CRISTINA ALEXANDRA MONTEIRO DE MARINHO TEATRO FRANCES EM PORTUGAL: ENTRE A ALIENAÇÃO E A CONSOLIDAÇÃO DE UM TEATRO NACIONAL (1737-1820) Dissertação de doutoramento em Literatura Comparada apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto FACULDADE DE LETRAS DO PORTO 1998 Ao meu filho Gonçalo, meu Rei Sol, coração do meu coração. NOTA DE RECONHECIMENTO Os meus agradecimentos ao Professor Doutor António Ferreira de Brito pela orientação desta tese. Ao Professor Doutor Rui Centeno, ao Professor Doutor Luís Oliveira Ramos e ao Professor Doutor Gomes da Torre agradeço a confiança que lhes mereci. Ao meu antigo mestre, Professor Doutor Mário Vilela, estou grata pelos conselhos amigos e pela solidariedade que foi decisiva para o sucesso deste esforço. Devo agradecer igualmente a colaboração mais do que eficiente da Dr3 Isabel Pereira Leite, bibliotecária da nossa Faculdade, de quem inesperadamente recebi uma amizade valiosa. Ao conservador da Biblioteca do Arsenal em Paris, M. Jean-Charles Garreta, mais do que a gratidão pela pontualidade e inteligência dos seus serviços, a minha admiração pelo seu raro profissionalismo. Foram também fundamentais o auxílio da Dr8 Maria de Fátima Tavarela Veloso, bibliotecária da Biblioteca Pública Municipal do Porto, as atenções do Dr. Paulo Barata, responsável pela área teatral da Biblioteca Nacional, a prontidão da Sra. Dona Ana Serrano dos Reservados da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra e o interesse doD r. José Carlos Alvarez, director de estudos do Museu Nacional de Teatro. As diligências da Dr^a Maria Beatriz Marques da Faculdade de Letras de Coimbra foram de grande utilidade e os diálogos com a colega, LV Maria Luísa Malato Borralho, sempre alargaram os meus horizontes. Devo muito também à minha professora de sempre, Madame Martine Rebello de Carvalho, fonte de incentivo constante. À Madame Bernardette Poisson Coutinho, que me ensinou na infância a música da língua francesa, agradeço a semente da sua poesia. A compreensão do Sr. Valente da secção de microfilmagem da Biblioteca Pública Municipal do Porto resolveu com bom senso e rara simpatia dificuldades que teriam engendrado inúteis atrasos. À Reitoria da Universidade do Porto e à Fundação Calouste Gulbenkian, instituição a que desde há muito me ligo, o meu agradecimento pelas bolsas concedidas. Importante foi, ainda, a competente ajuda informática e de revisão de texto prestada pelaD r3 Maria Adelaide Gil. Finalmente, the last but not the least, ao meu colega Nuno Pinto Ribeiro, a felicidade dos bastidores, depois da grande comédia do mundo. 5 I INTRODUÇÃO « (...) Não podias ficar presa comigo à pequena dor que cada um de nós traz docemente pela mão a esta pequena dor à portuguesa tão mansa quase vegetal (...)»(!) Quando, em 1912, Luís Barreto concorria à terceira cadeira da Escola de Arte de Representar com uma tese que se interrogava acerca da existência de um teatro português (2) ; dava continuidade a uma linhagem crítica, hoje considerada miserabilista, mas muito persistente, sobre a literatura dramática portuguesa.Vítor Santos viria a insistir sobre a única «cintilação» de O Fidalgo Aprendiz no teatro nacional, secundada talvez pela Castro no século XVI, que teria, no entanto, de esperar pela graça vicentina de Almeida Garrett para recuperar brilho (3). No mesmo sentido, António José Saraiva carrega os tons de uma paisagem desolada em que só Gil Vicente e o criador do Frei Luís de Sousa sobressaem, solitários, numa terra sem tête dramatique, em que o lirismo triste, no entender de Andrée Crabbé Rocha, foi preenchendo os vazios do «tracé discontinu et horizontal» da história do teatro português (4). Se, desde há alguns anos, se assiste a uma mudança de atitude em relação à Literatura marginalizada que atenta em múltiplas expressões literárias, para além de uma literatura dita nobre, o mesmo se vai constatando no particular domínio dramático com vista a redimensionar uma futura História do Teatro Português (5). Primeiro, só uma multifacetada história do espectáculo, e já não redutoramente do texto dramático, poderá superar uma tradição que ignora os aspectos materiais da representação, os olhares, as falas autenticamente vividas, a sua ligação quotidiana com os periódicos, afinal o colorido de que textos de dramaturgos-actores, como Shakespeare ou Molière, privilegiadamente nos falam. Em seguida, não se poderá deixar de povoar o tal céu 9 de raríssimos astros com fulgores seguramente menos impressionantes, sobretudo se a referência for a do teatro espanhol do Siglo de Oro ou a do teatro francês sob o reinado do Rei Sol, mas que garantiram, enfim, vida, até padrão de vida atado num simples cordel, alargando o quadro dessa já por si província tradicionalmente silenciada da história literária. Almeida Garrett teve, dado o seu nacionalismo romântico, grandes responsabilidades neste afunilamento crítico ao falar, em pleno século XIX, numa literatura dramática portuguesa nova, não sem passado, pior do que isso, de memória perdida, mortas umas poucas e débeis sementes antigas, lançadas em chão fértil, mas mal amadas por quem quase não deu pela sua morte. Ora, para tal moléstia sempre se buscou a droga fora, conforme notou o autor de Um Auto de Gil Vicente, e o teatro em Portugal foi sobrevivendo de superficial enxertia estrangeira, sem conseguir, portanto, a tal civilização que alimentava os teatros esplendorosos. D.Sebastião condenara o teatro nacional com o próprio Portugal, a Inquisição queimou-o com o Judeu ( cujas produções dramáticas, a par das de Gil Vicente, Garrett considera «obsoletas» e «incapazes de cena» ), o Marquês de Pombal perseguiu-o e de certa forma matou-o, no Limoeiro, com Correia Garção. O fausto aristocrático da ópera italiana, depois a mais fina das invasões francesas que electrizava plateias fracas, finalmente o Salvatério rematavam um destino de crises teatrais sucessivas, confirmado pelo abastardamento do drama histórico, triste resultado do esforço garrettiano para criar um teatro português dirigido à classe média. O conhecimento existencial, e sempre relativo, de Inglaterra e de França justificaram a glória privada da estreia deO Frei Luís de Sousa que um público alargado não saberia aplaudir na sua simplicidade de linhas clássicas, ao tempo da sua criação (6). Mais tarde, Eça de Queiroz veio a questionar as causas da nossa decadência teatral com a séria ênfase de quem sabia estar a aprofundar «os velhos motivos da pilhéria lusitana», isto é, toda uma miséria nacional. Assim, em Uma Campanha Alegre, confina a criação dramática portuguesa justamente ao Frei Luís de Sousa, num país que nunca teve génio dramático suficiente para construir um drama sobre «a observação da vida», com «sentimentos, caracteres solidamente desenhados, costumes bem postos em relevo, tipos finamente analisados, estudos concretizados numa acção (...)». Oscilando desgraçadamente entre o «tiroteio de prosas ajanotadas» a que se resume o tipicamente português drama sentimental e o petit effet de bruscos lances dramáticos, para já não falar da nacionalíssima farsa com matronas e tudo, o teatro português, na óptica queirosiana, não pode contar nem com um público de qualidade, dotado de uma mínima curiosidade intelectual e confortável 10 rendimento, nem com muitos actores de nível (7). Ramalho Ortigão sublinhará a interpretação garrettiana de que o teatro não pode prosperar onde não há civilização, porquanto é «um produto directo do meio social», reflectindo, por isso, em Portugal, o estado bruto em que se mantém a nossa burguesia que não é capaz de inspirar senão « a pequena chicana de ambições medíocres ou o episódio de uma sentimentalidade sem fé e sem paixão» (8). Já no século XX, Fialho de Almeida vem a declarar que «a aptidão dramatúrgica do escritor português é uma qualidade de excepção», já que este se desperdiça historicamente na «concepção lírica, na tirada oratória e na devaneação sentimental (...) » (9). No contexto desta geral negatividade, toma uma particular pertinência a interrogação de Luís Barreto - O teatro portuguez existe ? - a que Luiz Francisco Rebello responde, não com a evidência que muitos teimam em exigir, mas com a constatação apurada, sem preconceitos epocais, de uma «tendência» incessantemente perseguida que esta tese procurará observar e interpretar, num período determinado. Como consequência, Ribeiro Chiado ou Baltazar Dias não mais poderão ser esquecidos no limbo dos epígonos vicentinos; a produção dramática de Camões não poderá continuar a ser meramente juvenil, marginal da lírica e da épica; a grande referência dramática de D.Francisco Manuel de Melo será mais do que uma mera florescência do polígrafo. As loas, entremezes, passos, autos e sátiras, em circulação desde o século XVI, deverão ser considerados a par da nacionalização de modelos estrangeiros e de comédias lusitanas, consubstanciadas na criação de António Ferreira, Ferreira de Vasconcelos ou ainda de Sá de Miranda. A produção dramática portuguesa, depois de 1580, deverá deixar de reflectir tão só o despojamento de identidade nacional para evidenciar a fortuna de uma dramaturgia espanhola prestigiada na esfera europeia e que sobreviveu entre nós para além do domínio filipino. As tentativas de Rodrigues Lobo, O Fidalgo Aprendiz, a polémica entre o Marquês de Valença e Alexandre de Gusmão, a tradução que o Conde da Ericeira fez da Arte Poética de Boileau constituirão reacções contra certa descaracterização nacional que a alternativa francesa devia começar por combater. Correia Garção e Manuel de Figueiredo, vulgarmente lidos na perspectiva exclusiva da implantação da normatividade arcádica, afigurão-se eloquentes na sua importância teórica específica, anterior a Almeida Garrett, e António José da Silva poderá ser bem mais do que o sol setecentista, martirizado pela Inquisição. De resto, o preconceito parece ser duplo, pois não se limita à globalidade da criação dramática portuguesa, ampliando-se no desprezo académico pelo estudo da literatura portuguesa setecentista, geralmente tida como menor, desafortunadamente pós-clássica, li sonolentamente pré-romântica ( por inerência, depois, serodiamente romântica), desperdiçada em cabeleiras pouco pensantes, rendas de amores ridiculamente conventuais. Ainda, no Jornal de Letras. Artes e Ideias de Abril deste ano, a propósito de uma selecção de os dez «Livros da Vida», Vasco Graça Moura, por um lado, espantado com a ausência da poesia medieval, de Bernardim ou de Sá de Miranda, conclui que «já é menos estranho que nenhum autor do século XVIII tenha sido referido». Por outro lado, Isabel Pires de Lima considera normal que se prefira a prosa ao teatro, pois «a pobreza do texto teatral português, para além da sua própria natureza, seria explicação suficiente» (10). Na verdade, o convívio com a grandeza do teatro francês setecentista, por sua vez seduzida pelos dramaturgos espanhóis do Século de Ouro, foi convocando, no âmbito da docência da Literatura Francesa III e na vocação actual da comparatística, a necessidade de aprofundar a presença geralmente tardia de matéria dramática francesa em Portugal, qual relógio atrasado. Assumindo o desafio de investigar um objecto praticamente novo, ou corrigindo como Garrett, com um passado de abandono, agravado pela definição de balizas cronológicas entre 1737- 1820, esta tese propõe-se atravessar o tal deserto literário português de setecentos, desde a episódica tradução de Georges Dandin ou le Mari Confondu, apresentada, em Lisboa, a um diplomata inglês aí acreditado, até à Revolução Liberal, marco de ruptura com o século XVIII ideológico. Lord Tirawley - certamente o mesmo que, no dizer de José Anastácio da Cunha, em Notícias Literárias de Portugal, pouco esperava de uma nação dividida entre a fé na chegada do Messias ou de D.Sebastião... (11)- pedira uma comédia em português e Alexandre de Gusmão, imbuído de cultura parisiense, não lhe oferece uma comédia portuguesa, o que só por si pode ser significativo, explicando tratar-se de uma adaptação ao gosto português. É ainda curioso que o país, à semelhança do que acontece na comédia de D.Francisco Manuel de Melo, continue a rever-se no ridículo burguês que se quer afidalgar, maladroit, como se o estrangeirado humildemente, isto é com a consciência das proporções portuguesas, homenageasse a nobreza do inglês, desculpando- se pelo país a quem as sofisticadas roupagens emprestadas lhe assentavam mal. Sendo natural que um diplomata inglês procurasse conhecer Portugal através do teatro - Almeida Garrett quis fundar um Teatro Nacional digno, aproximável dos que coroavam a Inglaterra e a França, precisamente para que o país crescesse com ele -, é, aliás, sintomático que se lhe responda com Molière nacionalizado, evidenciando, desde logo, a importância quantitativa e qualitativa da tradução para a definição de uma cultura dramática portuguesa, ao longo de todo o século XVIII, e para além dele, não deixando, contudo, esse modo 12 alienante de afirmar a preocupação de referir os contextos nacionais, numa hesitação quase paradoxal. Ora, o entendimento da constante « de um projecto de nacionalização dramática», inerente à nossa literatura teatral, na proposta de José Oliveira Barata, em António José da Silva Criação e Realidade não cessa de sugerir itinerários múltiplos e convergentes (12). Considerando, por isso, que o obstinado esforço de consolidação de um teatro nacional foi conhecendo sucessivos obstáculos alienantes de modelos estrangeiros, cujo protagonismo, de toda a forma, só confirmava a precaridade de uma identidade propriamente portuguesa, impunha-se o estudo de tal tensão. Ao ultrapassar falsas dicotomias em que o património próprio é o que se subtrai ao valor estrangeiro, contra certa impertinência patriótica, tratava-se de aventar a possibilidade de a matriz francesa, estruturante sobretudo a partir da segunda metade do século XVIII em Portugal, e de que a esfera dramática é só uma projecção não menor de influência, ter constituído escola de identidade, quase paradoxalmente. Parece evidente que essa pedagogia, altiva bem entendido, trouxe com o melhor outros ouropéis, convidando à grosseira imitação do mais fácil, justificando que o Abade de Jazente, vários títulos de teatro de cordel e não só criticassem os exageros e até a ilegitimidade de tal veneno (13). Aceitando mesmo assim o ridículo autêntico dos francelhos e a sentida emoção do Seabra que, em Retrato de Uma Família Portuguesa de Miguel Rovisco, não sem a distância causticante de outras personagens, canta a primeira estrofe de Os Lusíadas enquanto os franceses invadiam Lisboa em 1807, é urgente que o comparatismo, pelo menos na sua essencial alienação internacional, nos devolva pelo diálogo as reais proporções do teatro português (14). Didier Souiller e Wladimir Troubetztkoy lembram que «comparer c'est voyager» (15), implicando a metamorfose de tal alargamento de horizontes que a divulgação, em palco e dans un fauteuil, de Corneille, Molière, Racine, Voltaire e de muitos outros dramaturgos, hoje quase esquecidos mas muito admirados noutros tempos, favorecia. O autor de Le Cid foi pouco traduzido no nosso século XVIII em relação ao apreciadíssimo criador de Le Tartuffe ou f Imposteur, objecto de um sem número de manipulações, e o nocturno tragediógrafo de Phèdre acompanhou aqui longamente os trilhos neoclássicos, desvendando algumas enseadas já românticas (16). De resto, a abundância teórica do período que nos ocupa, produtora também de um projecto específico de reforma teatral, no âmbito da Arcádia Lusitana, obriga a que se realize «une poétique comparée des formes, des genres ou des thèmes» (16), concretizada aqui no exame de poéticas fundamentais, discursos, prefácios, orações da época, na perspectiva da intervenção francesa de poéticas dos séculos XVII e 13 XVIII, respeitantes ao plano dramático. Os mecanismos de compreensão de um determinado «horizonte de expectativa», desfasado das intenções reformadoras do teatro, nas suas produções dramáticas didácticas e irrealistas, são igualmente rentabilizados através de uma estética da recepção, promotora das razões dos públicos e já não só dos textos. Entusiastas ainda das comédias de capa e espada, dos entremezes, do teatro musicado, da promissora síntese de O Judeu, as plateias, distantes dos debates abstractos, reprovavam as menos teatrais criações inovadoras de Correia Garção ou de Manuel de Figueiredo, adiando-as até ao tempo agitado de Garrett que retomou, ampliando, com condicionalismos difíceis mas mais propiciadores, o plano arcádico de educação dos que hão-de sustentar um teatro nacional. Se muito didactismo de O Teatro Novo ou de O Dramático Afinado não transformou as expectativas dramáticas portuguesas, aproximando-se da atitude de Molière nas Critiques, mas sem usufruir do seu meio, um padrão francês de progresso e de civilização, nas suas expressões sociais, culturais, políticas e religiosas, difundia-se com cortes, limites, repressões, adiando também a modernização liberal, por sua vez acidentada, para o século XIX. Com efeito, os nacionalizadores do teatro em Portugal não só estudam e citam, obedientes, logos e praxis do teatro francês, como agitam os rígidos moldes de Boileau com o génio dinâmico de grandes dramaturgos, abrindo caminhos mais livres para uma produção dramática portuguesa (17). Neste quadro, a própria concepção epocal de tradução, vigente também na França do século XVIII com as «adaptations à nos moeurs», permitia um dinamismo próprio de originalidade que, na definição dos seus limites e das suas licenças, justifica uma sociologia dessas versões abundantes, intrínsecas ao nosso Setecentismo teatral. Em vez de pulverizar a investigação numa fortuna anónima, mas capital, ou em nomes reconhecidos na esfera teatral da época, e porque o afinal rico, ou menos brilhante mas povoado universo literário, até particularmente dramático, do Portugal setecentista apresentava intermináveis caminhos, optou-se, neste estudo, por seleccionar autores ainda assim reconhecidos, - fugindo à multidão de minúsculos nomes tão convocados pelos estudos de recepção-, marcando o movimento criacional, no sentido de integrar a dinâmica teatral na global evolução literária, existente apesar de tudo, do séculoX VIII, e que geralmente não se circunscreveram à produção dramática. Porém, a sua relação com o teatro francês há-de afigurar-se basilar ou porque as suas traduções foram muito aplaudidas, correspondendo a uma voga já de si significativa, ou porque foram encomendadas de acordo com o gosto maioritário, numa vida de dura sobrevivência, ou para exprimir uma paixão que orientava 14
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