A Nova Rota da Seda: A Convergência da Terra e do Mar na (Re)emergência da China Paulo Duarte Doutorado pela Université Catholique de Louvain, autor de Metamorfoses no Poder: rumo à hegemonia do dragão? Doutorando na Université Catholique de Louvain e Investigador convidado na Cheng-chi University, Taipé O texto aqui apresentado resulta do aí uma forma de encontrar novos esta província continuará a fornecer agregar dos vários temas abordados mercados, reduzir as assimetrias de ao resto do país os recursos naturais na palestra proferida pelo investiga- desenvolvimento entre as suas pro- essenciais ao crescimento da sua dor Paulo Duarte, no passado dia 1 víncias costeiras e o interior pobre, economia. Considerando a proximi- de Dezembro de 2016, no Instituto bem como de preservar a estabili- dade do Xinjiang face aos países Internacional de Macau, em Macau. O autor agradece profundamente quer o convite, quer a amabilidade, simpatia e extraordinário acolhi- mento de que foi alvo no âmbito da palestra proferida, com um especial obrigado ao Dr. José Lobo do Ama- ral e ao Dr. Jorge Rangel. A Nova Rota da Sedachinesa é de- nominada Uma Faixa, Uma Rota, in- cluindo uma componente terrestre e uma componente marítima (figura 1).1 A Nova Rota da Sedachinesa assenta, entre outros aspetos, num reforço das relações económicas com a Ásia Central e a Europa. Tem em si subjacente a ideia da criação de um espaço económico suscetível de abranger um vasto mercado de Figura 1. A Nova Rota da Seda chinesa (mar e terra). aproximadamente 4,4 mil milhões Fonte: http://insight.amcham-shanghai.org/wp-content/uploads/OBOR1.png de pessoas, ou 63 por cento da po- pulação mundial, com potencial para se tornar o mais longo e pro- dade nacional e a das regiões vizi- centrasiáticos e o acesso do Xin- missor corredor económico do nhas. E, nesse sentido, a Nova Rota jiang às águas quentes do Índico, mundo. da Sedaé, em grande parte, guiada os líderes políticos chineses adota- pela estratégia de desenvolvimento ram a política do Go Westcomple- Mas quais as principais motivações e estabilização do Xinjiang, que Pe- mentada pelo que vários especia- e aspirações da China no seio da quim quer acautelar de toda a as- listas chamam de diplomacia de sua Nova Rota da Seda? Pequim vê piração terrorista, garantindo que infraestruturas da China. Esta as- _________________ 1 Embora a Nova Rota da Sedachinesa assente na criação de vários corredores marítimos e terrestres (ao invés de um só corredor terrestre e/ou marítimo), optei, na prática (para facilitar a compreensão do leitor), por apresentar o mapa da figura 1, embora consciente de que este é, por natureza, incompleto. 44 ORIENTEOCIDENTE A Nova Rota da Seda ... senta na construção de elos logísti- cos, que visam fazer das provícias remotas da Chinacentros económi- cos na ligação entre Ásia e Europa. Uma outra razão que justifica a im- portância da Nova Rota da Seda, enquanto instrumento de defesa e promoção dos interesses chineses, tem que ver com o impulso que este projeto poderá trazer à econo- mia chinesa, nomeadamente através da internacionalização da indústria de construção chinesa, incentivando as exportações, e atraindo o inves- timento para o interior do país. Por conseguinte, a Nova Rota da Seda constitui, metaforicamente, uma via Figura 2. A linha férrea China-Ásia Central-Europa. Fonte: Lanjian & Wei, 2015. de dois sentidos, quer por meio do estímulo à expansão das empresas chinesas mundo fora, quer no con- e gás) e da securitização2física, bem ropa Ocidental demoram apenas 16 vite aos investidores estrangeiros a como logística (enquanto ponte para dias a chegar ao seu destino, en- apostar no mercado chinês. A Nova o continente europeu). quanto o transporte marítimo neces- Rota da Sedapode revelar-se uma sita de aproximadamente cinco se- alavanca importante face ao abran- manas, com atrasos, em alguns A Nova Rota da Seda terrestre damento da construção na China, casos, significativos. A opção ferro- proporcionando às empresas de Face aos demais elos de ligação no viária permite uma securitização eco- construção chinesas oportunidades seio da Nova Rota da Seda, as redes nómica e logística mais eficaz no tra- de rentabilidade promissora no es- ferroviárias revelam-se uma alterna- tamento de mercadorias sensíveis à trangeiro. tiva logística importante, suscetível humidade, perecíveis ou de elevado de ajudar a China a reforçar os seus valor, e dificilmente transportáveis Todos estes motivos são necessários laços com os mercados europeus, por via aérea devido ao seu volume para se compreender o interesse chi- através da construção de várias in- e/ou peso. A aposta na construção nês na revitalização da Rota da Seda, fraestruturas (por exemplo, linhas de ferrovias é tão ou mais premente embora haja uma outra razão, tão férreas de alta velocidade ao longo na medida em que estas oferecem ou mais importante: a energia. Na da Ásia Central), para escoar de uma rota alternativa aos produtos verdade, a cooperação energética e forma mais eficiente os produtos chi- chineses, permitindo-lhes chegar a construção de infraestruturas serão neses, proporcionando-lhes uma via aos mercados europeus sem terem novos motores para a cooperação complementar ao transporte aéreo de transitar por território russo. A entre a China e os países da Ásia (caro) e ao transporte marítimo (cuja este respeito, alguns autores consi- Central. E, entre estes, destaquemos morosidade é ainda agravada pelo deram que a principal razão de ser a especial importância do Cazaquis- forte congestionamento dos portos dos esforços chineses em desenvol- tão no quadro da diversificação chineses). As mercadorias chinesas ver os corredores terrestres é evitar energética (exportador de petróleo expedidas por comboio para a Eu- a Rússia, quebrando o monopólio _________________ 2 O vocábulo ‘securitizar’é proveniente da teoria da securitizaçãoda célebre Escola de Copenhaga. Securitizar significa elevar determinado assunto da esfera da política dita normalao da chamada high politics. Tal fenómeno verifica-se essencialmente quando se encontra em causa uma matéria (ameaçaé a palavra mais indicada, segundo a Escola de Copenhaga) sensível aos interesses de determinado ator. Por exemplo, questões como a segurança energética, alimentar, mas também as disputas envolvendo a soberania territorial são, em geral, concebidas como pertencentes ao domínio das high politics, o que justifica que determinado ator (o caso da China) recorra a políticas dotadas de contornos de exceção(que podem envolver o uso da força militar, mas não necessariamente), bem como de um caráter temporário com vista à sua de-securitização, ou seja, ao seu regresso à esfera da política dita normal. Ver Buzan, Waever e de Wilde (1998) Security-A New Framework for Analysis, Colorado: Lynne Rinner Publishers, Inc., Boulder. ORIENTEOCIDENTE 45 tros. Neste sentido, a ‘militarização’ das vias férreas, no seio da Nova Rota da Sedaem Açochinesa, tem como objetivo assegurar uma célere mobilização de tropas em caso de necessidade. Este aspeto da securi- tizaçãomilitar – associado à Nova Rota da Sedaterrestre da China – torna os caminhos de ferro instru- mentos estratégicos à disposição do Exército Popular de Libertação (EPL). Refira-se, a este respeito, que o EPL já utilizou o comboio de alta veloci- dade na China para o transporte de tropas, apontando a prática como um meio ideal de mobilização de Figura 3. A linha férrea China-América do Norte. Fonte: Lanjian & Wei, 2015. pessoal e equipamento ligeiro no quadro de operações militares que de que esta beneficia no trânsito de a longo prazo, a desafios mais am- não sejam de guerra. mercadorias entre Oriente e Oci- biciosos, como unir, por via férrea, a dente (Sárvári e Szeidovitz, 2016). China à América do Norte3, ou, Apesar das vantagens de uma Nova Mas porquê evitar a Rússia? Porque ainda, o Pacífico ao Atlântico4(figu- Rota da Sedaque privilegia os ca- os decisores políticos chineses estão ras 3 e 4). Dito isto, não é descabido minhos de ferro, deve notar-se que cientes de que se as relações entre especular que a estratégia chinesa o transporte marítimo ainda repre- a Rússia e a União Europeia se agra- nas próximas décadas (não anos) po- senta mais de 95% do comércio de varem, o poder de Moscovo face a derá não se limitar apenas a um re- mercadorias entre a China e a Eu- Pequim tenderia a aumentar signifi- forço dos elos logísticos Oriente- ropa. Mas ainda há uma questão cativamente. Ora, Pequim não be- Ocidente, mas, lato sensu, a uma relevante associada à otimização do neficiaria de todo de uma tal con- aposta nos corredores que ligam a potencial da ferrovia. Com efeito, juntura. China ao resto do mundo, fazendo se os comboios que ligam a China do país uma ‘mega-cidade’ global, aos mercados europeus partem A utilização dos caminhos de ferro para onde tenderão a convergir to- quase sempre cheios de mercado- é um mecanismo de securitização dos os caminhos. rias, no seu regresso à China, vêm extraordinário. Contudo, a Nova frequentemente vazios. Tal deve-se, Rota da Seda em Açonão se confina Além das razões já enumeradas, os em parte, ao facto de a China com- à Ásia Central. Na verdade, ela con- caminhos de ferro desempenham prar muito pouco às empresas eu- siste num projeto de caráter mun- um papel de extrema importância ropeias. dial, suscetível de revolucionar a in- ao nível da securitização militar e fraestrutura de comunicações e logística no seio da Nova Rota da Não é descabido afirmar que a di- transporte de pessoas e bens à es- Sedachinesa, na medida em que ferença nas bitolas ao longo do per- cala planetária, literalmente. Embora são parte da estratégia de defesa e curso ferroviário que liga a China à seja prioritário para a China começar projeção de poder da China na Eu- Europa ocidental também afeta a por securitizaro seu acesso ao con- rásia, protegendo silmultaneamente perfomance global da opção ferro- tinente europeu – o que permitirá as linhas de abastecimento. A China viária como via de transporte. Os ligar Londres a Pequim em apenas está disposta a adotar ações milita- Estados da antiga União Soviética 48 horas (figura 2) – Pequim, aspira res proativas ao longo de vários tea- utilizam uma faixa larga com uma _________________ 3 Construindo, para o efeito, um túnel subaquático, com cerca de 200 Km, no Estreito de Bering. A linha inteira percorrerá, no total, cerca de 13 000 km, ligando Pequim, Nova York e mesmo Washington D.C., a uma velocidade de 350 km, em menos de dois dias (ver a figura 3). 4 A linha férrea Dois Oceanosrefere-se ao projeto de construção de uma ferrovia suscetível de atravessar a América do Sul, ligando a costa do Perú (no Pacífico) à do Brasil (no Atlântico), percorrendo cerca de 5 000 km (ver a figura 4). 46 ORIENTEOCIDENTE A Nova Rota da Seda ... de escoamento e transporte. Mar e terra são dois espaços geopolíticos e geoestratégicos complementares e interdependentes na formulação de uma estratégia holística de se- gurançaenergética. Pequim apoia a construção de um canal através do istmo de Kra. Ape- sar de não ser recente, tal ideia tem como objetivo criar uma espécie de ‘Canal do Panamá asiático’ (com 102 km), num momento em que o con- gestionamento e insegurança no Es- treito de Malaca se revelam alta- mente sensíveis. Com um tempo de construção de cerca de 8 a 10 anos, o Canal de Kra teria um impacto extraordinariamente positivo ao ní- vel da segurançaenergética chinesa, encurtando o tempo e a distância de expedição entre o mar de Anda- man e o mar da China Meridional respetivamente em 72 horas e em cerca de 1200 km (figura 5). Contudo, a construção do dito canal é vista com uma certa suspeição por parte da Tailândia e de outros Esta- dos da região. Na prática, o controlo Figura 4. A linha férrea Dois Oceanos. Fonte: Lanjian & Wei, 2015. de um canal no istmo de Kra gera apreensão quanto ao facto de Pe- quim vir a optar, quiçá, por recusar bitola de 1.520 mm, enquanto a dos seus maiores obstáculos: a bu- a passagem de navios ao seu crité- China, o Irão, a Turquia e a Europa rocracia. Com efeito, com os com- rio, arrastando potencialmente a Tai- continental utilizam a bitola padrão boios a atravessar seis ou sete ad- lândia para uma situação desagra- (com 1.435 mm). Ora, daqui resulta ministrações ferroviárias diferentes, dável. Além disso, vários países da que nos pontos de cruzamento en- a simplificação dos acordos adua- região demonstram profundas reser- tre os sistemas ferroviários, os con- neiros ao longo da rota é premente. vas quanto ao facto de a NovaRota tentores devem ser descarregados Por outro lado, é fundamental que da Sedamarítima vir a ser verdadei- de um comboio e carregados para haja um combate eficaz à corrupção ramente win-wintanto para esses outro (usando rodas de calibres di- nos postos fronteiriços. países como para a China. ferentes). Por conseguinte, é funda- mental que as várias bitolas ao Daqui resultam duas importantes A Nova Rota da Seda marítima longo dos percursos ferroviários consequências: apesar da especu- transasiáticos sejam harmonizadas Concomitantemente à aposta na re- lação por parte de alguns meios de numa única bitola, de forma a oti- vitalização dos corredores terrestres comunicação, o Canal de Kra é, no mizar-se todo o potencial da Nova transasiáticos, a China tem vindo a curto e médio prazo, inviável. Em Rota da Sedaem Aço, reduzindo o dinamizar a promoção de uma Nova segundo lugar, fruto da incerteza tempo de ligação entre Oriente e Rota da Sedamarítima, que assenta dos vizinhos face às (reais) inten- Ocidente. Por fim, a rede ferroviária na busca de acessos estratégicos a ções navais da China, a Nova Rota transasiática deve ultrapassar um recursos naturais, mercados e vias da Seda marítima tem registado ORIENTEOCIDENTE 47 bens públicos à comunidade inter- nacional. Há um aspeto importante na forma como a China se serve da sua mari- nha de guerra para proteger os in- teresses chineses no mar. Contraria- mente à marinha dos Estados Unidos, que utiliza uma abordagem essencialmente militarista, a People’s Liberation Army Navy(PLAN) recorre a um modelo mais subtil, marcado por um misto de diplomacia e co- mércio, na forma como opera e acede aos portos marítimos estran- geiros. Esta é, na verdade, uma ca- raterística inerente a regimes como o do Partido Comunista chinês, no qual o Governo controla importan- tes entidades, de que são exemplo as National Oil Companies,ou gran- des empresas de transporte marí- timo, como a China Ocean Shipping Company(COSCO). O que quer isto dizer em termos de securitizaçãono âmbito da Nova Rota da Sedamarí- tima da China? Figura 5. O Canal de Kra. Fonte: www.bangkokpost.com/print/584473/ Dado que o Partido Comunista chi- avanços menos significativos que a tar as infraestruturas portuárias de nês controla entidades como a Nova Rota da Sedaterrestre, esta uma dimensão militar, além da sua COSCO, a PLAN (braço armado do sim recebida com entusiasmo quer utilidade civil. Ora, militarizaros por- partido) tem, por conseguinte, pelos países da região, quer pelo tos significa apetrechá-los com um acesso prioritário aos portos onde a Ocidente. Apesar do ênfase que conjunto de utensílios que lhes per- COSCO está presente, tornando-se Pequim coloca nas vantagens da mitam servir para ‘operações mili- desnecessário para a China possuir Nova Rota daSeda para os Esta- tares que nãosejam de guerra’. E bases navais permanentes, uma vez dos-membros da Associação de que utensílios são esses? No caso que a PLAN tem acesso a tais portos Nações do Sudeste Asiático da necessidade de mobilização de por outros meios. É, por conse- (ANSA), a realidade é que, parado- tropas chinesas para uma zona de guinte, compreensível que as em- xalmente, o agravamento das dis- instabilidade, como em África, su- presas chinesas se mostrem ativas putas marítimas no mar da China blinhemos a construção de aeródro- na construção, ampliação e gestão Meridional e a modernização da mos para uso militar e civil, com de portos um pouco por todo o marinha de guerra chinesa têm instalações de apoio associadas mundo. O porto de Pireu, na Grécia, vindo a aproximar os países da (terminais, hangares, armazena- é um exemplo bastante ilustrativo a ANSA dos EUA, assistindo-se na re- mento de combustível) capazes de este respeito, não só pela extraordi- gião a uma corrida ao armamento suportar pesados aviões de trans- nária logística (já que este é o prin- naval. porte, bem como a modernização cipal projeto de infraestruturas por- de instalações portuárias estratégi- tuárias da China no Ocidente), mas À semelhança do que tem vindo a cas. As operações militares que não também pela geopolítica a si subja- suceder com as vias férreas que in- sejam de guerra têm uma dupla ver- cente, enquanto porta de entrada tegram a Nova Rota da Sedachi- tente: defender os interesses da para os contentores chineses com nesa, a China também procura do- China no estrangeiro e providenciar destino à Europa. 48 ORIENTEOCIDENTE A Nova Rota da Seda ... O chamado Colar de Pérolasé fun- que a cada tentativa chinesa de se- Golfo de Aden, bem como nas res- damental no contexto da militariza- curitizaro acesso a portos-chave do tantes rotas marítimas que ligam o çãoda rede portuária, bem como Índico, Nova Deli responde, por sua Índico ao Suez, explicam o aumento da proteção dos corredores maríti- vez, por meio de uma contraofensiva das atividades navais chinesas no mos da Nova Rota da Sedachinesa. diplomática, de soft power (que in- Oceano Índico. Ou, pelo menos, ex- Uma vez que a China receia, em clui frequentemente o apoio econó- plicam em parte, uma vez que tal caso de conflito, um embargo pe- mico aos Estados da região), no presença oculta, no entanto, outra trolífero por parte dos Estados Uni- sentido de conter a securitizaçãolo- questão que vai muito além da luta dos, Pequim tem apostado na cria- gística, energética e militar chinesa. contra a pirataria: o domínio dos ca- ção de bases terrestres, responsáveis Por conseguinte, o ‘Colar de Pérolas’ nais de comunicação. Na verdade, pela segurança das suas rotas de assemelha-se a uma espécie de assistimos atualmente a uma disputa abastecimento. Trata-se de um ‘lito- ‘jogo do gato e do rato’ entre China tácita entre as grandes potências ral artificial’, formado por pontos de e Índia, em que cada potência pro- pelo controlo das rotas marítimas apoio logísticos ao longo das prin- cura conter os avanços da outra no que vão desde o Estreito de Bab el cipais rotas de navegação (desde o Índico, sendo que os principais be- Mandeb5 ao Estreito de Malaca, ar- Myanmar até ao Estreito de Ormuz), neficiados desta competição geo- térias do comércio mundial. Dito que permite à China vigiar o Oceano política são os Estados como o isto, a China, enquanto grande po- Índico (figura 6). Myanmar, Bangladesh, Maldivas, tência, quer projetar o seu poder, tanto mais que se trata de um país que não está diretamente presente no Oceano Índico. A pirataria marí- tima é, neste contexto, um argu- mento ‘útil’ para que Pequim se po- sicione mais facilmente numa região que é a zona de influência natural da Índia. Qualquer iniciativa em interpretar o que pretende a China do mar, o por- quê de um Colar de Pérolas6no Ín- dico, os motivos que levam Pequim a modernizar a sua marinha, a cons- trução de ilhas artificiais no Mar da China Meridional, ou, em sentido lato, a proteção das linhas maríti- mas, deve ter presente a evolução Figura 6. O ‘Colar de Pérolas’. da doutrina naval chinesa. Na ver- Fonte: http://broadmind.nationalinterest.in/wp-content/uploads/2015/10/i— dade, assistimos hoje a uma mu- e1444035160760.png dança física (no sentido de uma crescente modernização dos meios Ao negociar tal projeto com os paí- Paquistão, Sri Lanka, Seychelles, que militares), que é acompanhada por ses do Oceano Índico – para garan- procuram maximizar os seus interes- uma evolução da reflexão estraté- tir uma vigilância permanente das ses económicos. gica. Esta inspira-se, por sua vez, linhas marítimas do Índico, e a longa nas teses do americano Alfred Ma- distância, das bases chinesas – a As incursões marítimas chinesas no han, segundo o qual o comércio ne- China está, contudo, a entrar numa Oceano Índico não são um fenóno- cessita de uma marinha mercante e esfera que a Índia entende ser o seu meno recente. As operações de de uma marinha de guerra para a estrangeiro próximo. Daqui resulta, combate à pirataria marítima no proteger, bem como de pontos de _________________ 5 Este estreito separa a Península Arábica de África e liga o Mar Vermelho ao Golfo de Aden, no Oceano Índico. 6 Embora o discurso e documentos oficiais chineses neguem categoricamente a existência de uma qualquer estratégia de Colar de Pérolas. ORIENTEOCIDENTE 49 China-Paquistão (figura 7), que li- gará Kashgar, no Xinjiang, ao porto de Gwadar no Paquistão pressupõe, igualmente, uma securitização fí- sica/militar do Xinjiang. De facto, ao proporcionar ao Xinjiang um acesso ao mar – contribuindo simultanea- mente para fazer de Kashgar e de Gwadar importantes hubs comer- ciais – Pequim concebe o Corredor Económico China-Paquistão como um instrumento suscetível de ate- nuar os sentimentos separatistas que minam a estabilidade do Xin- jiang. Note-se também que o Pa- quistão proporciona à China um cor- redor de comércio e energia, por Gwadar, através do qual o petróleo proveniente do Médio Oriente – e armazenado em refinarias em Gwa- dar – chegará à China através de oleodutos e caminhos de ferro. Este Figura 7. Gwadar e o Corredor Económico China-Paquistão. Fonte: ww.offiziere.ch/?p=26318 corredor oferece um trajeto mais curto entre a Ásia Ocidental e a apoio (abastecimento e reparação) parte reativa, baseada no receio de China, o que permitirá poupanças nas vias marítimas. A respeito destes Pequim face à conjuntura regional, consideráveis quer em tempo, quer pontos de apoio, comungo de uma em vez de se pautar por uma estra- em despesas de frete, uma vez que via média (ou moderada) segundo tégia (bem) planeada. Por fim, de- a rota atual para o transporte de pe- a qual o modelo de instalação lo- fendo a via moderada de que a Pax tróleo desde a Ásia ocidental até gística de dupla utilização é o mais Sinica– no caso do Oceano Índico aos portos do leste da China, atra- sensato para apoiar futuras opera- – pressupõe uma crescente militari- vés do Estreito de Malaca, é de ções navais chinesas no Oceano Ín- zaçãodas linhas marítimas, contudo cerca de 12 000 km. Acresce ainda dico. Contudo, por que está a China relativamente subtil e gradual, ten- um percurso de 3 500 km, por via interessada em algo mais do que dendo a acompanhar a expansão terrestre, desde os portos chineses meras instalações logísticas ao da atividade comercial chinesa. No até ao Xinjiang. Comparativamente, longo dos principais portos? Ou quadro dos esforços de securitiza- a rota Gwadar - Xinjiang é de ape- seja, como justificar que Pequim se çãoinerentes ao Colar de Pérolas, nas 3 000 km. prepare para inaugurar aquela que que é, por sua vez, uma compo- será a sua primeira base naval no nente importante da Nova Rota da Em termos de ‘operações militares estrageiro (no Djibuti)? É uma ques- Sedamarítima chinesa, considero que não sejam de guerra’, a logística tão complexa para a qual não existe pertinente falar de duas ‘pérolas’ inerente ao Corredor Económico uma resposta evidente, já que o particularmente relevantes: Gwadar China-Paquistão pode contribuir próprio discurso e documentos ofi- e Djibubi. para que a China securitizeos seus ciais chineses são extremamente interesses, através de uma rápida opacos e lacónicos em determina- Gwadar é um dos portos do Índico, mobilização de tropas e equipa- das questões-chave. com ligações por terra ao flanco oci- mento militar, a partir dos portos ma- dental e meridional da China, sus- rítimos para o interior, ou desde os Acredito que apesar de os portos cetível de ajudar o Império do Meio caminhos de ferro em direção aos marítimos no Oceano Índico pode- a evitar (ou, pelo menos, mitigar) as portos e, posteriormente, para na- rem vir a satisfazer as necessidades consequências do chamado ‘dilema vios que se deslocarão, em seguida, da marinha de guerra chinesa, a sua de Malaca’. Além da dinamização para um teatro de guerra offshore. utilização tenderá a ser em grande económica, o Corredor Económico Ainda no plano militar, Gwadar po- 50 ORIENTEOCIDENTE A Nova Rota da Seda ... derá proporcionar um posto de ob- listas sugerem que, caso a China rítimas. Com efeito, a localização servação – e inclusivé um ponto de pretenda utilizar um porto paquis- geográfica de Djibuti confere-lhe, apoio – para o Exército Popular de tanês para fins militares, o porto de como fronteiras marítimas, o Mar Libertação, uma vez que está estra- Karachi é uma alternativa perfeita- Vermelho e o Golfo de Aden, arté- tegicamente localizado fora do Es- mente viável face a Gwadar, em- rias cruciais no trânsito de navios em treito de Ormuz, através do qual bora, do ponto de vista estratégico rota de/para África, Ásia e Europa circula 40 por cento do tráfego pe- tenha como desvantagem a sua (figura 8). trolífero mundial. Podemos resumir proximidade relativamente à Índia. os interesses da China face ao porto Em conclusão, para os partidários Do ponto de vista técnico-logístico, de Gwadar em três grandes objeti- desta visão – que critica a sobre- a primeira base militar chinesa no vos: solidificar os seus laços com o avaliação da importância de Gwa- estrangeiro será edificada num país Paquistão, diversificar e aumentar a dar para a China – o porto ainda (o Djibuti, cuja área é menor que a segurança das suas rotas para a im- tem um longo caminho a percorrer da cidade de Chicago) que alberga portação de petróleo e gás natural, antes de estar plenamente opera- simultaneamente outras forças mi- e expandir a sua presença no cional enquanto instalação de trân- litares estrangeiras – francesas, ja- Oceano Índico. sito internacional. ponesas, alemãs, italianas e ameri- Adotando uma postura crítica (que admite o contraditório), julgo ser pertinente apresentar a visão oposta, ou seja, a de que Gwadar não é tão fundamental quanto possa, eventualmente, parecer no âmbito da Nova Rota Sedachinesa. Faço-o, todavia, sem tomar partido por nenhuma das visões em con- fronto, pois estou convicto de que as duas se complementam. Dito isto, alguns especialistas acreditam que mais do que fazer parte do re- ferido Colar de Pérolasda China, Gwadar tenderá, ao invés, a ser um colar de perigospara a China. Com efeito, de entre os obstáculos a que Gwadar se venha a tornar um cen- tro económico chinês, destaque-se Figura 8. Mapa do Djibuti. Fonte: www.bbc.com/news/world-africa-33115502 a insurgência no Baluquistão (onde Gwadar se situa) e por onde pas- sarão os oleodutos e gasodutos propostos, e também o facto de Analisemos agora a importância de canas. O que explica que este local vários líderes tribais se oporem ao Djibuti no âmbito da Nova Rota da de África seja (tão) atrativo para as investimento externo em larga es- Sedamarítima da China. A escolha potências militares mundiais? Por cala, temendo que tal traga um de Djibuti para hospedar a primeira um lado, a relativa estabilidade de afluxo de estrangeiros. Mas existem base naval chinesa no estrangeiro que beneficia o Djibuti face a um outras barreiras: a corrupção endé- tem em si subjacente uma lógica de enquadramento securitário regional mica, a instabilidade política, os securitização logística, comercial, consideravelmente volátil. Por ou- atrasos ao nível da burocracia no energética, política, militar e de soft tro, a já referida localização geo- Paquistão, as recorrentes falhas de power. Antes de mais, a escolha do gráfica do país, estratégica não só eletricidade no país e um historial local – no Corno de África – encaixa no âmbito da proteção das linhas de não pagar o dinheiro prometido geostrategicamente nas operações marítimas, como também terrestres. aos credores externos. Perante es- de combate à pirataria marítima e, Além de a geografia ter inquestio- tes inconvenientes, alguns especia- portanto, de proteção das linhas ma- navelmente determinado a escolha ORIENTEOCIDENTE 51 do Djibuti, por parte da China, acrescente-se que a partir de Dji- buti, os aviões de patrulha maríti- ma chineses poderão sobrevoar a maior parte da Península Arábica e do norte e centro de África sem rea- bastecer. A construção da primeira base mili- tar da China no estrangeiro (neste caso, Djibuti) proporciona certa- mente várias leituras geopolíticas, as quais são, por sua vez, influenciadas pelo prisma de valores, entre outros. No entanto, qualquer iniciativa em interpretar os motivos que levam a China a modernizar a sua marinha, ou a construir ‘ilhas artificiais’, ou, em sentido lato, a securitizaras li- nhas marítimas, deve ter presente a evolução da doutrina naval chinesa a que anteriormente nos referimos. De entre os elementos que atestam um continuumlógico da securitiza- çãodos interesses navais (e que aju- dam a perceber a razão de ser de uma base naval chinesa, assim como o porquê de um segundo porta- aviões chinês) atentemos, em espe- cial, no conteúdo do 12ºPlano Quin- quenal, que traz uma nova perspetiva sobre o mar. O 12º Plano Quinque- nal reflete, na prática, a necessidade Figura 9. A 1ª e 2ª Cadeia de Ilhas. Fonte: www.nippon.com/en/editor/f00021 de o país garantir a segurança das linhas marítimas. A China, que até então havia privilegiado a terra so- tares em oceano aberto (o que re- chinesa já indicou a sua intenção bre o mar, passaria a ser um Estado quer uma marinha de águas azuis8), de operar regularmente para além híbridoterra-mar, reconhecendo que existem algumas etapas quantitati- da primeira cadeia de ilhas, que terra e mar são complementares. vas, qualitativas, espaciais e tem- separa os mares do Sul da China, porais que devem ser gradual- da China Oriental e Amarelo, do Em termos operacionais, Pequim in- mente ultrapassadas. É por isso que Oceano Pacífico, as ilhas do Pacífico veste cada vez mais numa estraté- o Pacífico Sul, embora remoto, é servem como uma segunda cadeia gia de sea denial7, afastando-se importante no contexto da prote- de ilhas, suscetíveis de restringir a gradualmente, por conseguinte, da ção das linhas marítimas e da dita liberdade de manobra global da simples defesa das costas chinesas. projeção de poder. Com efeito, marinha do Exército Popular de Li- Mas, para realizar operações mili- num contexto em que a marinha bertação (figura 9). Por conse- _________________ 7 Sea denialé um termo militar que designa as tentativas de negar a um inimigo a capacidade de utilizar o mar (geralmente através de bloqueios navais e/ou portuários). Trata-se de uma estratégia muito mais fácil de executar do que a do sea control, uma vez que requer a simples existência de uma marinha. 8 Ou seja, uma marinha capaz de operar em alto mar. 52 ORIENTEOCIDENTE A Nova Rota da Seda ... guinte, do ponto de vista geoestra- tégico, a superação espacial da se- gunda cadeia de ilhasé essencial para a China. Por um lado, porque num potencial cenário de hostili- dade, ela permitirá a Pequim impe- dir qualquer tentativa de contenção da sua marinha de guerra (por parte de uma potência rival) e, por outro lado, porque o controlo da segunda cadeia de ilhas é indispensável à transformação da marinha chinesa na dita ‘marinha de águas azuis’ (fi- gura 9). Embora a literatura foque predomi- nantemente as vias marítimas con- vencionais como as artérias, por ex- celência, do comércio mundial, a verdade é que as alterações climá- ticas (o célere derretimento do gelo polar) têm vindo a captar gradual- mente a atenção dos especialistas para a eventual possibilidade de os navios mercantes poderem utilizar uma rota polar, em complemento às vias marítimas ditas ‘tradicionais’. Contudo, as visões sobre a eficiên- cia da rota marítima do Ártico nem Figura 10. A Rota do Mar do Norte (a azul). Fonte: http://undertheangsanatree.blogspot.tw/2014/09/the-northern-sea-route.html sempre se afiguram consensuais. Com efeito, não obstante ser in- questionável que a travessia do Ár- tico diminui (em cerca de quarenta o Oriente através do canal de Suez, figura 10), argumentando que as por cento) a distância entre Xangai desmotivando, por conseguinte, o rotas marítimas do Ártico não serão e a Europa, a verdade é que esta é uso de uma rota polar em detri- capazes de competir com as gran- uma visão demasiado redutora de mento das linhas marítimas conven- des rotas de comércio mundiais, avaliar os benefícios de uma poten- cionais. Esta tese contraria a visão tendendo a permanecer apenas cial Nova Rota da Sedapolar. Im- otimista da utilização da chamada vias de transporte sazonais. Hum- porta, pois, considerarmos outros Rota do Mar do Norte, segundo a pert (2013) defende que a constru- fatores para se compreender por qual além da redução do tempo de ção iminente de navios porta-con- que é que alguns autores se mos- viagem (12 a 15 dias menos) com- tentores de última geração irá tram céticos face às ‘vantagens’ que parativamente à rota tradicional do proporcionar uma economia de es- o cruzamento marítimo do Ártico Suez, a utilização da Rota do Mar cala bastante melhorada e reduzirá pode proporcionar aos navios mer- do Nortepermitiria ainda aliviar o os custos ao ponto de a navegação cantes chineses. Por exemplo, Varga tráfego marítimo no Suez, bem do Ártico não ser economicamente (2013) estima que a navegação no como nos vários portos ao longo da viável mesmo em condições ideais. Ártico não será economicamente rota convencional que liga a China Acrescente-se que existem poucos viável mesmo sob condições ideais. à Europa. portos ao longo da Rota Marítima Outros especialistas, tais como Vi- do Norte, bem como escassos dal, sublinham que até 2040 conti- O especialista Malte Humpert meios de salvamento e cartas ma- nuará a ser mais económico efetuar (2013) desvaloriza a importância da rítimas suficientemente avançadas. trocas comerciais entre a Europa e Rota Marítima do Norte(a azul, na Além disso, no Mar de Laptev, por ORIENTEOCIDENTE 53
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