BREVE EXPOSIÇÃO SóBRE O DIREITO ADMINISTRATIVO NORTE-AMERICANO JOHN CLARKE ADAMS Professor na Universidade de Siracusa (N. Y.) SUMARIO: Introdução. - Noções gerais. O desenú'olvimento histórico do direito administrativo no sistema jurídico anglo americano. - O problema da definição do direito administra tivo norte-americano - Conteúdo do direito administrativo norte-americano. - Comparação com o direito administra tivo francês e italiano. - O contrôle da administração pelos Tribunais. - Limitações ge1"ais do contrôle judiciário da admi nistracão. - Recursos contra a validade de atos administrati vos. -....:. "Common Law Remedies". - "Statutory Remedies". Recursos de reparação. - Recursos contra o Estado. - Con clusões. INTRODUÇÃO * De tôdas as disciplinas sociais, o direito é, sem dúvida, a mais sensível ao espírito nacional. Com exceção do direito internacional e da filosofia do direito, trata-se, realmente, de uma disciplina cujos hori zontes tendem a se determinarem pelas fronteiras nacionais e que se constrói em função da competência jurídica do direito positivo de cada Estado. Qualquer ordem jurídica constitui o fruto das reflexões humanas, e é individualista. Daí resulta que, muitas vêzes, os juristas - por profissão e por formação - ficam isolados no estudo de um só sistema de direito positivo, aliás, bastante vasto para que se possam ocupar apenas dêle. o (*) NOT A DA RED. - presente artigo constitui uma adaptação francesa do curso de direito administrativo norte-americano. dado pelo autor no Ciclo de especializa ção em ciências administrativas. organizado pela Faculdade de Direito da Uninrsidade de Bolonha (Itália). O texto dêsse curso foi publicado. integralmente. em italiano. pelo editor Zanichelli. que auturizou a presente reprodução parcial. A versão da adaptação francesa foi especialmente feita p;.ra a Revista InternaciomII de Ciências Administrativas. tendo sido revista pelo professor J ohn Clarke Adams. Tradução promovida pelo Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas. do origi nal francês publicado na Revista Internacional de Ciências Administrativas. Vol XXIII. 1957. n.o 4. - 57- ~sse interêsse particular se manifesta sobretudo quando se quer passar para o domínio do direito comparado. Esbarra-se, então, com uma carência - para não dizer falta completa - de elementos de uma ciência comparada. Os conceitos e a terminologia próprios a tal direito não se podem transferir a outro, seja porque são desconhecidos neste, seja (e êste aspecto é mais característico) por possuírem um signifi cado diverso nos sistemas jurídicos antigos e geogràficamente deter minados. O próprio trabalho de tradução esbarra com enormes difi culdades, pôsto que a terminologia se vê impedida de desempenhar o seu papel tradicional e é, neste caso, fonte de confusões e erros. Antigamente, êsse espírito nacional das ciências jurídicas apresen tava apenas pequenos inconvenientes. Hoje em dia, porém, as condi ções mundiais estão bastante modificadas. Como gostaria de acentuar meu saudoso mestre, Piero Calamandrei, o futuro pertence aos estudos comparados, a uma interpenetração de sistemas jurídicos que até o momento se encontram estanques. É nesse espírito que damos abaixo algumas noções gerais sôbre os elementos essenciais do direito administrativo norte-americano e as formas de recurso oferecidas, dentro dêle, às partes que comparecem perante os tribunais de inferior instância. Nosso propósito é tão somen te o de iniciar os leitores europeus no direito administrativo e nas práticas administrativas adotadas na América de hoje, a fim de facili tar-lhes ao máximo a compreensão dessa matéria. CAPíTULO I NOÇõES GERAIS SEÇÃo 1: O desenvolvimento histórico do direito adlninistl'ativo no sistema jurídico anglo-americano 1. O direito administrativo é uma das mais novas disciplinas jurídicas que constituem o direito positivo moderno. Tem cêrca de um século de existência na Itália, um pouco mais na França e apenas a metade nos Estados Unidos e na Inglaterra. Pode-se verificar quão diverso foi o desenvolvimento dessa nova disciplina jurídica, em cada país e Estado. Em países como a Itália ou a França, a ordem jurídica geral é favorável à formação do direito administrativo como um ramo autônomo. Nesse aspecto é, portanto, decisiva a concepção francesa da separação de poderes, com a insti tuição de um sistema autônomo de jurisdição administrativa, dela decorrente. Se as concepções italianas não são idênticas - e o mesmo ocorre em diversos outros países do continente europeu - é também certo não haver qualquer oposição maior ao aparecimento de um direito administrativo. O mesmo, porém, não ocorre no sistema jurídico anglo americano que, ao contrário, constitui um obstáculo ao desenvolvimento de um direito administrativo autônomo, cujo reconhecimento como disciplina independente é dificilmente compatível com os princípios fundamentais do direito e o processo que dêle resulta. Não se pode contestar que a concepção muito extensiva do direito privado nos países - 58- anglo-americanos tenha constituído um obstáculo ao nascimento de um direito administrativo semelhante ao existente no continente europeu. Os conceitos da rule 01 laU) na Inglaterra e os da judicial supremacy ou do due process 01 laU) nos Estados Unidos conferem aos tribunais anglo-americanos um contrôle sôbre os órgãos da administração pública que não se distingue do que êles exercem sôbre os atos das pessoas de direito privado. Daí resulta que o direito enunciado por ocasião de uma sentença relativa à administração pública não difere, essencialmente, do que decorre de uma decisão sôbre uma disputa entre pessoas de direito privado. Donde a dificuldade de individualizar um "direito admi nistra tivo". 2. É preciso buscar nas tradições históricas a origem da posição privilegiada e do prestígio dos órgãos judiciários na Inglaterra e nos Estados Unidos, bem como a sujeição da administração ao seu poder. A revolução inglêsa do século XVII e a americana do século XVIII foram dirigidas contra o exercício do poder executivo, e o fato é parti cularmente nítido no que se refere à guerra da Independência dos Estados Unidos. Imbuídos, naturalmente, dos princípios do Common LaU), os promotores dêsses movimentos revolucionários mostraram-se desconfiados em relação ao executivo. São extremamente importantes as conseqüências dessas tradições. Exatamente em nome delas foi que a A. V. Dicey negou a existência de um direito administrativo na 1 Inglaterra, e que um professor de jurisprudência da Universidade de Harvard pôde qualificar a atitude do mundo anglo-americano em face do direito administrativo, pouco antes da última guerra, da seguinte maneira: "Direito administrativo, como o sistema de leis e tribunais a cujo cargo estavam as reivindicações do indivíduo contra o govêrno, encar nava, para a mentalidade inglêsa, a burocracia. O têrmo direito admi nistrativo (administrative laU) tinha, pois, a mesma fôrça de "buro cracia". De burocracia a autocracia e desta à ditadura é uma simples transição. .. freqüentemente... feita na literatura do processo admi nistrativo. Essa literatura está cheia de ameaças". O desenvolvimento do direito administrativo anglo-americano pro cedeu-se, de fato, contra a vontade dos juristas e, em parte, às pressas, a fim de fazer face às exigências da sociedade moderna, cujo antigo sistema jurídico já não mais satisfazia. Éste desenvolvimento pode ser assemelhado, no seu processo, ao outro bem antigo da equity. Na reali dade, a sociedade moderna exige em seu govêrno uma competência técni ca que só dificilmente pode ser orientada ou controlada, com exclusivi dade, pelo legislador ou pelo juiz de um tribunal comum. Nasce, dessa forma, um direito administrativo que abrange tanto o direito criado pela instituição dessas novas funções estatais, como aquêle que regula os meios de submeter os atos do Estado a um contrôle ulterior, e que nada mais é do que um novo ramo do direito tradicional, cuja finali dade é não apenas a de disciplinar um novo tipo de atos públicos como 1 Cf A. V. Dicey. Introduction to the StudlJ of the Law of the Constitution. 8.a edição, Londres. 1915. - 59- também a de assegurar aos particulares aquêle mínimo de justiça cuja garantia constitui um dos objetivos principais do Estado.2 SEÇÃO 2: O problema da definição do direito administratit·o norte-americano 3. Uma das principais razões do mal-estar que sentem os juristas do continente europeu em face do direito administrativo norte-ameri cano é a ausência de qualquer definição precisa e válida de seu conteúdo. Na parte do livro dos juristas inglêses J. A. G. Griffith e H. Street 3 que trata da definição do direito administrativo, após passar em revista várias definições que não lhes satisfazem, concluem êles da seguinte maneira: "A verdade está, sem dúvida, no fato de que quaisquer definições de direito constitucional ou administrativo e quaisquer distinções que se fizerem entre êles são arbitrárias e baseiam-se na conveniência de cada escritor". Vários autores norte-americanos adotam também uma atitude nega tiva semelhante quando se trata de definir o direito administrativo. O mesmo não ocorre, porém, como o sabemos, na doutrina francesa e, após ela, na da maioria dos países do continente europeu, pois, para esta doutrina, o direito administrativo constitui um ramo do direito público, bem diverso do direito constitucional, e que tem por objetivo as normas que regem a organização e o funcionamento da administra ção pública, bem como as suas relações internas e as relações com particulares. Os juristas americanos duvidam da realidade da distinção entre o direito público e o direito privado, concordando assim com a opinião do professor italiano Silvio Lessona, que considera não ser sempre possível estabelecer uma distinção nítida entre o direito público e o direito privado e que é preciso compreender de forma relativa a distinção que se faz tradicionalmente.4 Por outro lado, os juristas norte americanos não podem aceitar uma distinção nítida entre o direito constitucional e o administrativo, em vista de considerações de ordem prática que os levam a uma concepção formal do direito constitucional. :€ste decorre das normas constantes do texto fundamental, cuja inter pretação é da competência do poder judicial. A definição do direito administrativo, assim, baseia-se em critérios materiais. Esta situação levou o professor Hart, da Universidade da Virgínia, a qualificar as relações existentes entre as duas disciplinas como "círculos interfe rentes mas não concêntricos".5 Parece-nos, portanto, que nos depara mos com uma situação tôda especial e que é necessário renunciar 2 Cf. Roscoe Pound, J}.dministrative Law, Pittsburgh, Universíty of Pittsburgb Presa. 1942 e Landis, op Clt. Em sentido oposto, porém, c~ Lewis Mayers, Tbe Amencan Legai System, New York. Harpers, 1955. págs. 442-448. 3 Principies of Administrative Law. Londres. Pitman, 1952. pág. 3. 4 Introduzione ai diritto amministrativo, Florença, Editrice Universitaria. 1952. pág. 41. 5 James Hart. An lntroduction to Administrative Law. 2.a edição. New York. Appleton-Century-Crofts. 1950. pág. 13. - 60- a uma determinação rígida dos diversos ramos do direito norte americano. 4. Se afastarmos a questão da distinção entre o direito público e o direito privado, poderemos observar, então, uma concordância bastante acentuada de pontos de vista entre os juristas anglo-saxões e os do continente europeu, no que se refere à definição do direito Administrativo. Dessa forma, Sir Ivor Jennings considera que: 6 "O direito administrativo é o direito. .. (que) determina a orga nização, os poderes e deveres das autoridades administrativas". Para Reginald Parker: 7 "O Direito administrativo pode ser definido como a parte do direito que governa as funções dos órgãos administrativos ... inclusive as normas que dispõem sôbre a revisão jurídica de atos adminis trativos". Para o professor MareeI Waline,8 o direito administrativo é: "o conjunto de regras que determinam em que condições as pessoas administrativas adquirem direitos e impõem obrigações aos adminis trados através de seus agentes, no interêsse da satisfação das necessi dades públicas". Enfim, se nos voltarmos para a Itália, vemos que para Guido Zanobini: "O direito administrativo é a parte do direito ... que tem 9 por objetivo a organização, os meios e as formas das atividades da administração pública, e as conseqüentes relações jurídicas entre a mes ma e as outras disciplinas". SEÇÃO 3: O conteúdo do direito administrativo nm·te-anw1·icano 5. Não se pode deduzir, das definições de direito administrativo dadas por diversos autores, o conteúdo dos cursos dessa matéria, admi nistrados nas universidades. Certos autores escrupulos fazem, também, uma distinção entre a definição geral da disciplina e o conteúdo de seus cursos. Outros, porém, contentam-se em dar uma definição válida 10 para seus países. 11 Nos Estados Unidos, certas matérias que constituem parte inte grante do direito administrativo francês, por exemplo, são ligadas ao estudo da Administração Pública. Como disciplina, o direito adminis trativo e a ciência administrativa tiveram uma origem comum em 6 The Ld'W and the Constitution, 3.a edicão. pág 194. citado por Griffith c Street. op cit. pág 3 . 7 Administrative Ler», Indianópolis. Bobbs-Merril, pág. 8 8 Traité élémentaire de droit administratiff, Paris, Sirey. 1952, pág. 9. 9 Corso di diritto amministrativo, vol. I. parte geral. 4.a edição. Milão. Giuffre. 1945. pág 26. 10 Waline. op. cit., págs. 9-12 e Miele. Principi di diritto amministrativo 2.a edição. Pádua. CEDAM 1953. págs. 17-18. 11 Vittorio Emanuele Orlando. Principi di diritto amministrativo (Nuova Edizio ne per cura di Silvio Lcssona). Florença, Barbera. 1952. págs 14-15. - 61- diversos países, mas suas relações iniciais sofreram uma súbita evolu ção que tomou aspecto diverso nos Estados Unidos. Assim, a disciplina jurídica conservou durante muito tempo, na Itália, uma forte primazia e até 1955 - quando foi instituído o curso de especialização em ciências administrativas da faculdade de direito da Universidade de Bolonha - as ciências administrativas eram trata das como um parente pobre. Nos Estados Unidos os fatos se passa 12 ram de maneira diversa. Talvez em razão de o pioneiro Frank J. Goodnow considerar-se mais um professor de ciência política do que de direito, mas, sobretudo, como decorrência do desenvolvimento con 13 siderável da Administração Pública, o direito administrativo viu-se privado de uma parte importante de seu conteúdo, compreendendo pràti camente tôda a matéria relativa ao regime do funcionalismo público. 14 6. Dessa forma, a ciência política tomou conta de uma parte importante do direito administrativo norte-americano. Tôda a matéria que trata da organização do setor executivo do Estado e da adminis tração local - que ocupa uma considerável parte nos tratados de direito administrativo, sobretudo na França - encontra-se reservada, nos Estados Unidos, à ciência política e apenas acidentalmente entra no domínio das faculdades de direito. Cumpre observar, no entanto, que para a doutrina norte-americana as administrações locais não são consideradas órgãos administrativos subordinados, mas sim autorida des autônomas que dispõem dos três poderes fundamentais (legisla tivo, judiciário e executivo). 15 Outras divergências nas matérias ensinadas nos diversos cursos de direito administrativo têm sua origem na diversidade dos sistemas jurídicos dos países. Na França, por exemplo, o princípio da separação dos poderes é aplicado de forma a tornar a administração independente do poder judiciário e, por conseguinte, só o Conselho de Estado tem competência para julgar dos recursos de anulação dos atos administra tivos, assim como dos recursos de reparação de danos causados a parti culares pelos poderes públicos, e aí por certo encontramos matéria que se enquadra, necessàriamente, em um curso de direito administrativo. Na Itália, por outro lado, certos juristas retiram os recursos de plena 12 Para uma análise cljs~ica das relações entre ~s duas dis:iplinas na Itá!!". cf. Orlando (op. (it .. págs. 22-42). na qual o autor aprova a subordinação definitiva das ciências administrativas ao direito administrativo 13 Cf Goodnow. Palities and Administ-atian, New Yor!-c. 1vlacmillan. 1900. e Dwight Waldo. The Adminis;r:lt;~'e State, New Yo:k. Ronald Prcss Co . 1948, pág 248 14 " . para todos os fins práticos a legislação sôbre funcionários públicos foi separada do direito administrativo (exceto quanto a uma consideração mínima da:la ao camman low e a recursos legais extraordinários contra os agentes públicos". Indianópolis, J. Forrester Davison v. Nathan D Grundstein. Cases and Readinas on Administrativc Law, Bobbs Merril. 1952: cf contra, Floyd R Meecham. The Law of Public Officiers, Chicago, Callagham f!1 Co . 1890: NeI Hart, op. cit , págs 111-244, são as únicas obras dedi cadas ao estudo da law af public affieers, sendo a maior parte dêsses trabalhos dedicada à defesa dos direitos de particulares contra os funcionários. 15 Para a determinação do conteúdo da noção de ciências politicas nos Estados Unidos. cf. Waldo, Politieal Science in the United States af America, Paris, UNESCO. 1956. - 62- jurisdição da competência das jurisdições administrativas, os quais são atribuídos, por lei, à justiça ordinária. 16 SEÇÃO 4: Comparação com o direito administratü'o francês e i~aliano 7. Quais os elementos de ordem jurídica, nos Estados Unidos, que determinam as diferenças entre o direito administrativo ameri cano, o italiano e, sobretudo, o francês? Pode-se responder a eSSLt per gunta mediante o exame dos seguintes fatos: 1) A concepção norte-americana da separação de pOder3€ não isenta a administração do contrôle e da tutela legislativa e judiciária, distinguindo-se assim da concepção francesa que deu origem ao Conse lho de Estado como jurisdição administrativa. Nos Estados Unidos, a separação de poderes baseia-se sôbre critérios funcionais, enquanto que, na França, decorre de critérios institucionais. Nos Estados Unidos, é incompatível com a separação de poderes, o desempenho, pela Admi nistração, da função jurisdicional, como é o caso do Conselho de Estado da França. Assim sendo, um órgão dessa natureza, contra cujas deci sões não existe recurso judiciário, é totalmente inconciliável com os princípios fundamentais da norma jurídica norte-americana. 2) A doutrina norte-americana ignora o conceito de "interêsse legítimo". Dessa forma, não seria possível introduzir nos Estados Uni dos uma distinção análoga à que estabelece, no direito italiano, a deter minação das respectivas competências dos tribunais ordinários e do Conselho de Estado. Nenhuma jurisdição administrativa dês se tipo poderia jamais instaurar-se nos Estados Unidos. O direito inglês, por outro lado, parece ter adotado uma noção muito próxima da do inte rêsse legítimo ao instituir certos recursos de apelação. É possível recor rer-se de uma sentença do Tribunal de Apelação, mediante petição à Câmara dos Lordes, petição esta que só será levada em consideração se estiver fundamentada em argumento relevante de interêsse geral. 3) A doutrina norte-americana da judicial supremacy outorga aos tribunais um poder geral de reforma dos atos administrativos viciados, seja por ilegitimidade, seja devido à existência de um direito de recurso em favor do particular, decorrente de common law ou da lei. Por ocasião de litígios entre particülares ou em matéria penal pode-se, ainda, recorrer aos tribunais por via indireta (collateral attack), caben do então a êstes pronunciar-se sôbre a legitimidade de atos adminis trativos. 4) Não existe, no direito anglo-americano, um direito geral de ação contra o Estado, como no direito francês ou no italiano. Daí resul ta que, afora os casos em que a administração pode ser censurada pelos tribunais no sistema anglo-americano, goza ela da mais ampla liberdade. 5) Segundo a prática anglo-americana, os atos administmtivos só podem se?· postos em execução após a intervenção e aprova,;ão do 16 Cf a êSS2 respeito. Orlando. (op. cit ) e Lesson2. (op cit) Para o sen tido oposto. Guído Zanobíni. (op cir. tomo II. A Justiça Administrativa, 7.a edição. Milão. Giuffre. 1954). e Enrico Guicciardi. (La Gillstizia amministrativa. Pádua, CEDAM. 1954). - 63- juiz de um tribunal ordinário. Com exceção dos casos em Q.ue a admi nistração dispõe dos summary pOUJers, ela não pode recorrer à fôrça pública para a execução de suas decisões sem uma a utorização prévia, obtida mediante sentença judiciária. Esta autorização tornou-se formal, sendo a regra, nos Estados Unidos e na Inglaterra, que a administração execute decisões judiciárias, e que os tribunais autorizem a execução das decisões administrativas. Só excepcionalmente existe a forma ex officio para os atos administrativos. Assim, por exemplo, quando a decisão visa a evacuação ou a destruição de propriedades privadas que constituem perigo público. Isto tem, igualmente, uma origem his tórica. Sabe-se que a execução ex officio - forçada - constitui regra no direito administrativo francês e, sobretudo, no italiano, mas nem todos os autores a encaram com o mesmo ponto de vista. RolIand é partidá rio da execução forçada,17 enquanto que Waline, embora favorável a ela, é menos formal, e o professor Zanobini, sem dar uma opinião 18 pessoal, suscita um aspecto do direito italiano que poderia fazer medi tar um jurista norte-americano. 19 6) Não existe, no direito administrath'o norte-americano, lugar de destaque para o regime da funç{fu pública. O funcionário não goza de uma condição essencialmente diversa daquela do empregado privado e não tem, em relação a êste, uma situação privilegiada, jurídica ou social. Falta uma jurisprudência protetora dos agentes do Estado e não há qualquer lei que permita processar um particular por desacato a um representante do Estado. A proteção do funcionário contra a própria administração limita-se aos casos de lesão de um direito subjetivo. Dessa forma, assim como o funcionário norte-americano não pode fazer valer um direito subjetivo para conservar a sua colocação, não goza êle da mesma proteção dada pelos sindicatos profissionais aos traba lhadores da indústria, os quais só podem ser dispensados por "justa causa". 2'0 7) Pelo simples fato de não haver, nos Estados Unidos, jurisdi ção administrativa distinta, torna-se difícil individualizar a jurispru dência administrativa dentro da jurisprudência geral. Pode ocorrer, assim, que em várias decisões que, à primeira vista, não são de caráter administrativo, encontrem-se dispositivos capazes de servir de prece dente a uma decisão de direito administrativo. O estudo dêsse direito implica, portanto, em vasto conhecimento da maior parte da volumosa 17 "Esta int~rvenção da Administração pa~a assegurar o respe'to às leis e aos re- gulamentos corresponde a uma verdadeira necessidade social ... " (Ver: Précis de droi ( administratif, 10a edição, Paris, Dalloz, 1953, pág 65). 18 "Esta regra (execução forçada) é, evidentemente. ;nuito rígida e dá à Admi- nistração um poder perigoso. Deve-se reconh~cer. porém, que ela é necessária para asse gurar a execução rápida das decisões urgentes para 3 seguranç3 ou bem-estar públicos" (Cf. op. cit., pág. 425). 19 " . de acôrdo com a lei sôbre contencioso adminis~rativo. a aplicação não cessa de fazer sentir seus efeitos. mesmo se o ato tiver sido declarado ilegítímo por uma sentença judiciária ... " (Cf. op cir, vol. I. pág 266). 20 Cf Roger Grégorie (La fonct/Ol1 publique, Paris, Armand Colin. 1954, págs. 119-122) . - 64- jurisprudência de todos os tribunais norte-americanos, estaduais ou federais. Pode parecer paradoxal que, num país de cornrnon law - onde a jurisprudência tem uma influência predominante na elaboração do direito - não seja possível desenvolver uma jurisprudência adminis trativa comparável à que existe na França ou na Itália. Os conselheiros de Estado franceses, em particular, se bem que os princípios gerais da ordem jurídica, na França, sejam contrários ao desenvolvimento de uma jurisprudência dessa natureza, chegaram a criar, nas sentenças por êles proferidas, um direito administrativo que se antecipa à lei escrita e prepara, dessa forma, o trabalho do legislador. Os tribunais inglêJes e norte-americanos não puderam realizar uma obra pretoriana semelhante. Isto decorre, em parte, da dificuldade inerente à tentação de adaptar - em pouco tempo - um sistema jurídico tradicional às novas e imprevistas necessidades e, em parte, à carência de normas legislativas que proporcionem meios aos tribunais e os auxiliem a executar suas novas tarefas. 8) A ausência de uma doutrina do direito administmtivo norte arnericano, embora típica do modo de raciocínio jurídico nos Estados Unidos, torna difícil e perigosa qualquer tentativa de reduzir um conjunto de fatos, que naquele país constituem o direito administra tivo, a uma série de princípios. Segundo o conceito anglo-americano de direito, somente os casos particulares são mantidos e a sua generali zação é sempre aleatória. Nesse campo, fica-se no nível do empirismo e dos conceitos próprios de cada professor. A despeito das contribui ções de mestres de renome como Ernest Freund, Roscoe Pound, J ames Landis e Felix Franfurter (que se tornou depois juiz do Supremo Tri bunal), os juízes norte-americanos são mais citados do que os publi cista~. A doutrina é, sem dúvida, mais cotada na França e na Itália do que nos Estados Unidos, mas nenhum juiz francês ou italiano tem o prestígio - aos olhos dos estudantes e da população em geral - de que desfruta um Holmes, um Hughes, um Cardozo ou um Learned Hand nos Estados Unidos. Os juizes norte-americanos são conhecidos, principalmente, pelas sentenças que proferem, pois constitui caso especial um magistrado escrever uma obra científica de alcance geral. Suas contribuições não dão para suprir a falta de tratados de natureza geral. Permitem apenas organizar e delimitar as matérias que se integram no direito admi nistrativo. 9) Uma outra diferença, entre os direitos administratiyos anglo americano e francês ou italiano, que acentua a dificuldade de uma apro ximação, é a diversidade dos métodos de ensino adotados nas univer sidades. A disciplina jurídica ànglo-americana tem por base as senten ças proferidas por seus juizes. As obras com as quais contam os estu dantes e especialistas norte-americanos são, principalmente, as coletâ neas de decisões mais significativas, sendo as lições dadas pelos profes sôres a ilustração de tal jurisprudência, de tal "caso". Os trabalhos práticos compreendem, muitas vêzes, o enunciado de fatos de litígio, que os estudantes devem estudar, aplicando as decisões examinadas - 65- durante o ano e utilizando-se dos precedentes. O e~tudante que obtém o maior número de pontos não é o que elabora uma 8~ntença adequada, mais, ao contrário, o que coligiu maior número de referências a favor ou contra e que demonstrou maior conhecimento e compreensão mais segura da jurisprudência. Somente nas faculdades de ciência política é que se estuda direito administrativo com base na exposição de prin cípios gerais, embora possamos citar aqui um grande número de professôres que continuam adeptos fiéis do "método de casos" (case method). CAPíTULO 11 O CONTRôLE DA ADMINISTRAÇÃO PELOS TRIBUNAIS SEÇÃO 1: Limitações gerais do contrôle judiciário da administração 8. Subsiste, ainda, no seio da common law norte-americana, o princípio decorrente da máxima The King can do no wrong, que recusa ao particular o direito a uma ação judiciária contra o Estado. tste princípio não é, todavia, absoluto e conhece exceções. Há uma série de recursos de common law ou de equity, sem contar os que são possibilitados pelos atos legislativos ou pelas decisões judiciárias e que reconhecem, de maneira expressa, o direito de ação do particular contra o Estado, em determinadas circunstâncias. Não obstante, os tribunais não têm possibilidade de conhecer todos os casos de contestação entre o Estado e os particulares. Conforme já dissemos, o sistema anglo-ame ricano não oferece à administração pública a faculdade de julgar-se a si mesma, como na França e em diversos outros Estados do conti nente europeu. Essa auto-jurisdição poderia conduzir a uma proteção egoista dos interêsses da burocracia, mas a jurisprudência magistral do Conselho de Estado da França - cuja influência externa, na Europa, não se deve negligenciar - mostra que, inversamente, êsse sistema leva a uma defesa reforçada dos direitos e interêsses privados contra o Estado. Um resultado semelhante foi obtido na Itália, onde existe, para o particular, um recurso aos tribunais ordinários quando o Estado lesa um de seus direitos subjetivos, e ao Conselho de Estado quando está em jôgo um interêsse legítimo. Daí resulta que, embora o direito anglo-americano conceda atual mente aos particulares uma proteção real contra o Estado, não abrange nessa proteção a totalidade dos direitos e interêsses, social e moral mente justificados, de que se podem prevalecer os indivíduos em face dos poderes públicos. ~sse direito, porém, encontra-se em evolução - ou melhor, em um período de gestaçãd - e nada nos leva a crer que o sistema anglo-americano seja incompatível com o desenvolvimento de um direito administrativo conforme à equidade e eficaz na matéria. 9. É preciso acrescentar que além das limitações do common law, 08 tribunais norte-americanos acrescentaram ao princípio inicial certas autolimitações que, por vêzes, chegaram aparecer, mesmo, excessivas. Admitindo que "certos Tribunais devem decidir se uma regra errada
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