the daily life of a religion of African origin in Amazon, the Tambor de Mina. Data from this study were obtained through a qualitative research, of an ethnographic case study type, with participant observation of social, religious and educational practices of the religion, semi-structured interviews with members of the house, ethnographic interviews with spiritual entities incorporated in its followers, dense description and life story of the subjects. It is expected, at the same time, contributing to the epistemological debate centered at the intersection between decoloniality and education, as well as to discuss, from elements present in the investigated practice, the possibility of building a decolonial pedagogy in the Amazon which, among other contributions, promote the tolerance in the cultural and religious diversity. Keywords: Decolonial Pedagogy; Education; Tambor de Mina; Interculturality; Amazon. Introdução societários conservadores; o racismo e o patriarcado como estruturas de poder colonial ensinadas de O campo da educação, cada vez mais geração a geração; as relações entre a educação e os teorizado em seus cruzamentos com práticas e interesses do imperialismo e do capital; o uso de processos culturais, raciais, étnicos e de gênero, tem metodologias e estratégias formativas “bancárias”, sido também problematizado, ainda que que silenciam as classes populares e favorecem a insuficientemente, por teorias e discursos que invasão cultural, entre outras questões. questionam o legado e o impacto do colonialismo, Por outro lado, dialeticamente, a educação seja no âmbito formal das instituições de ensino, das precisa ser vista não apenas como campo de políticas, do currículo, da didática, seja no contexto reprodução de estruturas de dominação colonial, mas de práticas educacionais não formais, considerando- também como um espaço de resistências, se a educação como uma teia ampla e complexa de especialmente em se tratando de educação na relações de saber-fazer-poder, que estrutura América Latina, continente que possui uma longa e simbólica e materialmente a realidade, por meio dos densa história de lutas contra o colonialismo e a valores, dos conhecimentos, das mentalidades e das colonialidade, assim como contra o capitalismo, o práticas que disseminam, produzem e reproduzem. racismo, o patriarcado e outros processos de exclusão Neste contexto, um conjunto crescente de e discriminação social. autores tem elaborado críticas contumazes à Neste cenário, trazemos para discussão o reprodução do colonialismo ou de relações chamado pensamento decolonial, como um campo neocoloniais por meio da educação, desnudando epistêmico de problematização da concepções tradicionalistas ligadas a modelos modernidade/colonialidade, que em nosso * Endereço eletrônico: [email protected] 102 João Colares da Mota Neto entendimento apresenta fecundas possibilidades de a necessidade de uma pedagogia decolonial na crítica à colonialidade na educação, assim como Amazônia, que reinvente modalidades de luta e caminhos para pensar a subversão destes padrões de insurreição contra o colonialismo e a colonialidade poder colonial. Em particular, neste texto ainda vigentes, estimulando, em contrapartida, a relacionamos o pensamento decolonial e a educação construção de um projeto de sociedade democrática, tomando como base uma etnografia realizada sobre inclusiva, autônoma, fundada no respeito às as práticas educativas interculturais de uma religião diferenças. de matriz africana na Amazônia, o Tambor de Mina. O corpus deste trabalho provém de uma O giro decolonial na América Latina pesquisa de campo já concluída, resultado de nossa dissertação de mestrado defendida no Programa de O conceito de “decolonialidade”, em suas Pós-Graduação em Educação da Universidade do derivações (pensamento, giro, inflexão decoloniais), Estado do Pará – UEPA, intitulada A Educação no tem sido desenvolvido por um conjunto de autores Cotidiano do Terreiro: Saberes e Práticas Culturais organizados em torno do Programa de Investigação do Tambor de Mina na Amazônia (MOTA NETO, da Modernidade/Colonialidade Latino-Americano, 2008). A pesquisa foi realizada entre os anos de 2006 ou simplesmente, Rede Modernidade/Colonialidade, e 2008, com abordagem qualitativa, do tipo estudo que reúne nomes como Enrique Dussel, Walter de caso etnográfico (ANDRÉ, 2005), no qual Mignolo, Aníbal Quijano, Catherine Walsh, Ramón realizamos observação participante sistemática e Grosfoguel, Santiago Castro-Gómez, Edgardo intensiva das práticas sociais, religiosas e Lander, Arturo Escobar, Nelson Maldonado-Torres, educacionais do terreiro, entrevistas entre outros. semiestruturadas com membros da casa, entrevistas Em que pese a existência de diferenças etnográficas com entidades espirituais incorporadas intelectuais na rede modernidade/colonialidade, em seus adeptos, descrição densa e levantamento de concordamos com Restrepo e Rojas (2010) quando traços da história de vida dos sujeitos. O locus do identificam seis características fundamentais que estudo foi a Casa de Mina Estrela do Oriente, constituem o projeto que defendem: 1) a distinção localizada no distrito de Benfica, no município de entre colonialismo e colonialidade; 2) a Benevides, Estado do Pará, pertencente à colonialidade como o “lado obscuro” da Mesorregião Metropolitana de Belém e à modernidade; 3) a problematização dos discursos Microrregião Belém, na Zona Fisiográfica euro-centrados e intramodernos da modernidade; 4) Bragantina. o pensamento em termos de um sistema Não obstante alguns dos dados empíricos mundializado de poder; 5) a rejeição de que seja um desta investigação já terem sido socializados em novo paradigma, apresentando-se como um outras publicações, o aspecto inovador deste ensaio é paradigma outro; 6) a aspiração de que uma inflexão refletir sobre a educação intercultural do Tambor de decolonial possa consolidar um projeto decolonial. Mina à luz do pensamento decolonial, buscando, a Quanto à diferença entre os conceitos de um só tempo, contribuir para o debate colonialismo e colonialidade, cabe esclarecer que o epistemológico centrado no cruzamento entre primeiro termo refere-se ao processo e ao aparato de decolonialidade e educação, bem como discutir, a domínio político e militar que se emprega para partir de elementos presentes nesta prática, a garantir a exploração do trabalho e das riquezas das possibilidade de construção de uma pedagogia colônias em benefício do colonizador, ao passo que a decolonial na Amazônia que, dentre outros colonialidade é um fenômeno histórico mais contributos, promova a tolerância na diversidade complexo, que se estende ao presente e designa um cultural e religiosa. padrão de poder que opera através da naturalização Além desta introdução, o texto está de hierarquias territoriais, raciais, culturais e organizado em outras três partes: inicialmente epistêmicas, possibilitando a reprodução de relações sintetizamos o significado de decolonialidade e de de dominação (RESTREPO; ROJAS, 2010). pensamento decolonial, em diálogo com autores do A respeito do par modernidade/colonialidade Programa de Investigação da presente na escritura destes autores, deve-se à ênfase Modernidade/Colonialidade Latino-Americano; em que querem dar à ideia de que a colonialidade é seguida, apresentamos dados sobre a educação constitutiva e não derivativa da modernidade, que a intercultural e a ecologia de saberes do Tambor de colonialidade é o “lado obscuro” da modernidade, Mina; por fim, à guisa de conclusão, refletimos sobre como gostam de afirmar, que o conceito emancipador Horizontes, v. 34, n. 1, p. 101-112, jan./jul. 2016 Educação intercultural em religião de matriz africana na Amazônia: contribuições para uma Pedagogia Decolonial 103 hegemonicamente contido na ideia de modernidade é Sendo esta sua origem, a concepção um mito porque não revela que ela só foi possível decolonial, como não poderia deixar de ser, revela graças à opressão colonial que impôs aos povos sua primeira face como constituída pela negação à conquistados da América Latina e de outros negação. Ela é, assim, anticolonial, não eurocêntrica, continentes subalternizados. Daí que as instituições e antirracista, antipatriarcal, anticapitalista, em seus os processos sociais atrelados ao fenômeno histórico devidos desdobramentos, e assume um da modernidade passam a ser questionados por estes enfrentamento crítico contra toda e qualquer forma autores por suas inter-relações (diretas ou indiretas, de exclusão que tenha origem na situação colonial e manifestadas ou ocultadas) na constituição da nas suas consequências históricas. Da negação à exclusão social, do racismo, da negação de direitos e negação tem surgido, assim, em sua face positiva, de modos de ser. distintas propostas de reinvenção da existência Com efeito, para Mignolo (2007), a social, do pensamento, da educação, da cultura, da modernidade é uma hidra de três cabeças, que ciência, da filosofia. simbolizam, cada qual: i) a retórica salvacionista, É exatamente isso que tem sido chamado de desenvolvimentista e a promessa do progresso, esta giro decolonial. Nas palavras de Maldonado-Torres: que é a única face visível da modernidade; ii) a colonialidade, que é um padrão de poder que (…) en primer lugar, un cambio de permaneceu mesmo após o fim da situação colonial perspectiva y actitud que se encuentra en las e que entre suas consequências estão o racismo, a prácticas y formas de conocimiento de desigualdade, a fome e o machismo, formas de sujetos colonizados, desde los inicios opressão que costumam estar deslocadas do mismos de la colonización, y, en segundo imaginário hegemônico sobre a ideia de lugar, un proyecto de transformación modernidade; iii) a decolonialidade, que é uma sistemática y global de las presuposiciones e energia de descontentamento, de desconfiança, de implicaciones de modernidad, asumido por desprendimento mobilizada por aqueles que reagem una variedad de sujetos en diálogo” ante a violência imperial. (MALDONADO-TORRES, 2007, p.160). Decolonialidade, na esteira destes autores, designa o questionamento radical e a busca de Para Maldonado-Torres (2008), o conceito superação das mais distintas formas de opressão de giro decolonial, em sua expressão mais básica, põe perpetradas contra as classes e os grupos subalternos no centro do debate a questão da colonização como pelo conjunto de agentes, relações e mecanismos de componente constitutivo da modernidade, e a controle, discriminação e negação da descolonização como uma quantidade indefinida de modernidade/colonialidade. De outra forma, estratégias e formas de contestação com vistas a uma decolonialidade refere-se ao esforço por “transgredir, mudança radical nas formas hegemônicas atuais de deslocar e incidir na negação ontológica, epistêmica poder, ser e conhecer. e cosmogônico-espiritual que foi – e é – estratégia, De outra maneira, Mignolo (2007, p. 26) fim e resultado do poder da colonialidade”, de acordo compreende o giro decolonial como “la com Catherine Walsh (2009, p. 27), o que significa, conceptualización misma de la colonialidad como nas palavras de Walter Mignolo (2007, p. 27), que a constitutiva de la modernidad”, o que significa dizer decolonialidade é uma “energia que no se deja que a perspectiva decolonial procura revelar o terror, manejar por la lógica de la colonialidad, no si cree a morte, a discriminação e o epistemicídio los cuentos de hadas de la retórica de la modernidad”. escondidos por detrás da retórica salvacionista da Trata-se de uma concepção, portanto, modernidade. marcada por uma busca persistente pela autonomia, É a partir dessa ideia que Walter Mignolo o que só pode ser entendido se tivermos em conta que (2007) sustenta que o pensamento decolonial a decolonialidade tem sido elaborada a partir das emergiu quando da fundação mesma da ruínas, das feridas, das fendas provocadas pela modernidade/colonialidade, como sua contrapartida, situação colonial. Desse modo, é a partir da dor fato ocorrido nas Américas com o pensamento existencial, da negação de direitos (incluindo os mais indígena e o afro-caribenho, nos séculos XVI e XVII, elementares, como o direito à vida), da submissão de considerado pelo autor como o primeiro momento da corpos e formas de pensamento, da interdição a uma genealogia deste pensamento. educação autônoma que nasce a concepção O segundo momento, conforme Mignolo, decolonial. ocorreu na Ásia e na África, nos séculos XVIII e Horizontes, v. 34, n. 1, p. 101-112, jan./jul. 2016 104 João Colares da Mota Neto XIX, não relacionado com o pensamento decolonial pensamiento mundial (MALDONADO- nas Américas, mas como a resposta da reorganização TORRES, 2008, p. 70). da modernidade/colonialidade do império britânico e do colonialismo francês. O pensamento decolonial, desse modo, pode O terceiro momento, em sua análise, teve ser entendido como a dimensão gnosiológica e lugar na interseção dos movimentos de epistemológica contida na ideia de decolonialidade, descolonização na África e Ásia, concorrentes com a ou seja, como um conjunto de práticas epistêmicas de Guerra Fria e a liderança ascendente dos Estados reconhecimento da opressão, mas, sobretudo, como Unidos e da União Soviética. E é após a Guerra Fria um paradigma outro de compreensão do mundo, que o pensamento decolonial começa a traçar sua interessado em revelar, e não esconder, as própria genealogia, conforme Mignolo (2007). contradições geradas pela Observamos, assim, que a genealogia do modernidade/colonialidade, em diálogo crítico com pensamento decolonial proposta por Mignolo as teorias europeias, mas elaborado, estabelece que as produções intelectuais dos fundamentalmente, a partir de uma perspectiva não integrantes da rede modernidade/colonialidade são eurocêntrica de mundo, atenta às realidades vividas herdeiras diretas dos pensamentos de resistência pelas populações periféricas e aos seus indígena e afro-caribenho que se desenvolveram na conhecimentos, às suas culturas e às suas estratégias América Latina. Isto implica considerar que desde a de luta. implantação da matriz colonial de poder tem havido De acordo com Mignolo (2007), é preciso uma fecunda prática epistêmica decolonial, ainda que traçar uma genealogia do pensamento decolonial, no uma reflexão mais sistemática sobre o giro sentido de recuperar, na história das populações e decolonial seja recente, por volta dos anos 90 do culturas colonizadas, estas práticas epistêmicas século XX em diante, quando começa a se articular decoloniais, ou seja, conhecimentos que surgiram os principais conceitos que desembocarão no como contrapartida e resistência à matriz colonial de programa de investigação da poder, desde o início do processo colonizador, mas modernidade/colonialidade latino-americano. que foram soterrados pelo eurocentrismo Neste mesmo sentido, Maldonado-Torres epistemológico. Segundo este autor, a genealogia do (2008) entende que o giro decolonial como uma pensamento decolonial não se limita a indivíduos, a mudança de atitude que confronta o colonialismo em intelectuais, mas também considera movimentos alguma de suas formas é talvez tão velho como o sociais e instituições que gestam em seu interior a mundo colonial mesmo, e que esta atitude decolonialidade nas esferas do saber, do existir e do contestatória tem inspirado distintos projetos poder. É assim que ele inclui nesta genealogia nomes decoloniais em vários momentos da modernidade. como os de Mahatma Gandhi, W. E. B. Dubois, Juan No entanto, assim como Mignolo, Maldonado-Torres Carlos Mariátegui, Amílcar Cabral, Aimé Césaire, afirma que é somente no século XX que estes Frantz Fanon, Fausto Reinaga, Vine Deloria Jr., projetos decoloniais começaram a se encontrar e Rigoberta Menchú, Gloria Anzaldúa, além do chegaram a criar uma consciência global sobre a Movimento Sem-Terra brasileiro, os zapatistas em relevância do projeto inacabado da descolonização. Chiapas, os movimentos indígenas e afros na Bolívia, no Equador e na Colômbia, o Fórum Social Mundial (…) el giro des-colonial se trata pues de una e o Fórum Social das Américas (MIGNOLO, 2007). revolución en la forma en que variados Defendemos a inclusão, nesta relação sujetos colonizados percibían su realidad y necessariamente incompleta, dos nomes de Paulo sus posibilidades tras la caída de Europa en Freire e Orlando Fals Borda, que contribuíram la Segunda Guerra Mundial. Ya las bases del significativamente, a partir dos movimentos da giro des-colonial estaban planteadas de educação popular e das ciências sociais críticas, para antemano en el trabajo de intelectuales a constituição de uma concepção decolonial na racializados, en tradiciones orales, en América Latina1. historias, canciones, etc., pero, gracias a Este conjunto de intelectuais, ao reconhecer eventos históricos particulares, se globaliza que o fim do colonialismo não significou a supressão a mitad del siglo XX. De ahí en adelante das relações desiguais de poder originadas na puede decirse que se planteó un giro, ya no situação colonial, que foram ressignificadas no sólo al nivel de la actitud de sujetos o de capitalismo e na colonialidade global, defendem que comunidades específicas, sino al nivel del devemos passar por uma segunda descolonização, Horizontes, v. 34, n. 1, p. 101-112, jan./jul. 2016 Educação intercultural em religião de matriz africana na Amazônia: contribuições para uma Pedagogia Decolonial 105 que complete a primeira, e que estenda a social, e já que as ciências humanas e sociais, bem emancipação para um nível mais amplo que o como as filosofias modernas, estão largamente meramente jurídico-político, incluindo a economia, a comprometidas com uma visão dicotômica e fechada ciência, a igualdade racial e de gênero, a educação e de mundo – que Boaventura de Sousa Santos (2002) a criação de novas formas de sociabilidade e de chamaria de razão indolente –, os intelectuais da rede interação com as pessoas, as culturas e a natureza. É têm procurado essa linguagem fora dos paradigmas a esta segunda descolonização que se refere, acadêmicos tradicionais, em diálogo tanto com precisamente, o conceito de decolonialidade2. Na formas não ocidentais de conhecimento, quanto com explicação de Castro-Gómez e Grosfoguel (2007, p. novas teorias da complexidade. 17): Portanto, o diálogo com formas não ocidentais de conhecimento, como a sabedoria La primera descolonialización (iniciada en indígena e africana, por exemplo, é impulsionado el siglo XIX por las colonias españolas y tendo em vista não uma etnografia das diferenças, seguida en el XX por las colonias inglesas y mas uma aprendizagem mútua que conduza a uma francesas) fue incompleta, ya que se limitó a outra maneira de pensar o mundo, uma epistemologia la independencia jurídico-política de las de fronteira, elaborada a partir da interlocução crítica periferias. En cambio, la segunda entre modos distintos de conceber o real. descolonialización – a la cual nosotros É a partir desta perspectiva que buscaremos aludimos con la categoría decolonialidad – refletir, a seguir, sobre as práticas educacionais do tendrá que dirigirse a la heterarquía de las Tambor de Mina. múltiples relaciones raciales, étnicas, sexuales, epistémicas, económicas y de A educação no Tambor de Mina: género que la primera descolonialización interculturalidade e ecologia de saberes dejó intactas. Como resultado, el mundo de comienzos del siglo XXI necesita una O Tambor de Mina, também chamado decolonialidad que complemente la simplesmente de Mina, é uma religião nascida no descolonización llevada a cabo en los siglos Nordeste brasileiro, mais precisamente no Maranhão, XIX y XX. Al contrario de esa e posteriormente recriada na Amazônia, onde descolonialización, la decolonialidad es un adquiriu traços particulares da cultura e sociedade proceso de resignificación a largo plazo, que locais. Segundo Ferretti (2000), é também a no se puede reducir a un acontecimiento denominação mais difundida das religiões afro- jurídico-político. brasileiras no Maranhão e na Amazônia, sendo que a palavra “tambor” deriva da importância do No excerto acima, Castro-Gómez e instrumento homônimo nos rituais de culto e “mina” Grosfoguel utilizam uma palavra comumente dos negros da Costa da Mina, nome dado aos presente na literatura decolonial, a heterarquia, para escravos procedentes da costa situada a leste do dar conta da realidade complexa que marca tanto a Castelo de São Jorge de Mina, na atual República do colonialidade, quanto a decolonialidade. Buscando Gana, trazidos da região das Repúblicas do Togo, ser um “paradigma Outro”, a perspectiva decolonial Benin e Nigéria e que eram conhecidos como negros procura superar as abordagens reducionistas e mina-jejes e mina-nagôs3. verticalizadas tão fortemente presentes nas ciências O processo histórico de formação do Tambor modernas e, em particular, nas ciências sociais. Já de Mina, a exemplo de outras denominações das não interessa a eles dar primazia ou ao sujeito, ou às religiões afro-brasileiras, constitui-se a partir de uma estruturas; ao desejo, ou ao poder; à economia, ou à confluência de tradições culturais, religiosas, étnicas cultura; à classe social, ou à raça e ao gênero; à e linguísticas, o que ajuda a entender, em parte, a sociedade, ou à natureza. Interessa, ao contrário, característica intercultural das práticas educativas entender como o colonialismo e a colonialidade que se desenvolvem no espaço do terreiro afetaram todos estes níveis da vida social e quais são pesquisado. suas inter-relações reais e potenciais. Além da combinação de tradições de É neste sentido que Castro-Gómez e diversas nações africanas, das quais a jeje (originária Grosfoguel (2007) afirmam que a rede dos negros escravos vindos de Daomé, atual modernidade/colonialidade procura por uma República Popular do Benin) e a nagô (do povo linguagem que expresse a complexidade da vida sudanês, habitante da região de Ioruba, na Nigéria) Horizontes, v. 34, n. 1, p. 101-112, jan./jul. 2016 106 João Colares da Mota Neto não são as únicas, mas são as mais expressivas, o Não sendo nosso objetivo aprofundar a terreiro pesquisado incorpora elementos do descrição histórica e antropológica do Tambor de Catolicismo, da Umbanda, do Candomblé, do Mina, mas tão somente destacar o quadro complexo, Terecô4, da Pajelança, do Kardecismo, uma plural e híbrido em que a religião tem desenvolvido característica sincrética já exaustivamente analisada suas práticas, afirmamos que o Tambor de Mina na literatura antropológica sobre as religiões de opera uma ecologia de saberes (SANTOS, 2006), na matriz africana. medida em que um conjunto vasto de conhecimentos Neste sentido, Roberto Motta (1993) de várias matrizes étnicas e culturais está presente na comenta que Arthur Ramos, célebre estudioso das sua formação histórica, na ritualística, no panteão religiões afro-brasileiras, distinguiu sete tipos de cultuado e nos processos educativos cotidianos de sincretismo, desde o puramente africano, formação dos adeptos. Em função disso, analisamos denominado Fon-Iorubá (referente à interação jeje- que a educação do Tambor de Mina caracteriza-se nagô) até o complexo modelo Fon-Iorubá- como intercultural, conceito que pressupõe, Mulçumano-Banto-Ameríndio-Espírita-Católico- conforme Santos e Meneses (2010, p. 10), “o Teosofismo, modelo este que se aproxima da casa de reconhecimento recíproco e a disponibilidade para culto investigada. enriquecimento mútuo entre várias culturas que Quando falamos especificamente dos cultos partilham um dado espaço cultural”. afro-brasileiros do Pará, incluindo-se a Casa de Mina Na área da educação, a interculturalidade Estrela do Oriente, os elementos ameríndios tem sido definida como: transparecem com maior evidência tanto no conjunto de crenças, quanto nos ritos e nas práticas religiosas. (...) um enfoque que afeta a educação em A Mina, no contato com a pajelança, abre-se para todas as suas dimensões, favorecendo uma entidades5 pertencentes às matas e às águas dinâmica de crítica e autocrítica, amazônicas. Além disso, a existência de sessões de valorizando a interação e comunicação cura xamânica em determinados terreiros de Mina recíprocas, entre os diferentes sujeitos e paraense, entre os quais o terreiro que estudamos, grupos culturais. [...] A interculturalidade atesta o sincretismo afro-ameríndio próprio desse orienta processos que têm por base o experimento religioso. Nos rituais, elementos de reconhecimento do direito à diferença e a origem indígena manifestam-se, destacando-se a luta contra todas as formas de discriminação presença de objetos, como cigarro de tauari e e desigualdade social. Tenta promover cachaça; a cura por sucção e retirada de animais de relações dialógicas e igualitárias entre corpos enfeitiçados; os banhos e remédios com pessoas e grupos que pertencem a universos ingredientes da fauna e flora amazônicas. culturais diferentes, trabalhando os conflitos Referente à “tradução” amazônica dos cultos inerentes a esta realidade (CANDAU; religiosos vindos do Maranhão, Carneiro (1959, p. KOFF, 2006, p. 475). 16) afirma que na Amazônia se encontra, “além dos cigarros de tauari e das espadas, figuras de pajelança, (...) em nível das práticas educacionais, a como os mestres Carlos, Marajó e Paroá, a palmeira perspectiva intercultural propõe novas Jarina transformada em divindade alegre e estouvada estratégias de relação entre sujeitos e entre e os voduns e orixás trazidos do Maranhão”. Vicente grupos diferentes. Busca promover a Salles (1969) denomina de sincretismo afro- construção de identidades sociais e o ameríndio para a coexistência da pajelança e da reconhecimento das diferenças culturais. magia africana no universo religioso do Pará. Mas, ao mesmo tempo, procura sustentar a Este sincretismo afro-ameríndio, no plano do relação crítica e solidária entre elas panteão dos cultos do Pará, foi alvo de investigações (FLEURI, 2001, p. 49). de Figueiredo (1994, p. 79), que afirma que encontramos nesses cultos ofídios, cetáceos, Dos conceitos destes autores, depreendemos quelônios, crocodíleos, psitacídeos, electroforídeos e que uma educação pode ser chamada de intercultural outras espécies da fauna amazônica, que habitam as quando: a) possibilita o diálogo entre sujeitos e florestas e o fundo dos rios, ao lado de índios, culturas distintas; b) enfatiza a comunicação mais caboclos, príncipes e marinheiros integrados ao que a transmissão; c) provoca a crítica em torno das fabulário popular da Amazônia e que povoam as desigualdades e discriminações relacionadas a “encantarias”. fatores culturais e identitários; d) afirma as Horizontes, v. 34, n. 1, p. 101-112, jan./jul. 2016 Educação intercultural em religião de matriz africana na Amazônia: contribuições para uma Pedagogia Decolonial 107 identidades socioculturais de grupos historicamente e frequentemente pelos mais velhos, nos exige que excluídos. seja valorizada a figura destes guardiões de tradições, No terreiro pesquisado, as práticas pois são os responsáveis por manter a vitalidade da educacionais se aproximam desta caracterização, na memória coletiva, contar os mitos de origem, venerar medida em que promovem: os antepassados, inclusive recuperando sabedorias e a) a aprendizagem do conjunto religioso sincrético, práticas que foram soterradas pelo epistemicídio ensinando formas de interação entre divindades, provocado pela modernidade/colonialidade. linguagens e rituais; Com Goff (1992, p. 429), a respeito das b) o compartilhamento de saberes oriundos de sociedades sem escrita, poderíamos chamar estes diversas fontes históricas, geográficas e étnicas, sujeitos de homens-memória, que são verdadeiros particularmente através do aconselhamento, prática especialistas da memória, “’genealogistas’, educativa em que os saberes ancestrais dos guardiões dos códices reais, historiadores da corte, encantados e da religião são socializados na ‘tradicionalistas’”, com o importante papel de manter comunidade; a coesão do grupo. Consideramos que os sacerdotes c) o diálogo e o respeito ao ser humano, da Mina assumem o papel de homens-memória, independentemente de suas idiossincrasias culturais, cabendo-lhes a tarefa de agentes educativos na posto que a base moral da religião está ancorada na tradução e socialização dos códigos culturais prática da caridade e nos valores de reciprocidade, provenientes da tradição. respeito, cuidado e humildade; Em função do Tambor de Mina ser uma d) a aprendizagem via experiência religiosa direta, ou religião profundamente sincrética, constituída a uma educação pela prática ritual, reduzindo-se o partir da convergência de diferentes tradições papel educativo da transmissão, logo, da hierarquia (ibéricas, ameríndias, africanas), os saberes dessa entre os que sabem e os que não sabem; religião são marcados por traços de mestiçagem e) o respeito a indivíduos pertencentes a grupos cultural, no plano do panteão, da ritualística, da social e culturalmente excluídos, como as mulheres, doutrina e da linguagem. Os guias espirituais e os os idosos, as crianças, os índios, os negros, os sacerdotes, como propulsores desses processos de mulçumanos, os homossexuais, não só aceitos na mestiçagem cultural, podem também ser religião, como representados por entidades ou caracterizados como mediadores culturais (passeurs divindades; culturels), termo cunhado pelo historiador Serge f) a aprendizagem não somente dos médiuns, mas Gruzinski (2001, 2003), para ser usado como também dos encantados, entendidos como seres da instrumento analítico dos processos de intercâmbio natureza em processo contínuo de formação, razão cultural. pela qual desenvolvem sua linguagem e O pai de santo, ao ser considerado o guardião espiritualidade na relação com os outros. das tradições da Mina, assume a liderança não Os saberes que circulam no terreiro, neste somente espiritual, mas educacional no terreiro, contexto de educação intercultural, são de diferentes responsável pela socialização dos saberes das matizes: saberes da prática religiosa e ritual, gerações anteriores, estabelecendo uma mediação ensinamentos morais, saberes ancestrais dos entre diferentes culturas. Os encantados e as encantados, narrativas míticas, fundamentos divindades, em suas narrativas mitológicas, religiosos (preservados pelo uso do segredo) e todo estabelecem complexas e intensas ligações entre tipo de fórmulas, receitas, gramáticas e códigos tempos e espaços históricos diversos. A África provenientes das tradições históricas do Tambor de mitológica, a Europa e a Ásia de nobres e princesas, Mina na Amazônia. a América Latina da época escravocrata e o Brasil No Tambor de Mina, os saberes da tradição indígena e rural são cenários cantados, narrados e são socializados de uma geração a outra nas relações ensinados no cotidiano dos terreiros de Mina. de comunicação direta, nas conversas e no convívio Dessa maneira, observamos nas diário, utilizando-se de narrativas orais que veiculam manifestações de educação no terreiro que esses as memórias coletivas da religião e do povo de santo. universos culturais se entrecruzam no cotidiano da Nessa cultura educativa, a ideia de experiência é casa, dimensionando a educação intercultural cujos fundamental, uma vez que a sabedoria é adquirida na argumentos estamos tentando desenvolver. prática religiosa cotidiana, ao sabor do tempo. Para Tramonte (2004), sob o prisma da Neste sentido, os saberes ancestrais do intercultura, as práticas das religiões afro-brasileiras Tambor de Mina, guardados pelos mais experientes apresentam-se como um campo híbrido de Horizontes, v. 34, n. 1, p. 101-112, jan./jul. 2016 108 João Colares da Mota Neto construção de identidades. Esse campo possibilita a se de uma manifestação eminentemente experiencial criação e circulação de saberes interculturais, que são de ensino-aprendizagem, realizada de modo pouco preservados na religião em decorrência da verbalizado, ao longo da experiência ritual de um importante atuação dos sacerdotes e demais adeptos, adepto. Essa educação conduz os fiéis para a os quais, por meio da oralidade, das narrativas aprendizagem de movimentos, atitudes, dizeres, mitológicas, do aconselhamento e dos trabalhos de fórmulas que constituem a complexa ritualística do desenvolvimento, socializam saberes e tradições Tambor de Mina. Os rituais, nesse sentido, devem ser registrados na memória coletiva do povo de santo. entendidos no contexto da ação simbólica, capazes de Desse modo, os saberes da tradição fornecem transmitir códigos culturais importantes na formação elementos aos membros da comunidade do terreiro dos adeptos. Os rituais educam os indivíduos para a constituição de sua identidade cultural e também para a construção de uma determinada religiosa, com seu modo próprio de ser, pensar e agir performance religiosa, permitindo-lhes internalizar sobre o mundo. A memória não apenas registra os gestos e dizeres. É, fundamentalmente, por meio episódios do passado, mas ensina, por meio dos dessa manifestação de educação que os médiuns se saberes da tradição, formas de agir e explicar o preparam para o canto, o toque e a dança, mundo atual. Os sacerdotes e os encantados são os configurando, assim, uma dimensão estética da principais responsáveis por resguardar tais saberes. educação. Além disso, esta educação, por rememorar Finalmente, quanto aos trabalhos de sabedorias ancestrais, possibilita também a desenvolvimento, consistem na formação religiosa resistência e sobrevivência da cultura afro-brasileira, (ritual, doutrinária, espiritual) dos médiuns, a despeito do racismo, da intolerância religiosa e da ensinando-se, de uma maneira mais sistemática que discriminação estrutural contra negros e classes as outras formas, o chamado “ABC da Mina”: populares em nosso país. tradições, doutrinas, fundamentos, formas de Na etnografia realizada, constatamos que a execução ritual, valores culturais, entre outros educação intercultural no terreiro realiza-se sob saberes importantes para a formação de um médium. muitos formatos: na experiência diária, nos rituais, A despeito da formação mediúnica não ocorrer nas relações sociais, nas rodas de conversa, nos unicamente no terreiro, em função de os médiuns trabalhos de desenvolvimento mediúnico e em seguirem um itinerário formativo ao longo de sua muitos outros espaços. Algumas das principais vida, na Casa de Mina Estrela do Oriente realizam-se manifestações de educação observadas foram: sessões de desenvolvimento e sessões astrais, educação moral e a prática do aconselhamento; a especialmente dedicadas à educação dos médiuns, educação pela prática ritual; os trabalhos de nos aspectos da incorporação, do comportamento, do desenvolvimento dos médiuns e a doutrinação dos desempenho ritual e da vidência. encantados. Em relação à primeira manifestação, À guisa de conclusão: a necessidade de concluímos que a socialização dos valores cultivados construção de uma Pedagogia Decolonial na ao longo da história do Tambor de Mina constitui Amazônia uma das mais importantes práticas de formação dessa religião, possibilitando que os seus adeptos A Amazônia, com uma área que ultrapassa compartilhem uma base moral ancorada na prática da cinco milhões de Km², o equivalente a 61% do caridade e nos valores da reciprocidade, respeito, território brasileiro, é uma região mundialmente cuidado e humildade. Os valores de respeito à conhecida por sua biodiversidade, ilustrada pela natureza e ao ser humano e o tipo de relação dialógica enorme quantidade de espécies animais e vegetais, construída pelos adeptos no cotidiano do terreiro distribuídas em ecossistemas florestais, terrestres e levam-nos a identificar uma dimensão ética e aquíferos. No entanto, frequentemente, é ignorada a ecológica das suas práticas educativas. Vimos que o expressiva sociodiversidade da Amazônia, que diálogo está presente na educação do terreiro por possui mais de 20 milhões de habitantes que meio de uma prática fundamental para o repasse dos compartilham um manancial milenar de culturas, saberes da tradição: a prática do aconselhamento, saberes, imaginários, mitologias e manifestações entendida como narrativa oral que conduz religiosas e artísticas. importantes saberes da religião: os valores, os Esta negação da sociodiversidade amazônica fundamentos e a mitologia. está relacionada ao forte processo colonizador aqui Quanto à educação pela prática ritual, trata- vivido, centrado na exploração da mão de obra Horizontes, v. 34, n. 1, p. 101-112, jan./jul. 2016 Educação intercultural em religião de matriz africana na Amazônia: contribuições para uma Pedagogia Decolonial 109 nativa; na destruição dos ecossistemas locais, estes pessoas, vividas num mundo regido pela estrutura que, para além de uma manifestação da natureza, colonial” (WALSH, 2009, p. 26). estão em relação inquebrantável com as culturas De outro modo, para Díaz (2010), uma ancestrais; na interdição do corpo do indígena, do pedagogia decolonial deve assumir uma negro, do camponês, do ribeirinho, do quilombola; compreensão crítica da história, reposicionar práticas na proibição das religiosidades e mitologias de educativas de caráter emancipatório e se descentrar grupos étnicos dominados; na reprodução de uma da perspectiva epistêmica colonial, abrindo-se a educação colonizadora que promoveu epistemicídio outras abordagens que afetem não somente os e violência simbólica contra as culturas nativas. conteúdos a serem ensinados, mas também suas Este quadro histórico nos exige a construção metodologias e apostas didáticas. de uma pedagogia que recupere estes saberes No caso do Tambor de Mina, a educação negados, que parta das memórias de resistência dos praticada possibilita a sobrevivência, de geração a grupos subalternos amazônicos, que incorpore e geração, dos valores civilizatórios africanos, que se valorize as diferenças étnicas, raciais, de gênero, hibridizaram, como vimos, com outras tradições religiosas oprimidas pela culturais. modernidade/colonialidade, que construa formas de Neste sentido, cabe destacar, com Oliveira pensar o mundo em diálogo com as sabedorias dos (2003), que na Diáspora africana o que vem para o grupos originários amazônicos, que estimule formas Brasil não é a estrutura físico-espacial das de vida e sociabilidade que respeitem o equilíbrio instituições nativas africanas, mas os valores e sistêmico dos ecossistemas locais. princípios negro-africanos, denominados por este De outro modo, é preciso construir uma autor de aspectos civilizatórios. Diz que, ao mesmo pedagogia que parta das práticas epistêmicas tempo em que significou ruptura violenta com os decoloniais dos grupos oprimidos de nossa região, valores civilizatórios africanos, a diáspora serviu práticas que têm sido construídas, como vimos no para que esses valores se espalhassem mundo afora, início deste texto, desde a Conquista, como sua não por proselitismo dos negros, mas pela imposição resposta, como resistência, como contrapartida. Isso artificial de viverem em terras estrangeiras. E foi no é, ainda no período colonial, os segmentos seio da religião afro-brasileira – o autor refere-se violentados empreenderam uma resistência não só particularmente ao Candomblé – que tais aspectos política, mas também cultural, simbólica, civilizatórios podem ser melhor percebidos. educacional contra o colonialismo e a lógica da Concordamos com o autor e afirmamos que colonialidade, buscando preservar, evidentemente de a educação intercultural do Tambor de Mina reaviva maneira dinâmica e histórica, os núcleos centrais de valores civilizatórios como a circularidade, a sua ancestralidade, de sua cosmovisão. oralidade, a corporeidade, a memória, a Defendemos a ideia de que o Tambor de ancestralidade, a musicalidade, a solidariedade, a Mina, por meio de sua educação intercultural, ecologia, a ética, integrando o saber à experiência, a contribuiu significativamente para a sobrevivência e mente ao corpo, a cultura à natureza, a diferença à atualização das práticas epistêmicas decoloniais de igualdade, questões que nos parecem absolutamente negros e indígenas no Brasil e na Amazônia, fundamentais para o fortalecimento de uma constituindo-se, portanto, como um importante pedagogia decolonial na Amazônia que, dentre aporte à construção de uma pedagogia decolonial em outros contributos, promova a tolerância na nossa região. diversidade cultural e religiosa. De acordo com Catherine Walsh (2009), as Importante também chamar a atenção para a pedagogias decoloniais dialogam com os forte marca intercultural na educação do Tambor de antecedentes crítico-políticos dos grupos subalternos Mina, que, ao permitir uma confluência de tradições, ao partir de suas lutas e de sua práxis de orientação com destaque para as culturas africanas e indígenas, decolonial. São pedagogias que se esforçam por dimensiona-se como uma ferramenta de resistência à transgredir a negação do ser, do saber e do poder dos colonialidade do saber promovida pela grupos colonizados. Para esta autora, as pedagogias modernidade/colonialidade. Segundo Carlos Walter decoloniais devem ser entendidas para além do Porto-Gonçalves (2005), a colonialidade do saber sistema educativo, do ensino e da transmissão do nos revela, para além do legado de desigualdade e saber, mas como “processo e prática sociopolíticos injustiça sociais profundos do colonialismo e do produtivos e transformadores assentados nas imperialismo, que “há um legado epistemológico do realidades, subjetividades, histórias e lutas das eurocentrismo que nos impede de compreender o Horizontes, v. 34, n. 1, p. 101-112, jan./jul. 2016 110 João Colares da Mota Neto mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e mulheres. A colonialidade do ser, segundo das epistemes que lhes são próprias” (PORTO- Maldonado-Torres (2007), representa a negação do GONÇALVES, 2005, p. 10). direito à existência e à liberdade dos grupos Urge, assim, utilizando terminologia de colonizados. Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses O giro decolonial, desse modo, articulado a (2010), construir e dar visibilidade às Epistemologias um projeto pedagógico decolonial, é também um giro do Sul, que, contrapondo-se à epistemologia humanístico, ancorado, segundo Maldonado-Torres dominante, ocidental, moderno/colonial, buscam (2007), no reconhecimento de todo ser humano como reconhecer as formas de conhecimento de membro real de uma espécie. Como isto não se dá populações historicamente excluídas. Com este fora das relações sociais, claro está que a construção propósito, consideramos que estudar a educação no deste novo humanismo implica na luta contra todas terreiro, seus saberes e suas práticas, contribui para as formas de exploração levadas a efeito pelo sistema dar visibilidade a lógicas, gramáticas, conhecimentos moderno/colonial, sobretudo o capitalismo, o e experiências que têm sido desprezados não só pela patriarcado e o racismo. ciência, de uma maneira geral, mas pela Pedagogia, Para finalizar, cabe destacar que o Tambor de especificamente. Mina é apenas uma dentre muitas outras práticas É neste sentido que construir e fortalecer epistêmicas decoloniais que, ao resistir à epistemologias do Sul a partir dos conhecimentos colonialidade, constituiu seu próprio modo de viver, subalternizados pela modernidade/colonialidade, tais pensar o mundo e entrar em comunhão com o cosmos como os que temos identificado no Tambor de Mina, e a natureza. É urgente que pesquisadores da ajuda a romper com o autoritarismo da ciência educação se debrucem sobre as culturas ancestrais de dominante, engendrando formas de conhecimento indígenas, africanos, ribeirinhos, quilombolas e mais plurais, democráticas, ecológicas e outros grupos ancestrais amazônicos com vistas a interculturais. Ajuda, também, a promover a aprender e apreender elementos que apontem para tolerância com os diferentes e a construção de uma relações sociais e formas de sociabilidade mais éticas sociedade solidária e inclusiva, com espaço aberto e solidárias. Porém, sem ignorar os processos de para o diálogo intercultural e inter-religioso. invasão cultural e de alienação que também É o próprio Santos (2006) quem diz que constituem estas culturas, e como forma de evitar o perspectivas interculturais têm possibilitado o populismo epistemológico segundo o qual estas reconhecimento de uma diversidade de saberes culturas e sabedorias não devem ser modificadas, alternativos à ciência moderna ou que com esta se estimulamos, ao contrário, um processo pedagógico articula em novas configurações de conhecimentos. dialógico, intercultural, baseado numa ecologia de Sabendo-se da dimensão intercultural das práticas saberes, que mutuamente contribua para o educativas e religiosas do Tambor de Mina, reposicionamento crítico das sabedorias ancestrais e consideramos que a legitimação de suas matrizes de dos conhecimentos científicos (pós/trans)modernos. conhecimento ajuda a construir as epistemologias do Sul a partir das quais surja uma Pedagogia cada vez Notas mais aberta ao diálogo com o Outro, uma pedagogia, enfim, decolonial. 1 Para aprofundamento da relação entre as obras Mas, para além do aspecto epistemológico, a destes educadores populares e o pensamento educação do Tambor de Mina, pelos valores que decolonial, remetemos o leitor ao nosso livro “Por ensina (como o cuidado, a solidariedade, a uma Pedagogia Decolonial na América Latina: humildade) e pelo acolhimento e respeito a grupos reflexões em torno do pensamento de Paulo Freire socialmente excluídos (como negros, homossexuais, e Orlando Fals Borda” (MOTA NETO, 2016). indígenas, mulheres), configura-se como uma prática 2 Restrepo e Rojas (2010) reforçam as diferenças ética de respeito ao Outro e de valorização da entre os conceitos de descolonização (a primeira alteridade negada. descolonização, nos termos de Castro-Gómez e A educação do Tambor de Mina, desse Grosfoguel) e decolonialidade. Por descolonização modo, contribui para a crítica da colonialidade do ser, se indica um processo de superação do que também engendra a modernidade/colonialidade, colonialismo, geralmente associado às lutas pela negação das corporalidades dos oprimidos, por anticoloniais no contexto de estados concretos, ao sua profunda desumanização, pelo racismo e pelo passo que decolonialidade se refere ao processo que patriarcado que inferiorizam negros, índios e busca transcender historicamente a colonialidade, Horizontes, v. 34, n. 1, p. 101-112, jan./jul. 2016

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Educação intercultural em religião de matriz africana na Amazônia: contribuições para . e cosmogônico-espiritual que foi – e é – estratégia,.
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